Processual penal. Apelação do júri. Limites. Formalismo que não pode ser exagerado. Fixação do inconformismo nas razões recursais.

“RECURSO ESPECIAL N.º 187.471-DF

Rel.: Min. Gilson Dipp

EMENTA

I. Ainda que se tratando de apelação do júri – com natureza sabidamente restrita quanto aos limites da irresignação – que são fixados quando da interposição do recurso, não se deve emprestar exagerado formalismo à regra.

II. Sobressaindo evidente equívoco na indicação de alíneas do artigo de lei em que se fulcrou o apelo, deve se ter, como limites da apelação, as razões que externaram os motivos do recurso, pois a petição de interposição não pode ser considerada isoladamente, no presente caso.

III. As razões da apelação visam justamente à complementação da petição de interposição do recurso, delimitando o seu alcance ao apontar os próprios fundamentos de fato e de direito que embasaram a irresignação.

IV. Recurso provido para cassar a decisão recorrida e determinar que o tribunal a quo julgue o mérito do recurso de apelação interposto pelo Ministério Público do Distrito Federal e Territórios.” (STJ/DJU de 5/8/02, pág. 371)

Durante muito tempo vigorou na jurisprudência das instâncias extraordinárias o entendimento segundo o qual, pela natureza da apelação das decisões do júri, a fixação dos limites do inconformismo somente poderia ocorrer na petição ou no termo de apelação. Assim, se a petição ou termo não contivessem nenhuma das alíneas do inciso III, do art. 593 do CPP (a, b, c ou d) o recurso não poderia ser conhecido; se a invocação fosse pela letra a, não poderia o recurso ser conhecido pela letra d, e etc..

Nesta decisão da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, relator o ministro Gilson Dipp, esse antigo rigorismo é abrandado para admitir que as razões recursais possam fixar os limites do inconformismo

Consta do voto do relator:

O exmo. sr. Ministro Gilson Dipp (relator):

Trata-se de Recurso Especial interposto pelo Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, pretendendo-se desconstituir o acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, que negou provimento ao recurso de apelação interposto pelo parquet, através do qual se pretendia o agravamento da pena – bem como do regime de seu cumprimento – imposta ao recorrido pela prática, em tese, do crime de homicídio simples.

Consta dos autos que o recorrido foi denunciado como incurso no art. 121, § 2.º, inciso II, do Código Penal, vindo a ser pronunciado nos termos do caput art. 121 do mesmo diploma legal.

Submetido ao Tribunal Popular, o recorrido foi absolvido.

Desta decisão, o Ministério Público apelou, sustentando a ocorrência de julgamento contrário à prova dos autos.

Provido o recurso ministerial, o recorrido foi submetido a novo Tribunal do Júri, sendo, por ocasião deste julgamento, condenado à pena de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de reclusão, em regime semi-aberto.

Inconformados, recorreram o réu – pretendendo a anulação do julgamento em razão de decisão manifestamente contrária à prova dos autos ou a redução da reprimenda pelo reconhecimento da figura do privilégio -, e o parquet, com base no art. 593, III, al. “b”, visando ao agravamento da pena e do regime de seu cumprimento.

O recurso do réu foi negado, entendendo o tribunal a quo que seria incabível o reconhecimento do privilégio – não aceito pelo Tribunal do Júri – em sede de apelação, bem como seria inviável nova anulação do julgamento com base em decisão contrária à prova dos autos.

Por seu turno, ao recurso ministerial também foi negado provimento, pois a Primeira Turma do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios entendeu que houve ampliação das razões recursais, em relação ao termo de interposição, do qual constava somente a alínea “b” do inciso III do art. 593 – sentença contrária à lei expressa -, sendo que as razões indicaram inconformismo, também, quanto a erro ou injustiça na aplicação da pena.

Diante disso, foi interposto o presente recurso especial, em que o recorrente alega negativa de vigência ao art. 593, III, alíneas “b” e “c” do Código de Processo Penal, pretendendo a anulação do acórdão recorrido, para que se aprecie o mérito do recurso de apelação interposto.

