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"HABEAS CORPUS N.º 82.354-8 – PARANÁ

Rel.: Min. Sepúlveda Pertence

EMENTA

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I. Habeas corpus: cabimento: cerceamento de defesa no inquérito policial.

1. O cerceamento da atuação permitida à defesa do indiciado no inquérito policial poderá refletir-se em prejuízo de sua defesa no processo e, em tese, redundar em condenação a pena privativa de liberdade ou na mensuração desta: a circunstância é bastante para admitir-se o habeas corpus a fim de fazer respeitar as prerrogativas da defesa e, indiretamente, obviar prejuízo que, do cerceamento delas, possa advir indevidamente à liberdade de locomoção do paciente.

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2. Não importa que, neste caso, a impetração se dirija contra decisões que denegaram mandado de segurança requerido, com a mesma pretensão, não em favor do paciente, mas dos seus advogados constituídos: o mesmo constrangimento ao exercício da defesa pode substantivar violação à prerrogativa profissional do advogado – como tal, questionável mediante mandado de segurança – e ameaça, posto que mediata, à liberdade do indiciado – por isso legitimado a figurar como paciente no habeas corpus voltado a fazer cessar a restrição à atividade dos seus defensores

II. Inquérito policial: inoponibilidade ao advogado do indiciado do direito de vista dos autos do inquérito policial.

1. Inaplicabilidade da garantia constitucional do contraditório e da ampla defesa ao inquérito policial, que não é processo, porque não destinado a decidir litígio algum, ainda que na esfera administrativa; existência, não obstante, de direitos fundamentais do indiciado no curso do inquérito, entre os quais o de fazer-se assistir por advogado, o de não se incriminar e o de manter-se em silêncio.

2. Do plexo de direitos dos quais é titular o indiciado – interessado primário no procedimento administrativo do inquérito policial -, é corolário e instrumento a prerrogativa do advogado de acesso aos autos respectivos, explicitamente outorgada pelo Estatuto de Advocacia (L. 9.806/94, art. 7.º, XIV), da qual – ao contrário do que previu em hipóteses assemelhadas – não se excluíram os inquéritos que correm em sigilo: a irrestrita amplitude do preceito legal resolve em favor da prerrogativa do defensor o eventual conflito dela com os interesses do sigilo das investigações, de modo a fazer impertinente o apelo ao princípio da proporcionalidade.

3. A oponibilidade ao defensor constituído esvaziaria uma garantia constitucional do indiciado (CF, art. 5.º, LXIII), que lhe assegura, quando preso, e pelo menos lhe faculta, quando solto, a assistência técnica do advogado, que este não lhe poderá prestar se lhe é sonegado o acesso aos autos do inquérito sobre o objeto do qual haja o investigado de prestar declarações.

4. O direito do indiciado, por seu advogado, tem por objeto as informações já introduzidas nos autos do inquérito, não as relativas à decretação e às vicissitudes da execução de diligências em curso (cf. L. 9.296, atinente às interceptações telefônicas, de possível extensão a outras diligências); dispõe, em conseqüência a autoridade policial de meios legítimos para obviar inconvenientes que o conhecimento pelo indiciado e seu defensor dos autos do inquérito policial possa acarretar à eficácia do procedimento investigatório.

5. Habeas corpus deferido para que aos advogados constituídos pelo paciente se faculte a consulta aos autos do inquérito policial, antes da data designada para a sua inquirição."

(STF/DJU de 24/09/04, pág. 42)

Formou-se expressiva jurisprudência, sobretudo na Justiça Federal e no Superior Tribunal de Justiça, reconhecendo a possibilidade da decretação de sigilo nas investigações policiais, de maneira a impedir que o indiciado e seu advogado pudessem examinar o procedimento pré-processual.

Agora, o Supremo Tribunal Federal, através de sua Primeira Turma, relator o ministro Sepúlveda Pertence, decidiu, com apoio nas garantias constitucionais e com base no que vem disposto no art. 7.º, inciso XIV, da Lei n.º 8.906/94, que não pode ser sonegado ao advogado o acesso aos autos do inquérito sobre o objeto do qual o investigado deve prestar declarações.

Consta do voto do Relator (o acórdão, na íntegra, pode ser extraído do site do STF: www.stf.gov.br):

48. O sigilo decretado do inquérito pode justificar apenas que se reclame do advogado a prova de sua constituição pelo interessado, que o Estatuto da Advocacia dispensa na normalidade dos casos; não que se lhe negue a informação necessária à assistência técnica a prestar ao cliente, que é direito deste e prerrogativa profissional do seu advogado.

49. A partir daí é que o em. procurador-geral da República propõe limitar-se o acesso do advogado "às peças que digam respeito, exclusivamente à pessoa do investigado"

50. O alvitre é bem inspirado, mas não resolve o problema, porque transfere do advogado para a autoridade policial selecionar o que, dos autos do inquérito, interesse à orientação do cliente.

51. A conciliação dos interesses da investigação e do direito à informação do investigado nasce de outras vertentes.

52. A primeira é a clara distinção, no curso do inquérito policial, daquilo que seja a documentação de diligências investigatórias já concluídas – que há de incorporar-se aos autos, abertos ao acesso do advogado – e a relativa a diligências ainda em curso, de cuja decretação ou vicissitudes de execução nada obriga a deixar documentação imediata nos autos do inquérito.

53. "A investigação" – observa com acuidade Jacinto de Miranda Coutinho (Jacinto Nelson de Miranda Coutinho – O sigilo do inquérito policial e o advogado, RBCCrime 18/123, 131.) -, "respeitados os direitos e garantias individuais (…), não pode ser controlada ex ante. Não teria sentido, v.g., a autoridade policial comunicar aos eventuais interessados que irá perquerir pela vida particular de um suspeito. Mas o inquérito policial não é só isto. Ele é muito mais, ou seja, carrega consigo o segundo momento, aquele da produção da prova e, assim, da introdução no procedimento dos elementos de reconstituição do fato apurado."

54. À informação já introduzida nos autos do inquérito é que o investigado, por seu advogado, tem direito.

55. A interceptação telefônica é o caso mais eloqüente da impossibilidade de abrir-se ao investigado (e a seu advogado) a determinação ou a efetivação da diligência ainda em curso: por isso mesmo, na disciplina legal dela se faz nítida a distinção entre os momentos da determinação e da realização da escuta, sigilosos também para o suspeito, e a da sua documentada, que, embora mantida em autos apartados – e sigilosos para terceiros – estará aberta à consulta do defensor do investigado (cf. L. 9.296/96, art. 8.º): o mesmo procedimento pode aplicar-se à determinação e produção de outras provas, no inquérito policial, sempre que o conhecimento antecipado da diligência pelo indiciado possa frustrá-la.

56. Por sua vez, ao contrário do que sucede no processo, no inquérito a lei não determina o momento da inquirição do indiciado, o que possibilita à discrição da autoridade policial avaliar o instante adequado para fazê-lo, sem que o prévio conhecimento dos autos constitua obstáculo ao êxito da investigação.

57. Com essas observações, defiro o habeas corpus para que aos advogados constituídos pelo paciente se faculte a consulta aos autos do inquérito policial e a obtenção de cópias pertinentes, antes da data designada para a sua inquirição: é o meu voto.

Decisão unânime, votando com o relator os ministros Marco Aurélio, Cezar Peluso, Carlos Britto e Eros Grau.

Ronaldo Botelho é advogado e professor da Escola de Magistratura.