RECURSO ESPECIAL N.º 172.968/MG

continua após a publicidade

REL.: MIN. ALDIR PASSARINHO JÚNIOR

EMENTA

I. A legitimidade do Ministério Público para apelar das decisões tomadas em ação de investigação de paternidade, onde atua na qualidade de custos legis (CPC, art. 499, parágrafo 2.o), não se limita à defesa do menor investigado, mas do interesse público, na busca da verdade real, que pode não coincidir, necessariamente, com a da parte autora.

II. Destarte, decretada em 1.º grau à revelia do investigado, mas sem que qualquer prova da paternidade ou elementos de convicção a respeito tenham sido produzidos nos autos, tem legitimidade e interesse em recorrer da sentença o Ministério Público.

III. Recurso especial conhecido e provido, para determinar o processamento da apelação do parquet.

continua após a publicidade

(STJ/DJU de 18/10/04, pág. 279)

A atuação do Ministério Público como ?custos legis? em ação de investigação de paternidade não lhe impõe a obrigação de defender exclusivamente o interesse do menor. Seu compromisso é com o interesse público, na busca da verdade real. Daí a sua legitimidade para recorrer da sentença que decidiu em favor do menor, reconhecendo a paternidade do pai investigado. Decisão da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça. Relator o ministro Aldir Passarinho Júnior, com o seguinte voto:

continua após a publicidade

Exmo. Sr. Ministro Aldir Passarinho Júnior (Relator): Julgada procedente ação de investigação de paternidade cumulada com pensão alimentícia, em que o réu, citado, não compareceu, sendo decretada a sua revelia, insurge-se o Ministério Público do Estado de Minas Gerais, mediante agravo de instrumento, contra o despacho que não recebeu a sua apelação, ao argumento de que lhe faltava interesse processual.

Confirmada a decisão pelo Tribunal a quo, sustenta o recorrente ofensa ao art. 499, parágrafo 2.o, do CPC, porquanto ele figura no processo, na qualidade de custos legis unicamente para velar pelo interesse do menor, esse múnus se estende ao processo como um todo e, em se tratando de direito indisponível – ação de estado de pessoa – que se refere a ambas as partes, e ainda há interesse público. Justamente por isso, a matéria debatida na apelação, a revelia, teria de ser examinada pela Corte estadual.

Tenho que assiste razão ao parquet quando defende que na atuação como fiscal da lei, ela se faz de forma independente de ser o resultado, em si, favorável à parte supostamente mais indefesa, caso do menor investigante, aqui representado por sua mãe, mediante advogado constituído nos autos. É que, especialmente na ação atinente ao estado das pessoas, busca-se a verdade real, pelos inúmeros efeitos que advém do reconhecimento, por exemplo, dos laços consangüíneos, a envolver não apenas a figura do pai investigado, porém de todos os seus parentes, notadamente outros filhos espontaneamente reconhecidos.

Em tais condições, sendo ex vi legis a intervenção do Ministério Público, não há sentido em somente se lhe emprestar o direito de recorrer quando, aparentemente, houver desvantagem para o menor. Como bem argumentado nas razões, ele também atua nas investigações quando se cuida de maior investigante.

A legitimidade, pois, ocorre em razão da natureza da causa, nos termos do art. 499, parágrafo 2.o, litteris:

"§ 2.o. O Ministério Público tem legitimidade para recorrer assim no processo em que é parte, como naqueles em que oficiou como fiscal da lei."

É certo que o despacho atacado não lhe retirou a legitimidade exatamente, limitando-se a distinguir, com base em precedentes do STJ, entre interesse e legitimidade, em face da norma do art. 3.o do CPC ("Para propor ou contestar ação é necessário ter interesse e legitimidade" (fls. 13/19). Ao fazê-lo, o MM. juiz de Direito aduziu razões atinentes apenas ao interesse do parquet em proteger o menor, olvidando que, como acima explicitado, esse interesse pode, eventualmente, extrapolar aquele âmbito, pela necessidade de zelar pela observância do devido processo legal e do expurgo de vícios nos atos jurídicos, vg.

