“HABEAS CORPUS N.º 83.583-0 – PE

Rel.: Min. Ellen Gracie

EMENTA

1. Tendo em vista que um dos denunciados por crime doloso contra a vida é desembargador, detentor de foro por prerrogativas de função (CF, art. 105, I, a), todos os demais co-autores serão processados e julgados perante o Superior Tribunal de Justiça, por força do princípio da conexão. Incidência da Súmula 704/STF. A competência do Tribunal do Júri é mitigada pela própria Carta da República. Precedentes.

2. HC indeferido.ª (STJ/DJU de 7/5/04, pág. 47)

Em 1992, o Supremo Tribunal Federal, em decisão plenária, por maioria de votos, sufragou o entendimento pelo qual, em caso de co-autoria em crime doloso contra a vida, envolvendo a participação de agente detentor de foro por prerrogativa de função e de agente sem foro privilegiado, deveria ocorrer a disjunção do processo de maneira que o titular da prerrogativa de foro fosse julgado pelo Tribunal pertinente e o co-autor, sem essa prerrogativa, pelo Tribunal do Júri:

“Competência. Crime doloso contra a vida. Co-autoria. Prerrogativa de foro de um dos acusados. Inexistência de atração. Prevalência do juiz natural. Tribunal do Júri. Separação dos processos.

“… 3 – O envolvimento de co-réus em crime doloso contra a vida, havendo em relação a um deles a prerrogativa de foro, como tal definida constitucionalmente, não afasta, quanto ao outro, o juiz natural revelado pela alínea d do inciso XXXVII do art. 5.º da Carta Federal. A continência, porque disciplinada mediante normas de índole instrumental comum, não é conducente, no caso, à reunião dos processos. A atuação de órgãos diversos integrantes do Judiciário, com duplicidade de julgamento, decorre do próprio texto constitucional, isto por não se lhe poder sobrepor preceito de natureza estritamente legal” (Ac. HC 69.325-GO – Plenário – j. 17.06.1992 – maioria de votos, rel. designado min. Marco Aurélio – DJU 04.12.1992, p. 23.058).” (Teoria e Prática do Júri, Adriano Marrey, RT, 6.ª ed., págs. 75/76)

Todavia, recentemente, em seção do dia 20 de abril de 2004, a Suprema Corte, através de sua segunda Turma, relatora a ministra Ellen Gracie, decidiu que mesmo nos processos por crime doloso contra a vida, existindo acusado detentor de foro por prerrogativa de função, devem ser observadas a conexão e a continência, com unidade de processo e julgamento no Tribunal pertinente, excluído Tribunal do Júri.

Consta do voto da relatora:

A senhora ministra Ellen Gracie – (relatora): O acórdão recorrido, a propósito da questão ora suscitada, salientou:

“Da competência do Tribunal do Júri, no crime de aborto, para os acusados sem prerrogativa de foro.

É certo que o inciso XXXVIII do artigo 5.º da Constituição assegura a competência do Tribunal do Júri para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida.

Ocorre que é também a lei maior que atribui competência ao Superior Tribunal de Justiça para processar e julgar, originariamente, nos crimes comuns, os desembargadores dos Tribunais de Justiça dos Estados (artigo 105, I, a).

O Código de Processo Penal, nos artigo 76 a 79, disciplina a competência nos casos de conexão ou continência, como na hipótese dos autos, quando a mesma infração houver sido praticada por mais de uma pessoa.

Razões de segurança, coerência e de economia impõem a unidade do processo.

Foge, por completo, aos referidos princípios e à lógica do razoável, causando enorme prejuízo para o alcance da verdade real e para a aplicação da lei, a pretendida separação do processo, em se tratando de um mesmo fato delituoso.

Ademais, sem embargo dos precedentes citados pela defesa, a análise que faço do artigo 78 do Código de Processo Penal enseja conclusão diversa. Diz o inciso I que, “no concurso entre a competência do júri e a de outro órgão da jurisdição comum, prevalecerá a competência do júri”. E o inciso II que, “no concurso de jurisdições de diversas categorias, predominará a de maior graduação”.

O júri é órgão da jurisdição comum e, quando em concurso com órgão jurisdicional de superior hierarquia, predomina este por ser o de “maior graduação”, consoante previsto no inciso III.

O artigo 79, de sua vez, determina que a “conexão e a continência importarão unidade de processo e julgamento, alvo: I – no concurso entre a jurisdição comum e a militar; e II – no concurso entre a jurisdição comum e a do juízo de menores”. A situação aqui figurada, como visto, não constitui exceção à regra da unidade do processo imposta pelo legislador processual penal.

Reconhecido que o foro especial por prerrogativa de função, constitucionalmente estabelecido, prevalece sobre o do Tribunal do Júri, assim também há de ser entendido para os co-autores em decorrência da conhecida vis attractiva.

Reconheço, dessarte, a competência deste eg. Superior Tribunal de Justiça para o julgamento da ação penal, pelo crime de aborto, contra os denunciados sem prerrogativa de foro.”

Incensurável a fundamentação do aresto do Superior Tribunal de Justiça que está, ademais, em conformidade com entendimento predominante desta Corte e já objeto da Súmula 704 que assim dispõe: “Não viola as garantias do juiz natural, da ampla defesa e do devido processo legal a atração por continência ou conexão do processo do co-réu ao foro por prerrogativa de função de um dos denunciados”. Assim, o fato de não mais compor o paciente o Tribunal Regional Eleitoral do Estado de Pernambuco, é absolutamente irrelevante e não altera a competência do Superior Tribunal de Justiça para o processo e julgamento de todos os denunciados, em face da conexão. O que releva, na espécie dos autos, é a co-autoria e o instituto da conexão, sendo, portanto, competente, o Superior Tribunal de Justiça, considerando que um dos denunciados é desembargador (CF, art. 105, I, a). No mais, e isso nem sequer foi objeto da impetração, a competência do Tribunal do Júri para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida é mitigada pela própria Carta da República quando prevê a prerrogativa de foro, tendo em vista a dignidade de certos cargos e a relevância destes para o Estado (HC 69.325, plenário, Marco Aurélio; HC 79.212, Marco Aurélio).

Diante do exposto, indefiro o habeas corpus.

Decisão unânime, votando com a relatora os ministros Nelson Jobim e Gilmar Mendes.

Ronaldo Botelho é advogado e professor da Escola da Magistratura.

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