HABEAS CORPUS N.º 28.741/SP

Rel.: Min. Jorge Scartezzini

EMENTA – A manutenção da constrição cautelar, consoante uníssona doutrina e jurisprudência, deve ser calcada em sua extrema necessidade, fazendo-se mister, além da materialidade e indícios de autoria, a presença concreta de circunstâncias que a recomendem, lastreada nas hipóteses do art. 312, do CPP.

– No caso sub judice, inexiste qualquer elemento concreto que justifique o indeferimento da liberdade provisória, mormente quando o paciente, solto em razão da concessão de liminar pela Corte a quo, permaneceu mais de 04 meses nessa condição sem praticar nenhum ato que obstaculizasse o regular andamento do feito.

– Ordem concedida para deferir a liberdade provisória ao paciente, ressalvada a necessidade de sua custódia por motivo superveniente.

(STJ/DJU de 1/12/03, pág. 382)

Na linha de inúmeros precedentes, decidiu o Superior Tribunal de Justiça, através de sua Quinta Turma, Relator o Ministro Jorge Scartezzini, que a prisão “captura” decorrente do auto de prisão em flagrante, somente pode ser convertida em prisão custódia se estivessem presentes os re-quisitos de necessidade da prisão preventiva constantes do art. 312 do CPP (garantia da ordem pública; conveniência da instrução criminal e asseguramento da aplicação da lei penal).

Ausentes tais requisitos, deve ser deferido ao indiciado a liberdade provisória.

Consta do voto do Relator:

O Exmo. Sr. Ministro Jorge Scartezzini (Relator): Sr. Presidente, o writ improcede.

Com efeito, depreende-se dos autos que o paciente foi autuado em flagrante porque havia comprado mercadorias diversas no MERCADO MUNICIPAL DE SÃO PAULO, “tentando efetuar o pagamento, utilizando-se de notas falsas, no valor de R$ 50,00 cada uma…” (o paciente trazia consigo três notas falsas de R$ 50, 00).

Pleiteou, perante o e. Tribunal a quo, através de habeas corpus, a concessão de liberdade provisória, o que foi deferido em sede inicial. Por ocasião do julgamento do mérito do pedido, aquela Corte denegou a ordem, cassando a liminar concedida. Entendeu, para tanto, que o paciente ostentava maus antecedentes e que a mera propriedade de imóveis não teria o condão de elidir a constrição cautelar, nos termos da ementa supramencionada. Nesse particular, extrai-se das informações (fls. 711), verbis:

“(…) Ademais, o paciente registra maus antecedentes. A certidão de fl. 56, expedida pelo Cartório do Fórum Regional do Jabaquara, aponta que, no processo n.º 9.159/2000, foi aplicada ao réu a pena de multa, por porte ilegal de arma (art. 10, caput, da lei n.º 9.437/97). O fato da pena pecuniária ter ficado solvida pelo valor da fiança recolhida nos autos não implica que tenha sido absolvido. Também no 2º Ofício Criminal daquele Fórum regional, aponta-se o processo n.º 23.694/2001, por lesões corporais (art. 129, caput, do CP) em andamento…(omissis). Assim, os antecedentes do paciente recomendam a manutenção da prisão para a garantia da aplicação da lei penal.”

Tenho afirmado que a constrição preventiva, consoante uníssona doutrina e jurisprudência, deve ser calcada em sua extrema necessidade, fazendo-se mister, além da materialidade e indícios de autoria, a presença concreta de circunstâncias que a recomendem, lastreada nas hipóteses do art. 312, do Código de Processo Penal. HÉLIO TORNAGHI, com extrema precisão, afirma que o uso da prisão preventiva “…deve ser restringido aos casos de absoluta necessidade. Chega-se, pela experiência, ao mesmo ponto a que a razão já havia levado: a regra neste assunto tem que ser esta: só prender quando estritamente necessário.”(c.f. “Compêndio de Processo Penal”, Tomo III, p. 1079) – negritei.

Assim sendo, no caso sub judice, o fato do paciente possuir processos em andamento (pela prática de porte ilegal de arma e lesões corporais), por si, não enseja, de pronto, a necessidade de sua manutenção sob custódia. Aliás, ao lhe ser deferida a liminar pelo magistrado componente do e. Tribunal de Alçada, em 16 de novembro de 2002, este permaneceu em liberdade até 29 de abril de 2003, oportunidade em que foi cassada a liminar. Não há nos autos qualquer informação de que, nesse período, o paciente tenha obstacularizado o regular andamento do feito. Sob esse prisma, merece destaque o seguinte aresto:

“RECURSO EM HABEAS CORPUS. FURTO QUALIFICADO. APELO EM LIBERDADE. RÉU SOLTO DURANTE TODO O FEITO. MAUS ANTECEDENTES. PROCESSOS EM ANDAMENTO. CONTINUIDADE DELITIVA AFERIDA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO LOCAL. FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO.

Descabe considerar, como única razão para se negar o apelo em liberdade, a existência de dois outros feitos ainda em andamento referentes a crimes idênticos e praticados em datas próximas, a título de maus antecedentes, tendo o réu permanecido solto durante todo o processamento do feito e trabalhado durante tal período.

Continuidade delitiva aferida pelo Ministério Público local.

Recurso provido.” (RHC 12165/RJ, Rel. Ministro JOSÉ ARNALDO, DJU de 04.03.2002)

Considero, pois, incensurável o parecer ministerial quando salientou (fls. 724/727), verbis:

“Da análise dos motivos ensejadores do indeferimento do pedido de liberdade provisória, vemos que efetivamente têm razão os impetrantes quando afirmam desfundamentado o decisum.

