Processual penal. Crime de tráfico ilícito de entorpecentes. Inobservância do rito procedimento estabelecido pela Lei nº 10.409/02. Ausência de defesa preliminar. Nulidade absoluta. Precedentes do STJ e do STF.

EMENTA

1. Aplica-se aos crimes de tóxicos o rito procedimental da Lei n.º 10.409/02, a qual derrogou, na parte processual, as disposições da Lei n.º 6.368/76.

2. A inobservância do rito procedimental estabelecido pela Lei n.º 10.409/02, constitui-se em nulidade absoluta, pois a ausência de apresentação de defesa preliminar desrespeita o princípio constitucional da ampla defesa e do contraditório, encerrando inegável prejuízo ao acusado.

3. Ordem concedida para declarar a nulidade ab initio do processo instaurado em desfavor dos ora Pacientes, desde o despacho de recebimento da denúncia, impondo-se ao juízo processante observar o rito da Lei n.º 10.409/2002 e, por conseguinte, assegurar aos Pacientes o direito de aguardar em liberdade o julgamento da ação penal, se por outro motivo não estiverem presos.

(STJ/DJU de 20/11/06, pág. 355)

Conforme consta da presente decisão da Quinta Turma do Supeior Tribunal de Justiça, Relatora a Ministra Laurita Vaz, a inobservância, nos casos de crimes de tráfico ilícito de entorpecentes, das disposições da Lei n.º 10.409/02 é causa de nulidade absoluta.

Exma. Sra. Ministra Laurita Vaz (Relatora):

A impetração merece acolhida.

Infere-se dos autos que o juízo singular, ao processar a ação penal instaurada em desfavor dos ora Pacientes, adotou o rito procedimental traçado na Lei n.º 6.368/1976, negando, portanto, aplicabilidade aos dispositivos processuais da Lei n.º 10.409/2002.

Entendo, todavia, que a decisão judicial em comento foi equivocada.

O uso do método de interpretação literal da lei, tal como foi utilizado pelo juiz monocrático, ao negar a vigência da Lei n.º 10.409/2002, é temerário. Compete, pois, ao magistrado o dever de encontrar, em cada caso, a norma ou a combinação de normas que se aplique ao fato concreto, solucionando o conflito da melhor forma possível.

A aplicação das leis envolve, por conseqüência, uma tríplice investigação: a existência da norma; o seu significado e valor; e a sua aplicabilidade.

Certo é que a parte de direito material, concernente à tipificação dos delitos de tráfico ilícito de entorpecentes, prevista na Lei n.º 10.409/2002, foi vetada. No entanto, as normas processuais especiais dispostas na referida lei, passaram a vigorar. Tem-se, portanto, que a Lei 6.368/1976 foi apenas revogada parcialmente, ou seja, derrogada.

Sendo assim, a instrução criminal dos crimes previstos na Lei Anti-Tóxicos de 1976 passou a ser regulada pela novel legislação especial, restando consagrado o princípio do garantismo penal, ao instituir a resposta escrita à acusação, antes do recebimento da denúncia.

Nesse diapasão:

?Ementa: HABEAS CORPUS. PROCESSO PENAL. TRÁFICO DE ENTORPECENTES. LEIS N.os 6.368/76 E 10.409/02. CONFLITO APARENTE DE NORMAS. APLICAÇÃO DO ART. 2.º, § 1.º, DA LEI DE INTRODUÇÃO DO CÓDIGO CIVIL. INOBSERVÂNCIA DO NOVO RITO. FALTA DE DEMONSTRAÇÃO DO EFETIVO PREJUÍZO CAUSADO À DEFESA. NULIDADE INEXISTENTE.

1. A Lei n.º 6.368/76 permanece em vigor naquilo em que não confronta com a Lei n.º 10.409/02, não podendo o magistrado deixar de aplicar o novo rito procedimental, que não foi vetado, produzindo efeitos desde a sua edição.

2. A melhor solução para esse conflito aparente de normas encontra-se no art. 2.º, § 1.º, da Lei de Introdução do Código Civil, segundo o qual ?a lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando com ela seja incompatível ou quando regule inteiramente toda a matéria de que tratava a anterior?.

3. A alegação de nulidade pela não observância do novo rito há de ser avaliada em cada caso, sempre tendo em conta o prejuízo que possa ter advindo para o acusado, a ser objetivamente demonstrado.

4. Habeas corpus denegado.? (HC n.º 24.779/MS, rel. Min. PAULO GALLOTTI, DJ de 20/9/2004)

Ressalte-se, ademais, que a inobservância do rito procedimental disposto na Lei n.º 10.409/02 ocasiona, inclusive, a declaração da nulidade do processo-crime, por descumprimento ao princípio da ampla defesa e do contraditório.

Cumpre, inicialmente, nesse particular, fazer uma breve digressão sobre o tema no âmbito da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça.

