“RECURSO ESPECIAL N.º 356.368 – BA

REL.: MIN. JOSÉ DELGADO

EMENTA – 1. As regras de indeferimento da petição inicial recebem interpretação restritiva.

2. O indeferimento da petição inicial é medida extrema que só deve ser aplicada após a abertura do prazo de 10 (dez dias) ao autor para mandá-la ou anexar documento essencial à causa.

3. Está conforme com o ordenamento jurídico ingresso em juízo de ação de cobrança com a juntada do contrato, de confissão da dívida e de demonstrativo dos serviços prestados.

4. Se, no curso da lide, não for possível fixar o valor devido, em caso de procedência do pedido, o juiz deve determinar que a liquidação obedeça ao procedimento por artigos.

5. Recurso provido para se deferir a petição inicial, prosseguindo-se o feito com a realização da instrução e conseqüente julgamento da lide.”

(STJ/DJU de 25/3/02, pág. 196)

Se o juiz, verificando que a exordial não vem instruída com as peças indispensáveis à propositura da demanda, fixará o prazo de 10 (dez dias para que a parte interessada venha suprir tal omissão que, se não for devidamente suprida, ensejará a extinção do processo sem julgamento do mérito.

Assinalou, ainda, o julgado, que a lei não exige que os fatos sejam relatados na inicial de forma exaustiva e pormenorizada, apenas que a exposição seja inteligível e vazada em termos que permitam a exata individualização dos fatos e que transmitam os dados necessários para a elaboração pela parte contrária de sua defesa.

Nesse sentido, a presente decisão da Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça, relator o ministro José Delgado, com o seguinte voto:

O sr. ministro José Delgado (relator):

Conheço do recurso. A questão central de mérito foi amplamente debatida no segundo grau. O egrégio Tribunal, com base nos limites dos fundamentos apresentados pelas partes, manteve a sentença de primeiro grau que indeferiu petição inicial de ação de cobrança, sob o fundamento de o autor não haver apresentado, desde logo, documentação inequívoca a respeito do valor pretendido receber.

O recurso merece provimento. O indeferimento de petição inicial é medida extrema a ser adotada. Só há de ser prestigiada quando presentes os pressupostos registrados, de modo cogente, na Legislação Adjetiva Civil.

Destaco, no exame do recurso em debate, o voto-vencido de fls. 814/817, cuja fundamentação está harmônica com as regras do nosso ordenamento jurídico:

“No que respeita à sentença do juiz a quo que julgou inepta a inicial, não vejo como prosperar.

Colhe-se da leitura destes autos que o apelante anexou à inicial a prova dos fatos constitutivos do seu direito, nos termos do art. 333, inciso I, da lei Formal, consistentes nos instrumentos do contrato, de prestação de serviços, aditivos e confissão de dívidas. Dito feito, no que pertine a esses documentos não é sequer objeto de controvérsia, porém, o juiz de primeiro grau sustentou que inexistem nos autos elementos capazes de elucidar dúvidas e valores.

Mas, admitindo tão só para argumentar que documentos essenciais, indispensáveis para a propositura da ação não tivessem sido anexados, o juiz a quo não poderia, de modo algum extinguir o processo, como extinguiu, sem determinar, nos termos do art. 284 do Código de Processo Civil, que a apelante completasse a inicial, no prazo de (10) dez dias.

Em prol desta fundamentação, valho-me do julgado, abaixo ementado:

O juiz, verificando que a exordial não vem instruída com as peças indispensáveis à propositura da demanda, fixará o prazo de dez dias para que a parte interessada venha a suprir tal omissão que, se não for devidamente suprida, ensejará a extinção do processo sem julgamento do mérito – art. 267 do CPC (Ac. unân. da 5.ª T, do TRF de 10/12/84, em apel. no MS 101.524-RJ. rel. min. Geraldo Sobral: RTFR 124/227).

Por outro lado, a meu sentir, o juiz a quo também comentou “error in judicando” ao indeferir a inicial, baseado em que a forma de pagamento estipulada no contrato “comporta diversos fatores; índices; percentuais; parcelas específicas, como viagens, diárias, serviços gráficos, encargos sociais, enfim, uma infinidade de componentes que fogem ao julgador, a impossibilidade de adequação, do fato da vida, consubstanciado nos elementos probatórios, com respectivo enquadramento legal”, em suma, que devido à complexidade do contrato, inclusive, em razão do seu objeto, motivou a impossibilidade ou a dificuldade da apelada contestar a ação, porquanto não evidenciou a apelante, de forma analítica, ou seja, a plausibilidade de cada parcela e a exatidão do quantum debeatur. Quem quer que leia a contestação de fls. 178/208 verificará que a apelada contestou, de modo amplo a inicial, não deixando evidenciada qualquer dificuldade, para tanto. Doutra sorte, se era impossível ao decisor concluir sobre a exatidão do valor cobrado nem assim, poderia, simploriamente como procedeu, indeferir a inicial por inepta, ainda que a mesma apresentasse defeitos.

