RECURSO ESPECIAL N.º 450.989/RJ

Rel.: Min. Humberto Gomes de Barros

EMENTA

– A interpretação teleológica do Art. 1.º, da Lei 8.009/90, revela que a norma não se limita ao resguardo da família. Seu escopo definitivo é a proteção de um direito fundamental da pessoa humana: o direito à moradia. Se assim ocorre, não faz sentido proteger quem vive em grupo e abandonar o indivíduo que sofre o mais doloroso dos sentimentos: a solidão.

– É impenhorável, por efeito do preceito contido no Art. 1.º da Lei 8.009/90, o imóvel em que reside, sozinho, o devedor celibatário.”(EREsp 182.223-SP, Corte Especial, DJ de 07/04/2003).

(STJ/DJU de 7/6/04, pág. 217)

No sentido da interpretação ampliativa que o Superior Tribunal de Justiça vem conferindo à Lei n.º 8.009/90, decidiu a sua Terceira Turma, relator o ministro Humberto Gomes de Barros, que é impenhorável o imóvel em que reside, sozinho, o devedor solteiro solidário.

Consta do voto do relator:

Ministro Humberto Gomes de Barros (Relator): – Em se cuidando de situação em tudo semelhante aquela de que tratamos no julgamento dos Embargos de Divergência no Recurso Especial 182.223, na Corte Especial, e para o qual fui designado para relator do Acórdão, peço vênia aos meus pares para reportar-me ao voto-vista que proferi naquela assentada, e que se tornou vitorioso:

“- O acórdão recorrido declarou impenhorável, por efeito da Lei 8.009/90, o imóvel onde reside, sozinho, o executado (ora embargado). Já o acórdão paradigma afirma que o conceito de família, não é a pessoa que mora sozinha. Para este último aresto, família é um tipo de associação de pessoas. Não se concebe, assim, família de um só indivíduo. Na origem de tal divergência está o Art. 1.º da Lei 8.009/90, a dizer que:

“O imóvel residencial do próprio casal ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta Lei.”

O acórdão embargado está resumido nestas palavras:

“RESP – CIVIL – IMÓVEL – IMPENHORABILIDADE.

A Lei n.º 8.009/90, do art. 1.º precisa ser interpretada consoante o sentido social do texto. Estabelece limitação à regra draconiana de o patrimônio do devedor responder por suas obrigações patrimoniais. O incentivo à casa própria busca proteger as pessoas, garantido-lhes o lugar para morar. Família, no contexto, significa instituição social de pessoas que se agrupam, normalmente por laços de casamento, união estável, ou descendência. Não se olvidem ainda os ascendentes. Seja o parentesco civil, ou natural. Compreende ainda a família substitutiva. Nessa linha, conservada a teleologia da norma, o solteiro deve receber o mesmo tratamento. Também o celibatário é digno dessa proteção. E mais. Também o viúvo, ainda que seus descendentes hajam constituído outras famílias, e como, normalmente acontece, passam a residir em outras casas. “Data venia”, a Lei n.º 8.009/90 não está dirigida a número de pessoas. Ao contrário – à pessoa. Solteira, casada, viúva, desquitada, divorciada, pouco importa. O sentido social da norma busca garantir um teto para cada pessoa. Só essa finalidade, “data venia”, põe sobre a mesa a exata extensão da lei. Caso contrário, sacrificar-se-á a interpretação teleológica para prevalecer a insuficiente interpretação literal.”

Esse dispositivo formou-se na linha de interpretação ampliativa que o Superior Tribunal de Justiça desenvolve sobre Art. 1.º acima transcrito. Como registra o eminente Ministro Relator, nossa jurisprudência declara sob o abrigo da impenhorabilidade, a residência;

a) da viúva, sem filhos (REsp. 276.004/Menezes Direito);

b) de pessoa separada judicialmente (REsp 218.377/Barros Monteiro);

c) irmãos solteiros (REsp 57.606/Alencar).

Esses três exemplos, lembrados pelo Ministro Relator, indicam a percepção de que o legislador, ao utilizar a expressão “entidade familiar” não se referiu à família coletiva, mas àqueles entes que a integram (irmãos solteiros) ou dela são remanescentes (viúva ou divorciado).

De fato, não teria sentido livrar de penhora a residência do casal e submeter a essa constrição a casa, onde um dos integrantes do casal continua a morar, após o falecimento de seu cônjuge.

A interpretação teleológica do Art. 1.º revela que a norma não se limita ao resguardo da família. Seu escopo definitivo é a proteção de um direito fundamental da pessoa humana: o direito à moradia.

Se assim ocorre, não faz sentido proteger quem vive em grupo e abandonar o indivíduo que sofre o mais doloroso dos sentimentos: a solidão.

Ao conduzir a formação do acórdão embargado, o Ministro Vicente Cernicchiaro enxergou, com nitidez, o bem jurídico para cuja proteção foi concebido o Art. 1.º da Lei 8.009/90. A decisão construída a partir de tal percepção merece nossa homenagem e confirmação.”

Estes, os mesmos fundamentos que adoto para dar provimento ao presente recurso especial.

Decisão unânime, votando com o relator os ministros Carlos Alberto Menezes Direito, Nancy Andrighi, Castro Filho e Antônio de Pádua Ribeiro.

Processual penal. Sentença condenatória que condiciona a expedição de mandado de prisão ao trânsito em julgado. Ausência de recurso da acusação. Direito do réu de permanecer em liberdade.

