Processual penal. Crime de abuso de autoridade. Transação penal. Possibilidade, desde o advento da Lei n.º 10.259/2001.

“HABEAS CORPUS N.º 22.881/RS

REL.: MIN. FELIX FISCHER

EMENTA: 1 – Com o advento da Lei n.º 10.259/2001, que instituiu os Juizados Especiais Criminais na Justiça Federal, por meio de seu art. 2.º, parágrafo único, ampliou-lhe o rol dos delitos de menor potencial ofensivo, por via da elevação da pena máxima abstratamente cominada ao delito, nada se falando a respeito das exceções previstas no art. 61 da Lei n.º 9.009/95.

II – Desse modo, devem ser considerados delitos de menor potencial ofensivo, para efeito do art. 61 da Lei n.º 9.009/95, aqueles a que a lei comine, no máximo, pena detentiva não superior a dois anos, ou multa, sem exceção.

III – Assim, ao contrário do que ocorre com a Lei n.º 9.009/95, a Lei n.º 10.259/2001 não excluiu da competência do Juizado Especial Criminal os crimes que possuam rito especial, alcançando, por conseqüência, o crime de abuso de autoridade.

Writ concedido.”

(STJ/DJU de 26/5/03, pág. 371)

Desde o advento da lei n.º 10.259/2001, todo o delito punido com pena até o máximo de 2 (dois) anos comporta transação penal, independentemente do estatuto de sua previsão: comum ou especial. Assim decidiu o Superior Tribunal de Justiça, através de sua Quinta Turma, relator o ministro Félix Fischer.

Consta do voto do relator:

O Exmo. sr. Ministro Félix Fischer: A irresignação do paciente merece acolhida.

Com efeito, de acordo com a Lei dos Juizados Especiais Criminais (art. 61 da Lei n.º 9.099/95), em sua redação original, são consideradas infrações de menor potencial ofensivo, sujeitando-as à sua competência: a) as contravenções penais; b) os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 1 (um) ano, excetuados os casos em que a lei preveja procedimento especial. De acordo com esse conceito, excluem-se do Juizado Especial Criminal os delitos que possuam rito especial, alcançando, por exemplo, os crimes de abuso de autoridade, porte de entorpecentes, prevaricação e outros.

Entretanto, como advento da Lei n.º 10.259/2001, que instituiu os Juizados Especiais Criminais na Justiça Federal, por meio de seu art. 2.º, parágrafo único, ampliou-se o rol dos delitos de menor potencial ofensivo por via da elevação da pena máxima abstratamente cominada ao delito, nada se falando a respeito das exceções, ou seja, estendendo mais ainda o conceito de infração de menor potencial ofensivo.

Assim, conforme o entendimento do prof. Damásio E. de Jesus, in lei dos Juizados Especiais Criminais Anotada, Ed. Saraiva, 7.ª edição, p. 21/22, “Os dois dispositivos cuidam do mesmo assunto, qual seja, conceituação legal de crime de menor potencial ofensivo, empregando, porém, regras diversas: enquanto a anterior excetua, reduzindo o campo de incidência da norma, a segunda generaliza, ampliando-o. Diante disso, de prevalecer a posterior, inegavelmente de direito penal material. Mais benéfica, estendendo a relação dos crimes de menor potencial ofensivo, derroga a anterior (CF, art. 5.º, XL; CP, art. 2.º, parágrafo único). Interpretação diversa conduz a situações de flagrante desigualdade jurídica. Assim, o crime de abuso de autoridade, previsto na Lei n.º 4.898/65, por ter rito processual especial, não é da competência de Juizado Especial Criminal (STF, HC 77.216, 1.ª Turma, rel. ministro Sepúlveda Pertence, DJU 21 ago. 1998, p. 4). Aplicada literalmente a lei nova, teríamos as seguintes conseqüências, dependendo da qualificação jurídica do autor: 1.º) crime da competência da Justiça Federal: Juizado Especial Criminal da Justiça Federal; 2.º) delito da competência da Justiça Comum: Inaplicabilidade da Lei n.º 9.099/95. Em suma, entendemos que o parágrafo único do art. 2.º da Lei n.º 10.259/2001 derrogou também a parte final do art. 61 da Lei dos Juízados Especiais Criminais (Lei n.º 9.099 9.099/95), aplicando a sua extensão (entendimento original de Luiz Flávio Gomes, Lei dos Juizados Federais aplica-se aos Juizados Estaduais, in www.direitocriminal.com.br, 27/7/2001). Em conseqüência, devem ser considerados delitos de menor potencial ofensivo para efeito do art. 61 da Lei n.º 9.099/95 aqueles a que a lei comine, no máximo, pena detentiva não superior a dois anos, ou multa, sem exceção. De maneira que os Juizados Especiais Criminais da Justiça Comum Estadual passam a ter competência sobre todos os crimes a que a norma de sanção imponha, no máximo, pena detentiva não superior a dois anos (até dois anos), ainda que tenham procedimento especial.”