Em amparo deste entendimento, invoco os arestos abaixo transcritos:

Não exige a lei que os fatos sejam relatados na inicial de forma exaustiva e pormenorizada, o que se exige é que pelo menos a exposição seja inteligível e vazada em termos que possibilitem a exata individuação dos fatos e que transmitam os dados necessários para a elaboração pela parte contrária da sua defesa” (Do ac. unân, da 18.ª Câm. do TJSP de 19/12/88, na apel. 138.62902, rel. des. Breno Marcondes; RJTJSP 119/198).

“Se, a despeito das imperfeições da petição inicial, foi o pedido devidamente interpretado por um dos réus, que o contestou, revelando-se de modo claro perante o julgador a relação de direito material da lide, não se justifica o julgamento extintivo do processo sem apreciação do mérito por inépcia da inicial – CPC, art. 282, III -, impondo-se o prosseguimento do feito com o julgamento meritório da pendência (Ac. unân. da 3.ª Câm. do TA Civ. RJ de 5/6/85, na apel. 27.314, rel. juiz Astrogido de Freitas)””. – (In Código de Processo Civil Anotado” Vol. I, 5.ª edição, pág. 1192, de Alexandre de Paula.

Demais disso, tratando-se de uma ação ordinária de cobrança se à luz dos documentos juntados à peça proemial, devido à complexidade dos cálculos para a verificação do valor exato cobrado, ainda assim, não poderia o juiz a quo negar-se a prestação jurisdicional, fundamentado em que os valores expressos pela apelante’ estavam “Submetidos a correções históricas, de índices ocultos, não permitindo sequer a um experto a compreensão dessa matemática”.

Primeiro, porque, salientando que nenhum perito poderia elucidar, destrinchar sobre a exatidão dos cálculos, prejulgou.

Segundo, porque em se tratando de uma ação ordinária de cobrança, juridicamente, de conhecimento, onde se busca a evidenciação do direito, cumpria ao juiz a quo determinar o procedimento de ampla investigação probatória através de prova pericial para verificar-se a exatidão ou não do crédito postulado na inicial.

Isto posto, o meu voto é pela anulação do ato sentencial, determinando que se proceda a instrução deste feito com a produção de prova pericial e demais provas que se impuserem para, posteriormente, ser proferida outra sentença.”

Não se pode ignorar, no exame da lide em discussão, que a empresa recorrente fez juntar à sua petição inicial os contratos celebrados com a ré, os respectivos aditamentos e um instrumento de confissão de dívida. Anexou, ainda, documentos comprovando confissões intermediárias da dívida assinados pela demandada, faturas e demonstrativos analíticos dos serviços prestados.

Saliento, também, a influência, para o provimento do presente recurso, das razões que a recorrente desenvolveu nos seus embargos infringentes, cujos termos passo a transcrever (fls. 843/846):

“Os documentos indispensáveis indicados pelo art. 283 do Código de Processo Civil são aqueles que impedem o próprio julgamento do mérito. Ao exigir a presença das faturas e respectivos demonstrativos, o v. acórdão desejou que o autor indicasse precisamente, já no momento da propositura, o valor do quantum debeatur, ou seja, exigiu a liqüidez, mesmo sendo o processo de conhecimento e não o executivo.

Como ponderou o prof. Cândido Rangel Dinamarco em seu novo parecer: “A douta maioria tratou o caso como se estivesse diante de um processo de execução, não cognitivo. As “omissões” que apontou dizem respeito à liqüidez do crédito, que é uma necessidade no processo executivo e não no de conhecimento. Os demonstrativos que a douta maioria entendeu indispensáveis não seriam outra coisa senão a memória de cálculo que o art. 604 do Código de Processo Civil exige para a propositura da demanda executiva e que têm sua razão de ser somente para a execução forçada.”

Ao falar sobre a processo de conhecimento, esclareceu brilhantemente o Prof. J. J. Calmon de Passos sobre a presente questão: “O que jamais se ensinou, nem se decidiu, nem há precedente invocável é que, em ação ordinária de conhecimento, tenha o autor que formular pedido certo e líquido, nos termos de só poder pedir quantia em dinheiro se já em condições de, liminarmente, comprovar o que é devido e quanto é devido.” (fls. 578).

Como não estamos diante de uma execução, diante de qualquer fato constritivo como a penhora, resta claramente demonstrado que o v. acórdão imprimiu a condição de indispensáveis a documentos que quando muito poderiam influenciar na intensidade da condenação, mas nunca em relação ao reconhecimento do an debeatur. Os documentos indispensáveis para esse último fim foram anexados com a petição inicial (fls. 17/158). Tal entendimento, que considerou como indispensáveis documentos nitidamente dispensáveis naquele momento processual, violou a regra do art. 283 do Código de Processo Civil.

Além disso, sendo de conhecimento o processo, os documentos colaterais e a aferição do valor correto do crédito poderiam ser objeto de prova. Por isso a lei permite que o autor proteste na petição inicial pelas provas que pretende produzir (CPC, art. 282, inc. VI). Ele do Código de Processo Civil, em que o magistrado manda as partes indicarem justificadamente as provas com as quais desejam comprovar as suas alegações.

