Processual Penal. Inépcia da denúncia. Inicial com base exclusiva no relatório fiscal e contrato social. Inadmissibilidade.

EMENTA

1. A denúncia, à luz do disposto no artigo 41 do Código de Processo Penal, deve conter a descrição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a definição da conduta do autor, sua qualificação ou esclarecimentos capazes de identificá-lo, bem como, quando necessário, o rol de testemunhas.

2. Não se ajusta a seu estatuto de validade (Código de Processo Penal, artigo 41), a denúncia oferecida exclusivamente com base em relatório fiscal e em contrato social, induvidosamente insuficientes para a imputação de fato-crime a quem quer que seja, não se constituindo a ação penal em esdrúxula forma de cobrança de débito fiscal, como se a pena criminal pudesse transvestir-se em medida coercitiva.

3. Ordem concedida.

(STJ/DJU de 20/06/05, pág. 379)

No sentido de que a ação penal não pode se transformar em esdrúxula forma de cobrança de débito fiscal, decidiu a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, Relator o Ministro Hamilton Carvalhido, trancar a ação penal, deferindo ?habeas corpus?, por falta de justa causa.

Consta do voto do Relator:

O Exmo. Sr. Ministro Hamilton Carvalhido (Relator): Senhor Presidente, habeas corpus contra o Tribunal Regional Federal da Quinta Região que, denegando writ impetrado em favor de Hilson de Brito Macedo, preservou-lhe a ação penal a que responde pela prática do delito tipificado no artigo 168-A, combinado com o artigo 71, ambos do Código Penal, em acórdão assim ementado:

?PENAL. PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. TRANCAMENTO DE AÇÃO PENAL. CRIME DE APROPRIAÇÃO INDÉBITA PREVIDENCIÁRIA.

1. A concessão da ordem de habeas corpus, na hipótese do manejo respectivo visar ao trancamento de ação penal, somente se afigura viável quando resulta evidente o vício atribuído à denúncia. Bastam em princípio, ao prosseguimento da persecutio criminis, a mera descrição de um fato típico e indícios razoáveis de autoria, sem que seja reclamada prova exauriente sobre as condutas narradas, que, de mais a mais, só serão obtidas após a instrução a ser havida na seara própria;

2. A existência de recurso administrativo ainda pendente, manejado contra o lançamento de crédito tributário, não impede a propositura de ação penal que tenha por supedâneo os fatos geradores correlacionados;

3. Ordem negada.? (fl. 22).

Está o impetrante em que ?(…) busca o trancamento da ação penal, porque a denúncia dissente da verdade processual, ao alegar, que as alterações processuais nela referidas, como constantes às fls. 79 (vide denúncia), atribuem ao paciente, como diretor presidente da empresa, a responsabilidade pelo recolhimento de tributos.? (fl. 4).

Sustenta, ainda, que ?(…) conforme se verifica no § 1.º, da cláusula 7.ª da alteração de fls. 79 (doc. 04), o contrato não confere ao paciente a ?condição de gerente e administrador da empresa?, como, repita-se, equivocadamente, afirma a denúncia.? (fl. 4).

Afirma, mais, que ?(…) se é fato que as obrigações tributárias poderiam ser pagas, ?em conjunto pelos diretores?, é indiscutível que isso constitui uma ?facultas agendi?, e não, uma ?norma agendi?, uma obrigação, que, segundo o contrato, é de responsabilidade dos diretores Financeiros e de Operações, como antes demonstrado.? (fl. 5).

Assevera, ainda, que há falta de exigibilidade das contribuições, em face do não julgamento do recurso administrativo, sendo que ?(…) a lavratura da NFDL se deu porque a Fiscalização não contabilizou corretamente os créditos da empresa a serem compensados, concluindo, equivocadamente, pela ocorrência de retenção sobre a folha de pagamentos, sem repasse ao INSS.? (fl. 5).

Pugna, ao final, no sentido de se ?(…) trancar a ação penal, instaurada contra o paciente, por ausência de justa causa.? (fl. 9).