Assiste razão ao recorrente.

O cerne em questão é definir se os limites da apelação são fixados pelo termo de sua interposição ou pelas suas razões, que externam os motivos do recurso.

Ainda que se tratando de apelação no júri – com natureza sabidamente restrita -, penso que, no caso concreto, não se deve emprestar exagerado inconformismo à regra.

É certo que os limites da irresignação são fixados quando da interposição do recurso. Entretanto, no presente caso sobressai evidente equívoco na declinação das alíneas, pois as razões explicitadas revelam o inconformismo quanto à outra parte do art. da Lei em que se fulcrou o apelo.

Desta forma, entendo que a petição de interposição do recurso não pode ser considerada isoladamente, pois as razões visaram justamente à sua complementação, delimitando o seu alcance, ao apontarem os próprios fundamentos de fato e de direito que embasaram a súplica.

Dessarte, verifica-se que, embora o termo de recurso tenha sido firmado apenas com base na alínea “b” do inciso III do art. 593 do Código de Processo Penal, as razões posteriormente apresentadas delinearam a extensão do inconformismo, quanto à aplicação da pena, pelo juiz do Tribunal do Júri. Confira-se o seguinte trecho das razões:

“Em que pese o brilhantismo jurídico do MM. Juiz Presidente, sua excelência incidiu em lamentável equívoco ao fixar a pena base em 7 (sete) anos e seis meses de reclusão, tornando-a definitiva em 6 (seis) anos e seis meses de reclusão em razão da circunstância atenuante da confissão espontânea, bem como ao estabelecer o regime inicial semi-aberto para o cumprimento da pena.

Ora, como bem admitiu o ilustre magistrado a quo, às fls. 322, as circunstâncias do crime são desfavoráveis ao réu, pois mesmo a vítima tendo se identificado, mesmo assim levou em frente o seu intento até chegar ao desfecho fatal.

(omissis)

Em face do exposto, aguarda a Promotoria de Justiça o provimento do recurso pelas razões acima expendidas, para que seja aumentada a pena privativa de liberdade aplicada ao acusado, bem assim que seja estabelecido o regime fechado como início de cumprimento da pena (…)”.

Assim, não há como negar que as razões trazidas pelo parquet é que traçaram os limites de sua insubmissão, quanto à decisão recorrida.

Neste sentido, os seguintes precedentes desta corte:

“Criminal. HC. Nulidade. Limites da apelação. Decisão ultra petita. Consideração de agravante não explicitada nas razões do recurso apreciado. Ordem concedida.

Se a petição recursal é complementada por razões que a restringem, tem-se que tal arrazoado fixa o limite que não pode ser extrapolado pelo Órgão Revisor – que deve ficar restrito aos pontos ali especificados, sob pena de afronta ao princípio do tantum devolutum quantum appellatum.

É nulo o acórdão que, ao reformar sentença absolutória para condenar o réu, considera circunstância agravante não declinada nas razões do recurso ministerial então examinado.

Ordem concedida para anular o acórdão impugnado a fim de que outra decisão seja proferida, dentro dos limites da apelação ministerial.”

(HC n.º 13.354/SP; de minha relatoria; DJ 24/3/2001)

“Penal e processual penal – Habeas corpus – Nulidade da apelação inexistente – Divergência de provas – Impossibilidade de conhecimento na via eleita – Revisão – Estupro ficto não é crime hediondo – Regime semi-aberto.

– A expressão “outros” utilizada pelo parquet na petição de apelação, apesar de tecnicamente imperfeita, não enseja nulidade, pois há que se considerar as razões do apelo, que objetivam a sua complementação.

– O cotejo entre a r. sentença e o v. acórdão a quo, aliado à leitura dos depoimentos prestados em juízo, conduz à inarredável conclusão de divergência entre as provas apresentadas. Com efeito, a controvérsia gira em torno de questões cujo deslinde exige o exame de todo o material cognitivo, diante da natureza dos fatos imputados e da controvéria apresentada, sendo incorreta a via processual eleita, devendo, certamente, ser melhor examinada toda a questão em sede revisional.

