RECURSO ESPECIAL N.º 214.785-PB

REL.: MIN. GILSON DIPP

EMENTA: I. Não se vislumbra ofensa ao art. 43, inc. II, do Código de Processo Penal – que trata de hipótese de rejeição da denúncia – se a exordial acusatória foi recebida, sendo, contudo, julgada improcedente.

II. O caput do art. 6.º da Lei n.º 8.038/90 autoriza o relator do processo, após o recebimento da denúncia, julgá-la, desde logo, improcedente, se entender suficientes para tanto as provas já constantes dos autos.

III. Recurso desprovido.”

(STJ/DJU de 03/06/02, pág. 235)

O legislador infraconstitucional, ao editar a Lei n.º 8.038/90 (depois estendendo-a para os Estados pela Lei n.º 8.658 de 26/05/93), deu seqüência perfeita ao espírito da Constituição.

Primeiro, submeteu o recebimento da denúncia a órgão colegiado dos tribunais. Antes, como se sabe, nas ações de competência originária dos tribunais, a denúncia era recebida por despacho isolado do relator.

Depois, abriu uma terceira e fundamental porta: As opções são três, não mais apenas receber ou não a denúncia, quando só se examina o aspecto formal, se há ou não narrativa de crime em tese com base em inquérito ou fonte de prova equivalente; mas também a “improcedência” liminar da acusação.

Dispõe o art. 6.º, da Lei n.º 8.038/90:

“A seguir, o relator pedirá dia para que o tribunal delibere sobre o recebimento, a rejeição da denúncia ou da queixa, ou a improcedência da acusação, se a decisão não depender de outras provas”.

Essa “improcedência” certamente não está no texto para enfeitá-lo e sim, evidentemente, para permitir que o tribunal, numa visão mais ao fundo, sem ser um exame profundo e dependente de prova, pela experiência de seus membros – e por isso o colegiado -, distinga e possa afastar desde logo uma acusação que, embora formalmente correta, terminará em absolvição, imputação frágil em que se vislumbra o insucesso.

Eis, então, a coerência do sistema legal: Recebimento ou rejeição da denúncia; inovadoramente, o julgamento desde logo, com a improcedência da acusação. A cautela está na competência do colegiado, matéria a cargo dos regimentos internos – pode ser qualquer órgão fracionário dos tribunais; alguns cometem a competência a Câmara/Turma isoladas, outros a Grupos de Câmaras. E na experiência dos membros desses colegiados, que sabem distinguir o ímpeto acusatório da imputação vista serena e objetivamente, o joio do trigo, os casos que mereçam a instrução criminal, pois são desembargadores ou ministros.

Pois bem.

A presente decisão posta em destaque, da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, relator o ministro Gilson Dipp, vem ao encontro do verdadeiro espírito da Lei 8.038/90, posto que admitiu o julgamento pela improcedência da acusação, desde logo, na própria sessão em que a denúncia foi recebida.

O único reparo que nos atrevemos a fazer a esta decisão é que nos parece desnecessário o recebimento da denúncia para, em seguida, julgar improcedente a acusação. O reconhecimento da improcedência da acusação, a nosso ver, poderia ficar no plano da falta de justa causa para a rejeição da denúncia.

Porém, de uma forma ou de outra, o importante é o reconhecimento de que o julgamento pela improcedência da acusação pode ser feito liminarmente, evitando-se a imputação frágil de uma acusação desprovida de base mais consistente.

O exmo. sr. ministro Gilson Dipp (relator):

Trata-se de Recurso Especial interposto contra o acórdão proferido pelo Pleno do Tribunal de Justiça do Estado da Paraíba que, recebendo a denúncia oferecida contra o recorrido, julgou-a improcedente.

Consta dos autos que o recorrido, prefeito da cidade de Santana dos Garrotes, foi denunciado como incurso no art. 312 do Código Penal c/c o art. 1.º, incisos I e V, do Decreto-lei n.º 201/67.

O Tribunal a quo, por sua vez, recebeu a denúncia, julgando-a improcedente, contudo, por entender que não existiam sequer indícios que apontassem para o cometimento dos delitos pelos quais havia sido o prefeito denunciado.

Dessa decisão, foram opostos embargos de declaração, rejeitados às fls. 85/92.

Inconformado, o Parquet interpôs o presente recurso especial, sustentando ofensa ao art. 43, inc. III, última parte, do Código de Processo Penal e ao art. 6.º, caput, da Lei n.º 8.038/90, alegando que o Tribunal a quo não poderia ter, de plano, julgado improcedente a denúncia, com base exclusivamente na aprovação das contas do Município, pelo Tribunal de Contas do Estado. Indicou, ainda, divergência jurisprudencial.

O recurso foi recebido somente pela alínea “a” (fls. 110/113), decisão da qual não houve interposição de agravo de instrumento.

Conheço do recurso pela alínea “a”, porque satisfeitos os seus requisitos de admissibilidade.

Não assiste razão ao recorrente.