Concedo a ordem.

A denúncia, à luz do disposto no artigo 41 do Código de Processo Penal, deve conter a descrição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a definição da conduta do autor, sua qualificação ou esclarecimentos capazes de identificá-lo, bem como, quando necessário, o rol de testemunhas.

Na espécie, é esta a letra da exordial acusatória:

?(…)

I – DOS FATOS

Consoante os documento anexos, a empresa Nordeste Segurança de Valores Ltda (CNPJ 11.013.117/0001-26), foi fiscalizada pela Autarquia Previdenciária constatando-se a existência de débito abrangendo vários estabelecimentos e períodos entre 01/2001 e 02/2002 (relatório fiscal de fls. 05/09).

Nesta Ação Fiscal, foi apurado um crédito referente a valores descontados dos segurados e não recolhidos nas épocas próprias à Previdência Social (NFLD n.º 35.446.037-4 à fl. 10).

Na conclusão da Ação Fiscal foi apurada dívida que totaliza quantia superior a R$ 349.000,00.

O denunciado, na condição de gerente e administrador da empresa Nordeste Segurança de Valores Ltda (conforme Contrato Social e alterações de fls. 79 e seguintes), ciente de que agia infringindo a lei, deliberadamente deixou de recolher aos cofres do INSS, no prazo legal, os valores relativos às Contribuições Previdenciárias regularmente descontadas dos salários dos seus empregados, nos períodos apurados, consoante demonstrado no relatório de fls., sendo o débito comprovado pela Ação Fiscal realizada bem como pelas consultas feitas.

O INSS informou nos documentos de fls. 117/118, que a empresa em tela não procedeu ao pedido de parcelamento ou à quitação do débito.

Vale ressaltar que o crime se perfaz pelo não recolhimento da contribuição na época própria, pelo que são tantos delitos quantos os meses vencidos e não recolhidos, sendo que a reiteração na prática põe em relevo o elemento subjetivo do injusto penal, o dolo, consistente na vontade livre e consciente de não recolher os valores pertencentes à Previdência Social, dos quais o denunciado era depositário legal, no momento legalmente aprazado.

II – DA TIPIFICAÇÃO

Restaram devidamente caracterizadas autoria, materialidade e culpabilidade. Diante do exposto, o denunciado praticou a conduta prevista no artigo 168-A, com o acréscimo decorrente da continuidade delitiva, artigo 71, do Código Penal.

III – DO PEDIDO

Diante do exposto, comprovada a autoria e materialidade delitiva, requer o Ministério Público Federal que, após recebida a presente, seja o denunciado citado, interrogado e submetido ao procedimento processual legal, até a prolação da sentença definitiva, quando o pedido de condenação deve ser julgado procedente, para o fim de condená-lo às penas dos dispositivos mencionados.

Ressalta o Parquet que deixa de oferecer denúncia contra os demais envolvidos em razão da falta de indícios suficientes, reservando-se, porém, no direito de aditar posteriormente a denúncia acaso surjam, no decorrer do processo, novos elementos de prova.

(…)? (fls. 11/12 – nossos os grifos).

In casu, a denúncia, ao que se tem da sua própria letra, sobre ser genérica quanto aos fatos-crime imputados, sequer, particularizados na sua objetividade, limitando-se, como se limitou, do ponto de vista da autoria, a referir relatório fiscal, foi oferecida exclusivamente com base em contrato social, induvidosamente insuficientes para a imputação de fato-crime a quem quer que seja, não se constituindo a ação penal em esdrúxula forma de cobrança de débito fiscal, como se a pena criminal pudesse transvestir-se em medida coercitiva.

Pelo exposto, concedo a ordem para, convolando em definitiva a liminar anteriormente deferida, determinar o trancamento da ação penal por inépcia da denúncia.

É O VOTO.

Decisão unânime, votando com relator os ministro Paulo Gallotti, Hélio Quaglia Barbosa e Nilson Naves.

Ronaldo Botelho é advogado e professor da Escola da Magistratura.