Desse modo, com o advento da Lei n.º 10.259/2001, em que pese o específico sistema punitivo da Lei 4.989/65 (penas de multa, detenção, perda de cargo e inabilitação) possível é, em princípio, a incidênciados institutos despenalizadores para o crime de abuso de autoridade.

No mesmo sentido Victor Eduardo Rios Gonçalves:

“Ocorre que, analisando o art. 2.º, par. Único, da Lei 10.259/01, surge a necessidade de salientar que as conseqüências da nova definição são ainda maiores. Com efeito, ao contrário do que ocorre com a Lei n.º 9.099/95, o novo texto não excluiu da competência do Juizado Especial Criminal os crimes que possuam rito especial, alcançando, por exemplo, os delitos de porte de entorpecentes, prevaricação, abuso de autoridade e outros, quer sejam de competência da Justiça Federal ou da Estadual.” (Gonçalves, Victor Eduardo Rios. O Novo Conceito de Infração de Menor Potencial Ofensivo. São Paulo: Complexo Jurídico Damásio de Jesus, jan. 2002. Disponível em www.damasio.com.br/novo/html/frame-artigos)” (Fls. 264/265).

Para tanto, conforme bem ressaltado pelo ilustre representante do Parquet Federal (fl. 265), “deve reger o princípio de proporcionalidade. O juiz, em cada caso, deve analisar acerca da culpabilidade do agente e verificar se é suficiente a transação penal como medida repressiva para o delito cometido. Nesse sentido Ada Pellegrini Grinover, Antônio Magalhães Gomes Filho, Antônio Scarance Fernandes e Luiz Flávio Gomes:

“Como se vê, o sistema punitivo previsto para os detalhes de abuso de autoridade é especial (não se pode questionar), mas não é inflexível. Leia-se: a pena de perda de cargo não deve ser imposta sempre. Cabe ao juiz, em cada caso concreto, decidir qual ou quais penas irá fixar. Rege aqui o princípio da suficiência (e o da proporcionalidade). Cada um deve ser punido na medida de sua culpabilidade.

Ora, se na própria cominação legal nada existe de inflexível, isto é, se cabe ao juiz, em cada caso concreto, decidir qual a resposta ou quais as respostas penais mais adequadas, então impõe-se concluir examinando, uma delas (ou, melhor, mais uma delas) é a da transação penal, afastando-se, evidentemente, a possibilidade de transacionar sobre a perda de cargo (que, repita-se, é uma pena que nem sempre deve ter incidência).

Em fatos graves, gravíssimos, certamente o juiz refutará a transação penal (nos termos do art. 76, § 2.º), por não ser ela suficiente para reprovar a culpabilidade do agente. Isso ocorrendo, instaura-se o processo criminal e no final o juiz imporá as sanções cabíveis.

De outro lado, observe-se que o Código Penal (art. 92) pode servir de parâmetro para o juiz, e este diploma legal só permite a pena de perda de cargo quando a privativa de liberdade alcance pelo menos um ano.” (Juizados Especiais Criminais: comentários à Lei 9.099, de 26/09/1995. 4.” Ed. ver., ampl. e atual, de acordo com a Lei 10.259/2001. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 379/380).”

Desse modo, considerando-se que o delito pelo qual foi o paciente denunciado constitui infração de menor potencial ofensivo, de acordo como parágrafo único, do art. 2.º da Lei n.º 10.259/2001, concedo a ordem para anular todos os atos processuais desde o recebimento da denúncia, inclusive, para que outro julgamento seja realizado, analisando-se, previamente, a possibilidade de oferecimento de proposta de transação penal por parte do Ministério Público.

É o voto.

Decisão unânime, votando com o relator os ministros Gilson Dipp, Jorge Scartezzini, Laurita Vaz e José Arnaldo da Fonseca.

Ronaldo Botelho

é advogado e professor da Escola da Magistratura.