A decisão que se pretende desconstituir está firmada nos seguintes termos (fls. 69/71):

“Por outro lado, no respeitante ao mérito, insubsistente o pleito ministerial, diante dos elementos convincentes acostados ao processo, evidenciando, de maneira inequívoca a sua improcedência.

Os docs. de fls. 23/45, inclusive ao Acórdão n.º 161/97, de 14 de maio de 1997, do Tribunal de Contas do Estado, se harmonizam projetando a correção administrativa da gestão do Prefeito de Santana dos Garrotes, no exercício de 1995. Aliás, esta decisão cujo relator Conselheiro Flávio Sátiro Fernandes, foi recepcionada por unanimidade, emitindo parecer favorável a sua aprovação, desaparecendo, desta maneira a increpação anteriormente ofertada, constante do Acórdão n.º 291/95, de 04 de outubro de 1995, fls. 06/07.

De bom alvitre, também, registrar-se que a alegação da compra de um hospital em nome da esposa do denunciado, pelos termos da Certidão de fls. 23, do Órgão Fiscalizador, por si só, não oferece condição de sua admissibilidade, nos moldes expressos, especialmente pela falta de outros informes, indícios ou provas, da aquisição com numerários pertencentes ao município.

Por oportuno, em se tratando de saldo a descoberto, a leitura da defesa justifica plenamente o equívoco laborado, inexistindo má-fé ou culpa na sua consecução. A guia de recolhimento de fls. 24/27, comprova a devolução oportuna relativa a 1.531,19 ufirs.

Não se pode olvidar, de maneira alguma, a iniciativa espontânea, pioneira do acusado, juntando cópias de suas declarações de rendas, oferecendo ampla demonstração do seu patrimônio, recursos e bens, a permitir, induvidosamente, uma incursão na realidade do que dispõe, agindo, diferentemente de outros que procuram omiti-las.

Emerge, portanto, da análise percebida, nos elementos coligidos, inexistência de responsabilidade criminal a perquirir-se na tramitação de uma ação penal, máxime, quando não mais subsistem as razões ensejadoras de sua propositura.

(omissis)

Ademais, ficou demonstrado que o ato deliberativo, propiciador da delação, foi totalmente rescindido pelo noticiado em sua razões primeiras, perdendo a eficácia desde que substituído por uma nova decisão, a qual, conforme pode se verificar às fls. 31/32, não mais vislumbrou a presença de qualquer conduta infracionária por parte daquele que esteve à frente da administração do dinheiro do povo.

Assim, sem que se encontrem no processo outros instrumentos que indiquem, com o mínimo de segurança, o envolvimento do noticiado em irregularidades, torna-se insustentável a preambular acusatória.

Portanto, rejeitada a preliminar apresentada, e no mérito, por maioria de votos, julgou-se improcedente a denúncia, fulcrado no art. 6.º da Lei n.º 8.038, de 28 de maio de 1990.”

Como se percebe dos fundamentos da própria decisão guerreada, não se vislumbra ofensa ao art. 43, inc. III, parte final, do Código de Processo Penal, pois tal dispositivo cuida de hipótese de rejeição da exordial acusatória nos casos em que se verificar a carência de condição – definida em lei – para o exercício da ação penal.

Contudo, o que se verifica, in casu, é que a denúncia oferecida pelo Ministério Público foi efetivamente recebida, e, somente após, julgada improcedente.

Além disso, tal procedimento está amparado pelo próprio art. 6.º, caput, da Lei n.º 8.038/90, também apontado como violado -, o qual prevê que, em caso de ação penal originária, o relator, após o recebimento da denúncia, poderá julgar improcedente a acusação, se a decisão não depender de provas, outras, que não as já presentes.

Portanto, o que se verifica, na hipótese, é que não se constatam as ofensas aos dispositivos legais, apontadas na petição do recurso especial, pois o relator do processo, após o regular recebimento da denúncia, analisando o seu mérito e com base nas provas ali colacionadas, julgou improcedente a pretensão ministerial.

Neste sentido, a jurisprudência desta Corte”:

“Processual penal. Recurso especial. Prefeito municipal. Atraso de apenas 1 (um) dia na prestação de contas. Denúncia julgada improcedente.

Incabível a pretensão do Recorrente em ver a denúncia recebida, quando, em verdade, o acórdão recorrido não rejeitou a exordial, mas, sim, julgou improcedente a denúncia, adentrando no próprio mérito da acusação, entendendo não ter havido o dolo do prefeito em furtar-se à obrigação de prestar as contas anuais do município, haja vista que o atraso não passou de apenas 1 (um) dia.

Recurso não conhecido.”(RESP n.º 142.168/GO; Rel. ministro José Arnaldo da Fonseca; DJ 20/09/1999).

Diante do exposto, nego provimento no recurso.

É como voto.

Ministro Gilson Dipp – relator

Decisão unânime, votando com o relator os ministros Jorge Scartezzini, José Arnaldo da Fonseca e Felix Fischer.

Ronaldo Botelho é advogado e professor da Escola da Magistratura.

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