Por outro lado, presumem-se verdadeiros os fatos que a contestação não impugnar, de acordo com o art. 302 do Código de Processo Civil, não dependendo de prova esses fatos não impugnados (CPC, art. 334, inc. III). A r. sentença monocrática, e agora a douta maioria, que prestigiaram esse indeferimento da inicial, impediram a aplicação dessas regras, que têm seu espaço em momentos processuais que o embargante não teve a oportunidade de percorrer. Além disso, restou demonstrado que a embargada não contestou a prestação de serviços afirmada pelo embargante, apenas lamentou a ausência de documentos supostamente indispensáveis, atribuindo a tais fatos a característica de incontroversos e afastando a necessidade de provas. Trata-se exatamente da aplicação dos artigos indicados neste parágrafo.

Como afirmou lucidamente o prof. Barbosa Moreira: “Outorgar ao juiz o poder de exigir do demandante, ab initio, que produza documentos capazes de comprovar-lhe toda as alegações significaria desprezar a eventualidade de aquele tencione desincubir-se de seu ônus probatório em posterior etapa do iter processual, mediante outras espécies de provas, igualmente admissíveis.” (fls. 734).

Também não resta a menor dúvida que o entendimento até aqui majoritário violou os dispositivos legais supra-apontados, negando ao embargante o direito ao próprio procedimento.

4. Documentos indispensáveis. Possibilidade de ulterior apresentação (CPC, art. 284). Cerceamento da defesa. Ainda que os documentos indicados pelo v. acórdão fossem indispensáveis, o que se admite apenas por força de argumentação, tanto em primeiro quanto em segundo grau de jurisidição deveria ter sido positivada a regra do art. 284 do Código de Processo Civil, que determina:

“Verificando o juiz que a petição não preenche os requisitos exigidos nos arts. 282 e 283, ou que apresenta defeitos e irregularidades capazes de dificultar o julgamento de mérito, determinará que o autor a emende, ou a complete, no prazo de dez dias.”

Para tentar afastar a incidência desse dispositivo ao caso dos autos, o v. acórdão afirmou que o MM Juiz não poderia adivinhar quais os documentos que seriam indispensáveis no momento da propositura. Com a contestação e a indicação desses documentos supostamente indispensáveis, o ilustre magistrado estaria dispensado de observar a determinação do art. 284.

No entanto, o próprio julgado colacionado pelo v. acórdão para fundamentar o seu entendimento indica com clareza solar que “deve o juiz, obrigatoriamente, determinar seja emendada o inicial, no caso dos arts. 283 e 284; somente se não for atendido é que poderá decretar a extinção do processo”(in RSTJ n.º 17/355 – fls 6 do acórdão).

No mesmíssimo e divergente diapasão disse o r. voto vencido que “admitindo tão-só para argumentar que documentos essenciais, indispensáveis para a propositura da ação não tivessem sido anexados, o juiz a quo não poderia, de modo algum extinguir o processo, como extinguiu, sem determinar, nos termos do art. 284 do Código de Processo Civil, que a apelante completasse a inicial, no prazo de (10) dez dias”.

A jurisprudência do E. Superior Tribunal de Justiça também tem adotado esse entendimento, mesmo em situações mais rigorosas, como se verificar na ementa a seguir transcrita:

“Processo Civil. Ação rescisória. Indeferimento da petição inicial.

Certidão do trânsito em julgado da decisão rescindenda é documento indispensável à propositura da ação rescisória. Todavia, o Tribunal não poderia indeferir a petição inicial

antes de possibilitar ao autor a sua emenda no decêndio a que aluda o art. 284 C.P.C.” (n. RSTJ 181-445 – junho de 1994).

Trazendo essas pertinentes ponderações para o caso em tela, remontamos a seguinte sucessão de acontecimentos processuais: a) o embargante propôs a demanda em face da ora embargada, anexando os documentos que entendia (e ainda entende) indispensáveis ao aforamento (fls. 17/158); b) a embargada contestou a ação e em preliminar alegou a ausência de documentos essenciais à propositura da ação. Tais documentos seriam as faturas e respectivos demonstrativos analíticos dos serviços prestados pelo embargante: c) em sua réplica, além de alegar a dispensabilidade desses documentos naquele precoce momento processual, o embargante afirmou (fls. 338) que esses documentos estão em poder da embargada, que antes de firmar as confissões de dívida arquivava mediante recibo as faturas de serviços e despesas (docs. anexados por amostragem).”

Isto posto, dou provimento ao recurso para afastar o indeferimento da petição inicial, com a conseqüente ordem de prosseguimento da ação, abrindo-se espaço para a citação da demanda e atos posteriores, tudo de acordo com as regras do Código de Processo Civil.

É como voto.

Decisão unânime, votando com o relator os ministros Francisco Francisco Falcão, Luiz Fux, Garcia Vieira e Humberto Gomes de Barros.

Ronaldo Botelho é advogado e professor da Escola da Magistratura.

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