– O estupro ficto não se encontra arrolado como crime hediondo (Lei n.º 8.072/90), assinalando-se que a enumeração contida no art. 1.º é restritiva, não comportando qualquer interpretação, porquanto deve ater-se ao limite legislativo nela contido, sendo inútil qualquer acréscimo e prejudicial toda restrição. Logo, é de aplicar-se, à espécie, a regra contida no art. 33, parágrafo 2.º, “b”, do Código Penal (semi-aberto), afastando-se o óbice do parág. 1.º do art. 2.º da Lei n.º 8.072/90.

– Precedentes (STF, HC n.º 78.305/MG e STJ. HC n.º 9.642/MS.

– Ordem, de ofício, concedida.” (HC n.º 11.107/SP; relator para ementa min. Jorge Scartezzini; DJ 26/6/2000)

Saliente-se, ainda, que, intimado das razzões de apelação, o réu apresentou contra-razões, demonstrando que os fatos e argumentos vazados naquela peça possibilitaram ampla defesa na contraminuta.

Por fim, ainda acolho as razões do parecer ministerial, que elucidaram com precisão a controvérsia (fls. 421/422):

“Com efeito, o entendimento do tribunal a quo mostra-se excessivamente formalista, deixando de analisar o recurso de apelação interposto pelo parquet apenas por estar baseado em alínea equivocada da norma que autoriza a interposição do apelo, quando, pelas razões de recurso, pode-se perfeitamente detectar a amplitude do inconformismo.

A apelação, no júri, tem natureza restrita, ficando o tribunal adstrito aos motivos invocados no ato de interposição do recurso. Vale dizer, no momento da apresentação do termo de apelação é que se fixam os limites da irresignação ao apelante. A orientação é pacífica no Supremo Tribunal Federal: `o princípio tantum devolutum quantum appellatum sofre, no que concerne à sua aplicabilidade, sensível restrição no procedimento recursal instaurado pela interposição de apelação das decisões proferidas pelo Tribunal do Júri. A apelação criminal, no procedimento do júri, não devolve, ordinariamente, ao Tribunal `ad quem’, o integral conhecimento da causa penal. A instância superior fica necessariamente limitada aos motivos invocados pelo apelante no ato de interposição recursal’. (Habeas Corpus n.º 681.093).

Outrossim, a delimitação do fundamento da apelação deve estar clara, de preferência quando da interposição do termo do recurso. Entretanto, nada impede que a limitação ocorra nas razões de apelação, desde que se possa, com clareza, identificar exatamente do que se recorre. É esse o caso dos presentes autos.

Não obstante o equívoco da indicação da alínea `b’, quando o certo seria a alínea `c’, o Ministério Público, recorrente, delimitou, com precisão, o objeto do recurso, deixando claro, nas razões recursais (fls. 348/351), que recorria apenas da fixação da pena pelo juiz presidente do Tribunal do Júri, com a finalidade de ver aumentada a sanção imposta e agravado o regime prisional estabelecido na r. sentença.

O rigor pode ser abrandado até mesmo quando não conste, do termo de apelação, o embasamento legal da interposição do recurso. Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça já decidiu que `não constando do termo o embasamento legal da interposição do apelo e sendo a destempo as razões ofertadas, o recurso deve ser recebido como impugnando apenas o veredicto… (Resp n.º 157.364/RS; relator ministro José Arnaldo da Fonseca).

Em assim sendo, correto o recorrente, devendo ser anulada a decisão recorrida, para que o tribunal julgue o mérito da apelação interposta pelo Ministério Público.”

Diante do exposto, dou provimento ao recurso para cassar a decisão recorrida e determinar que o tribunal a quo julgue o mérito do recurso de apelação interposto pelo Ministério Público do Distrito Federal e Territórios.

É como voto.

Ministro Gilson Dipp

Relator

Decisão unânime, votando com o relator os ministros Jorge Scartezzini, Edson Vidigal, José Arnaldo da Fonseca e Félix Fischer.

Ronaldo Botelho

é advogado e professor da Escola da Magistratura.