Inicialmente, quando do julgamento do HC n.º 26.900/SP, quedei-me vencida pelos meus pares, ao declarar que a observância da norma procedimental inserta no art. 38, da Lei n.º 10.409/02, era de ordem cogente pois traduzia a essência do princípio da ampla defesa e do contraditório, agasalhados pelo sistema processual criminal vigente e pelo ordenamento constitucional.

Todavia, o voto divergente proferido pelo ilustre Min. JORGE SCARTEZZINI, seguido pelos demais Ministros da Quinta Turma, declarou que a inobservância do rito procedimental estabelecido pela novel legislação se configura tão-somente em nulidade relativa.

Tal entendimento, hoje, encontra-se superado pelo Supremo Tribunal Federal.

É, aliás, o que se extrai do informativo de jurisprudência n.º 436, do Pretório Excelso, que, ao julgar o HC n.º 87.346/MT, declarou a nulidade da instrução criminal por inobservância do rito previsto, in verbis:

?A Turma, por maioria, deferiu habeas corpus impetrado contra acórdão do STJ que denegara idêntica medida ao fundamento de falta de demonstração de prejuízo pela inobservância do art. 38 da Lei 10.409/2002. No caso, o paciente fora inicialmente denunciado pela suposta prática, em concurso material, de crimes contra a ordem tributária e de lavagem de dinheiro (Lei 8.137/90, art. 1.º, I e Lei 9.613/98, art. 1.º, § 1.º, II), vindo a denúncia a ser aditada para incluir os delitos de tráfico de entorpecentes e de associação para o tráfico (Lei 6.368/76, artigos 12 e 14). Após o recebimento desse aditamento, decretara-se a prisão preventiva do paciente e de co-réu. Entendeu-se não assegurado o exercício do contraditório prévio determinado pelo aludido art. 38 da Lei 10.409/2002, em afronta ao seu direito de defesa. Em conseqüência, tendo em conta a imbricação da custódia preventiva com o mencionado aditamento, asseverou-se que aquela não poderia subsistir. O Min. Sepúlveda Pertence, por sua vez, em face da ausência de fundamentação idônea, deferiu o writ por considerar que o decreto de prisão preventiva embasara-se em presunções quanto à periculosidade do paciente e a sua influência na instrução criminal. Vencidos os Ministros Ricardo Lewandowski, relator, e Carlos Britto que deferiam parcialmente o habeas corpus, mantendo a prisão do paciente, por reputar que os seus fundamentos não abrangiam apenas os crimes tipificados na Lei de Tóxicos. HC 87346/MT, rel. orig. Min. Ricardo Lewandowski, rel. p/ o acórdão Min. Carmen Lúcia,15.8.2006. (HC-87346)?.

Nesse sentido, tem-se que a ausência de apresentação de defesa preliminar constitui nulidade absoluta, pois desrespeita o princípio constitucional da ampla defesa e do contraditório, encerrando inegável prejuízo ao paciente.

Ressalte-se, por oportuno, que tal entendimento era, há muito, seguido também pela Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça:

?Ementa: HABEAS CORPUS. PROCESSO PENAL. ART. 38 DA LEI 10.409/02. INOBSERVÂNCIA. NULIDADE ABSOLUTA. ORDEM CONCEDIDA.

A inobservância do procedimento previsto no art. 38 da Lei n.º 10.409/02 enseja a nulidade absoluta do processo.

Ordem concedida.? (HC n.º 38.522/SC, rel. Min. PAULO MEDINA, DJ de 24/10/2005)

?Ementa: HABEAS CORPUS. PROCESSO PENAL. ART. 38 DA LEI 10.409/02. INOBSERVÂNCIA. NULIDADE ABSOLUTA. ORDEM CONCEDIDA.

A inobservância do procedimento previsto no art. 38 da Lei n.º 10.409/02 enseja a nulidade absoluta do processo.

Ordem concedida em parte para anular a ação penal.? (HC n.º 40.562/PE, rel. Min. HAMILTON CARVALHIDO, DJ de 22/08/2005)

Concluindo, impende dizer que, embora a Lei n.º 10.409/02 tenha sido expressamente revogada pela Lei n.º 11.343/06, é sabido que as normas processuais são regidas pelo princípio ?tempus regit actum?, ou seja: aplica-se ao processo as normas procedimentais vigentes à época dos fatos. Assim, a instrução criminal ora examinada deverá ser ab initio anulada, devendo, ainda, o juízo processante adotar e observar o rito procedimental previsto na Lei n.º 10.409/02.

Ante o todo exposto, CONCEDO a ordem postulada para DECLARAR a nulidade ab initio do processo instaurado em desfavor dos ora Pacientes, desde o despacho de recebimento da denúncia, impondo-se ao juízo processante observar o rito da Lei n.º 10.409/2002, bem como para determinar a expedição de alvará de soltura em favor dos Pacientes, se não estiver preso por outro motivo, concedendo-lhes, assim, o direito de aguardarem em liberdade o julgamento da ação penal.

É como voto.

Decisão unânime, votando com o Relator os Ministros Arnaldo Esteves Lima, Felix Fischer e Gilson Dipp.

Ronaldo Botelho é advogado e professor da Escola da Magistratura.