Com efeito, a liberdade provisória estatuída no art. 310 e seu parágrafo único independe da natureza da infração, ou seja, afiançável ou não, admite-se a liberdade. Se existem razões para, se o réu solto estivesse, ser preso preventivamente não será cabível a liberdade provisória. Se não existirem tais razões, a liberdade provisória passa a ser direito subjetivo do réu.

Da mesma forma, se ausentes os requisitos do artigo 312 do CPP, não será cabível a manutenção da prisão mesmo que o réu possua maus antecedentes.

Mirabete, a este respeito, preleciona:

“A Segunda hipótese de liberdade provisória sem fiança mas com vínculo é a estabelecida no artigo 310, parágrafo único, que prevê igual procedimento quando o juiz verificar, pelo auto de prisão em flagrante, a inocorrência de qualquer das hipóteses que autorizam a prisão preventiva (arts. 311 e 312). Com a inserção desse parágrafo ao artigo 310, pela Lei n.º 6.416, de 24-5-77, é solto aquele que foi preso em flagrante delito quando não estão presentes os fundamentos que possibilitam a prisão preventiva. A regra, agora, é a defesa do réu em liberdade, sem ônus econômico, e a prisão em flagrante foi equiparada à prisão preventiva; não permanece preso aquele contra o qual não se deve decretar a prisão preventiva. (…);

O dispositivo em estudo é aplicável tanto às infrações afiançáveis como às inafiançáveis, ainda que graves, a réus primários ou reincidentes, de bons ou maus antecedentes, desde que não seja hipótese em que se poderia decretar a prisão preventiva. (…)

Tem-se entendido, por vezes, que o parágrafo único do artigo 310 atribui ao magistrado a mera faculdade de conceder a liberdade provisória. Trata-se, porém, de um direito subjetivo processual do acusado que, despojado de sua liberdade pelo flagrante, a readquire desde que não ocorra nenhuma das hipóteses autorizadoras da prisão preventiva”.

(Processo Penal, Júlio Fabbrini Mirabete, Atlas 1997, págs. 401/401).

O Superior Tribunal de Justiça já firmou orientação no sentido de que, para indeferir-se o pedido de liberdade provisória, deve-se observar estarem ou não presentes, na hipótese, os requisitos necessários para a decretação da prisão preventiva previstos no artigo 312 do Código de Processo Penal. Colacionamos, neste sentido, os seguintes pressupostos:

“CRIMINAL. HC. RECEPTAÇÃO QUALIFICADA. WRIT CONTRA ATO DE DESEMBARGADOR. INDEFERIMENTO DE LIMINAR. POSTERIOR JULGAMENTO DE MÉRITO PELO TRIBUNAL A QUO. NULIDADE DO AUTO DE PRISÃO EM FLAGRANTE. VÍCIOS QUE NÃO CONTAMINAM O PROCESSO. FLAGRANTE PREPARADO. INOCORRÊNCIA. LIBERDADE PROVISÓRIA. AUSÊNCIA DE CONCRETA FUNDAMENTAÇÃO PARA A MANUTENÇÃO DA CUSTÓDIA. NECESSIDADE DA MEDIDA NÃO-DEMONSTRADA. PRESENÇA DE CONDIÇÕES PESSOAIS FAVORÁVEIS. ORDEM PARCIALMENTE CONCEDIDA.

Tratando-se de habeas corpus contra decisão que indeferiu liminar em writ anteriormente impetrado e evidenciado o julgamento do mérito pelo Tribunal a quo, conheço da impetração como substitutiva de recurso ordinário. Os defeitos por ventura existentes no auto de prisão em flagrante não têm o condão de, por eles mesmos, contaminarem o processo e ensejarem a soltura do réu.

Não há flagrante preparado, se evidenciado que os policiais, após receberem denúncia anônima a respeito do suposto envolvimento do acusado em receptação de medicamentos, dirigiram-se ao local indicado e encontraram pacotes que seriam produto de furto e teriam sido adquiridos pelo paciente. Hipótese em que não se aplica a Súmula 145 do STF. Exige-se concreta motivação da decisão que indefere o pedido de liberdade provisória, com base em fatos que efetivamente justifiquem a custódia processual, atendendo-se aos termos do art. 312 do CPP e da jurisprudência dominante. Precedente.

A mera alusão ao fato de que os crimes de receptação tiveram como objeto medicamentos, com evidente risco à população, não é suficiente para justificar a medida com base na garantia da ordem pública.

Condições pessoais favoráveis, mesmo não sendo garantidoras de eventual direito à liberdade provisória, devem ser devidamente valoradas, quando não demonstrada a presença de requisitos que justifiquem a medida constritiva excepcional. Deve ser concedida, em parte, a ordem para revogar a prisão cautelar efetivada contra JOAQUIM RODRIGUES DA SILVA, determinando-se a imediata expedição de alvará de soltura em seu favor, se por outro motivo não estiver preso, mediante condições a serem estabelecidas pelo Julgador de 1º grau, sem prejuízo de que venha a ser decretada novamente a custódia, com base em fundamentação concreta.

Ordem parcialmente concedida, nos termos do voto do Relator. (HC 27066/PR, Rel. Min. GILSON DIPP, DJ DATA: 23/06/2003 PG: 00405)

Assim, sendo, concedo a ordem para que seja deferida a liberdade provisória ao paciente, ressalvada a necessidade de sua custódia por motivo superveniente.

É como voto.

Decisão unânime, votando com o Relator os Ministros Laurita Vaz, José Arnaldo Fonseca, Felix Fischer e Gilson Dipp.

Ronaldo Botelho é advogado e professor da Escola da Magistratura.

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