Para melhor compreensão, transcrevo excerto do voto condutor do acórdão estadual, do eminente desembargador José Brandão de Resende (fls. 101/103):

"Como fiscal da lei, a atuação ministerial também se desdobra no processo: ora fiscaliza a forma processual, pugnando pela aplicação dos princípios do processo, mormente aqueles erigidos à condição de constitucionais, como o direito à tutela jurisdicional, devido processo legal, imparcialidade do juiz, contraditório e regular procedimento, ora defendendo o incapaz, ‘uma vez que, habitualmente, a defesa desta é débil, porquanto outrem (o seu representante) é quem atua em seu nome. Imprescindível, portanto, que o Estado supra essa inferioridade processual, defendendo ele próprio o incapaz, com o que o equilíbrio exigido no contraditório (no due process of law) ficará atendido’ (Manual de Direito Processual Civil, José Frederico Marques, Ed. Saraiva, 1.º vol., pág. 289), ora defendendo interesse de ordem pública, ou direitos indisponíveis, pondo em destaque aquilo que vai de encontro ao interesse público, ativando o processo, suprindo a inércia das partes, ou impedindo avenças ocultas em fraude à lei nas causas concernentes ao estado da pessoa, pátrio poder, tutela, curatela, interdição, casamento, declaração de ausência e disposições de última vontade, ora como parecerista ou "órgão judicial consultivo, técnico, podendo externar o que pensa pró ou contra quaisquer comunicações de vontade feitas ao juiz’ (Comentários ao CPC, Pontes de Miranda, Forense, Tomo VII, pág. 71). No primeiro caso, como defensor da ordem processual, pode o Ministério Público recorrer sempre que houver infringência aos princípios e normas processuais atinentes à espécie. Indeferidos os seus requerimentos, interesse terá em agravar de instrumento. Prolatada a sentença com vícios processuais ou procedimentais, interesse ficará patenteado para apelar. No segundo caso, somente terá interesse em recorrer se o incapaz sofrer gravame ou qualquer tipo de sucumbência. No terceiro caso, somente poderá recorrer se indeferidos os seus requerimentos visando a defesa do interesse público, mormente se a providência solicitada e indeferida for de legalidade manifesta. No quarto caso, quando atua como parecerista, se a sentença for contrária ao seu ponto de vista jurídico e ao direito individual da parte, não terá o órgão ministerial interesse em recorrer. Conforme enfatizado por Barbosa Moreira (Comentários ao CPC, Forense, vol. V, pág. 238). ‘Deve aferir-se ao ângulo prático a ocorrência da utilidade, isto é, a relevância do proveito ou vantagem cuja possibilidade configura o interesse em recorrer. A razão de ser do processo não consiste em proporcionar ocasião para o debate de puras teses, sem conseqüências concretas para a fixação da disciplina do caso levado à apreciação do juiz. Nem pode a atividade do aparelho judiciário do Estado intervir de instrumento para a solução de questões acadêmicas’.

Diz o recorrente que o seu interesse em recorrer está evidenciado na necessidade de observância do direito objetivo, ou seja, a correta aplicação da lei ao caso concreto – a sentença justa. Data venia não pode ser esta a melhor exegese, porque se assim fosse, o Ministério Público deveria atuar em todos os processos como custos legis e não somente naqueles exaustivamente elencados no art. 82 do Estatuto Processual Civil, já que em todos os processos o julgador há de se observar o direito objetivo aplicando corretamente a lei ao caso concreto. Ao Ministério Público, conforme afirmado, surge o interesse de recorrer se o pronunciamento judicial contraria o fim que ditou a presença do órgão ministerial no processo."

Voltando à sentença, esta registra que "se existe direito indisponível, este é do investigante e não do investigado, pelo que perfeitamente aplicável em favor do menor investigante os efeitos da revelia" (fl. 25, sic, destaquei).

Conquanto impressione a argumentação, penso que não é possível fazer-se essa distinção.

É que, como antes ressaltado, a ação de estado de pessoa torna indisponível também a vontade do investigado na busca da verdade real, que é de interesse público. E o custos legis exercido pelo Ministério Público vai a tanto, não pode ser mitigado.

Daí, nessa situação, a revelia do investigado não exclui ou impede a intervenção do parquet, que não se restringe à defesa do interesse do menor. Ele defende o interesse público. E esse interesse público prevalece sobre o particular, quer seja do investigante ou do investigado.

Na espécie em exame, houve a revelia e não foram, ao que se diz, apresentados quaisquer outros elementos comprobatórios da relação ou vinculação da mãe do investigante com o investigado. Pode, assim, o Ministério Público, que legalmente intervém obrigatoriamente no feito, impugnar os efeitos da revelia aplicados pelo juiz singular, requerer provas, etc.

Ante o exposto, sem embargo de reconhecer a juridicidade do entendimento sufragado pelo Tribunal a quo, conheço do recurso especial e lhe dou provimento, para prover o agravo de instrumento e, conseqüentemente, determinar o processamento da apelação.

É como voto.

Decisão unânime, votando com o relator os ministros José Arnaldo da Fonseca, Félix Fischer, Gilson Dipp e Laurita Vaz.

Ronaldo Botelho é advogado e professor da Escola da Magistratura.