Processual Civil. Investigação de Paternidade. Improcedência da ação pelo não-comparecimento da mãe do investigando. Direito de propor nova ação. Flexibilização da Coisa Julgada.

RECURSO ESPECIAL N.º 427.117/MS

Rel: Min. Castro Filho

EMENTA

I – Na primitiva ação de investigação de paternidade proposta, a improcedência do pedido decorreu de confissão ficta pelo não-comparecimento da mãe do investigando à audiência de instrução designada. Considerando, assim, que a paternidade do investigado não foi expressamente excluída por real decisão de mérito, precedida por produção de provas, impossível se mostra cristalizar como coisa julgada material a inexistência do estado de filiação, ficando franqueado ao autor, por conseguinte, o ajuizamento de nova ação. É a flexibilização da coisa julgada.

II – Em se tratando de direito de família, acertadamente, doutrina e jurisprudência têm entendido que a ciência jurídica deve acompanhar o desenvolvimento social, sob pena de ver-se estagnada em modelos formais que não respondem aos anseios da sociedade.

Recurso especial conhecido e provido.

(STJ/DJU de 16/2/04, pág. 241)

Num caso em que a ação de investigação de paternidade foi julgada improcedente pela ausência da mãe do investigando na audiência de instrução, considerou o Superior Tribunal de Justiça, através de sua Terceira Turma, relator o ministro Castro Filho, que, numa situação dessa, em que a paternidade do investigado não foi expressamente excluída por real decisão de mérito, nada impede o ajuizamento de nova ação.

Consta do voto do relator:

O Exmo. Sr. Ministro Castro Filho (Relator):

(…)

Conforme se depreende dos autos, o acórdão recorrido confirmou a decisão monocrática, que entendeu haver identidade nas ações propostas, concluindo, assim, pela existência de coisa julgada, a obstar o conhecimento da segunda demanda apresentada.

À luz da tradição do Direito Processual, indiscutivelmente, isso é correto. Na espécie, contudo, consideradas as particularidades do caso, tenho que a solução alvitrada não foi a que melhor se ajusta à moderna tendência do processo civil acerca da matéria em comento, que tem flexibilizado os efeitos da coisa julgada, na busca da verdade real, nas ações de investigação de paternidade. É um daqueles casos em que se aplica, na expressão do Ministro José Delgado, a teoria da relativização da coisa julgada.

Ressalte-se que, na primeira ação investigatória, julgada em 1996, a paternidade do ora recorrido não foi expressamente excluída. O que acarretou a improcedência do pedido foi o não comparecimento da representante legal do recorrente à audiência de instrução designada. Desse modo, inexistiu, na hipótese, real decisão de mérito excluindo a paternidade do investigante, razão pela qual não se me afigura possível cristalizar como coisa julgada material a inexistência do estado de filiação, com base apenas na confissão ficta (inadmissível, em casos que tais), decorrente do não comparecimento da mãe do autor à audiência de instrução, a qual diga-se de passagem, não é parte na relação processual.

O tema aqui tratado é filiação, portanto direito indisponível e imprescritível, nos termos do que dispõe o artigo 27 do Estatuto da Criança e do Adolescente, configurando-se entre os direitos da personalidade, o de maior relevância. Daí o manifesto interesse público na matéria. Nesses casos, acertadamente, doutrina e jurisprudência têm entendido que a ciência jurídica deve acompanhar o desenvolvimento social, sob pena de ver-se estagnada em modelos formais, que não respondem aos anseios da sociedade, nem atendeu às exigências da modernidade.

A esse respeito, por oportuno, destaco as considerações do eminente Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, no julgamento do Resp 226.436/PR, DJ 04/02/02, onde ficou assentado que não faz coisa julgada material a sentença de improcedência da ação de investigação de paternidade por insuficiência de provas da paternidade biológica:

“(…) todo o progresso da ciência jurídica, em matéria de prova, está na substituição da verdade ficta pela verdade real. A coisa julgada, portanto, em se tratando de ações de estado, como no caso de investigação de paternidade, deve ser interpretada modus in rebus.”

Na oportunidade, sua excelência trouxe à baila o escólio de Belmiro Pedro Welter (Coisa Julgada na Investigação de Paternidade. Porto Alegre: Ed. Síntese, 2000, 1.ª ed., p. 123/124), onde se assinala:

“Dessa forma, de nada adiante canonizar-se o instituto da coisa julgada em detrimento da paz social, já que a paternidade biológica não é interesse apenas do investigante ou investigado, mas de toda a sociedade, e não existe tranqüilidade social com a imutabilidade da coisa julgada da mentira, do engodo, da falsidade do registro público, na medida em que a paternidade biológica é direito natural, constitucional, irrenunciável, imprescritível, indisponível, inegociável, impenhorável, personalíssimo, indeclinável, absoluto, vitalício, indispensável, oponível contra todos, intransmissível, constituído de manifesto interesse público e essencial ao ser humano, genuíno princípio da dignidade humana, elevado à categoria de fundamento da República Federativa do Brasil (artigo 1.º, II).

E esse direito natural e constitucional de personalidade não pode ser afastado nem pelo Poder Judiciário, nem pela sociedade nem pelo Estado, porque, parafraseando Humberto Theodoro Júnior, se queremos uma sociedade de pessoas livres, não se pode colocar a segurança da coisa julgada acima da justiça e da liberdade, porque um povo sem liberdade e sem justiça é um povo escravo, devendo ser entendido que ‘mudou a época, mudaram os costumes, transformou-se o tempo, redefinindo valores e conceituando o contexto familiar de forma mais ampla que, com clarividência, pôs o constituinte de modo o mais abrangente, no texto da nova Carta. E nesse novo tempo não deve o Poder Judiciário, ao qual incumbe a composição dos litígios com olhos na realização da justiça, limitar-se à aceitação de conceitos pretéritos que não se ajustem à modernidade.”

Assim, na hipótese, é de se ter presente que, ao contrário do entendimento assentado no aresto hostilizado, não houve na primeira ação efetivo pronunciamento de mérito, precedido de produção de provas, negando a paternidade imputada ao ora recorrido, o que justificaria a existência da coisa julgada material a impedir a discussão da matéria em nova demanda, mormente se considerarmos que, na condição de representante processual do autor, a sua genitora nem sequer ocupa a condição de parte no processo.

Observe-se que, em se tratando de direito de Estado, o próprio Código de Processo Civil prescreve que a revelia não produz seus efeitos, por estar em julgamento direitos indisponíveis (art. 320, II), não se podendo esquecer, ainda, ser inadmissível a confissão, quanto a fatos relativos a direitos dessa natureza (art. 351).

Pelo exposto, conheço do recurso e lhe dou provimento para, cassando o acórdão recorrido, afastar a preliminar de coisa julgada, determinando o prosseguimento do processo no juízo de origem, como de direito.

É o voto.

Ronaldo Botelho

é advogado e professor da Escola da Magistratura.