HABEAS CORPUS N.º 25.080/SP

Rel.: Min. Jorge Scartezzini

EMENTA

– Se a sentença condenatória condiciona, expressamente, a expedição de mandado de prisão após o trânsito em julgado e de tal decisum não recorre a acusação, descabe ao Tribunal, por ocasião da análise da apelação interposta pela defesa, determinar a expedição de mandado de prisão do réu, uma vez que ainda possível a interposição de recurso.

(STJ/DJU de 25/5/04, pág. 298)

É iterativa a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que o condenado, mesmo em crime hediondo, tem direito de permanecer em liberdade para recorrer se a sentença condicionou a expedição de mandado de prisão ao trânsito em julgado da decisão, da qual não recorreu a acusação. É o que se vê desta decisão da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, relator o ministro Jorge Scartezzini, como seguinte voto condutor:

O Exm.º Sr. ministro Jorge Scartezzini (Relator): Pretende o impetrante, com o presente writ: a) o restabelecimento dos efeitos da sentença monocrática condenatória, na parte em que o paciente foi beneficiado com o direito de permanecer em liberdade até o trânsito em julgado da decisão; b) a diminuição da pena imposta com a aplicação do coeficiente de apenas 1/5 em virtude da continuidade delitiva; c) imposição de regime inicial semi-aberto para cumprimento da reprimenda imposta.

A respeito da determinação do e. Tribunal a quo em expedir o imediato mandado de prisão, aduz o impetrante ser a mesma injustificável, tendo em vista que não se esgotaram todos os recursos constitucionalmente assegurados à defesa.

Assiste razão à irresignação. Com efeito, a sentença de primeiro grau, expressamente, condicionou a expedição de mandado de prisão somente após o trânsito em julgado da condenação, o que restou irrecorrido pelo Ministério Público.

Não obstante ser cabível contra a decisão condenatória proferida em grau de apelação, via de regra, somente recurso especial ou extraordinário que, pelas suas índoles, não têm efeito suspensivo e, em razão disso, ainda que interpostos, não impedem seja expedido mandado de prisão contra o condenado, deve-se considerar o fato de ter o Magistrado de primeiro grau condicionado, expressamente, a prisão ao trânsito em julgado da condenação. Este tem sido o entendimento esposado por esta Corte em inúmeros julgados, dentre os quais destaco:

“AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS. SENTENÇA CONDENATÓRIA QUE CONCEDE AO CONDENADO O DIREITO DE PERMANECER EM LIBERDADE ATÉ O TRÂNSITO EM JULGADO DA CONDENAÇÃO. EXPEDIÇÃO DE MANDADO DE PRISÃO POR OCASIÃO DO JULGAMENTO DOS APELOS INTERPOSTOS PELA ACUSAÇÃO E DEFESA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL.

Se a sentença condenatória condiciona, expressamente, a expedição de mandado de prisão ao trânsito em julgado da condenação, e não sendo essa deliberação objeto do recurso interposto pelo Ministério Público, descabe ao Tribunal, por ocasião do julgamento das apelações interpostas, determinar a imediata expedição de mandado de prisão. Constrangimento ilegal configurado. Precedentes desta Corte.

Agravo provido para, deferindo-se a liminar, suspender o mandado de prisão até julgamento do presente habeas corpus.” ( AGRHC n.º 13.378/SP – Rel. Ministro JOSÉ ARNALDO DA FONSECA – DJU de 09/10/2000).

“PROCESSUAL PENAL. CONDENAÇÃO EM GRAU DE APELAÇÃO. RECOLHIMENTO À PRISÃO. CONSTRANGIMENTO ILEGAL. EXISTÊNCIA.

1 – Se consta da sentença, de modo expresso, que a segregação do paciente somente se efetiva após o trânsito em julgado da decisão condenatória, a expedição de mandado de prisão, por ocasião do julgamento da apelação, é causa de constrangimento ilegal, maxime se, como na espécie, não houve recurso da acusação. Precedentes desta Corte.

2 – Ordem concedida. Liminar confirmada.” (HC n.º 12190/RJ – Rel. Ministro FERNANDO GONÇALVES – DJU 29/5/2000).

No que tange ao pleito de que se proceda à diminuição da pena imposta com a aplicação do coeficiente de apenas 1/5 em virtude da continuidade delitiva, esse não merece provimento.

Isso porque, como salientou o e. representante do Parquet, o paciente já foi indevidamente beneficiado com o reconhecimento da continuidade delitiva, não sendo possível portanto a redução do percentual de aumento da pena. Nesse sentido destaco o parecer de fls. 73/75, in verbis:

“Mesmo que assim não fosse, pelo que se pode verificar dos autos, não restou devidamente comprovado que o paciente tenha preenchido todos os requisitos necessários ao reconhecimento do crime continuado, como aqueles relativos às condições de tempo e de unidade de desígnios.

É bem sabido que para a caracterização do crime continuado torna-se necessário que os atos criminosos isolados apresentem-se enlaçados, os subseqüentes ligados ao antecedentes, porque fazem parte do mesmo projeto criminoso, ou porque resultam do ensejo, ainda que fortuito, proporcionado ou facilitado pela execução desse projeto (aproveitamento da mesma oportunidade).

De registrar-se que a jurisprudência desse Colendo STJ já é pacífica no sentido de que para a configuração da continuidade delitiva é indispensável a unidade de desígnios e de tempo entre as práticas incriminadas, conforme ilustram, de maneira sobeja e inconteste, as ementas a seguir colacionadas, verbis:

‘HABEAS CORPUS. EXECUÇÃO. ROUBO. UNIFICAÇÃO DE PENAS. INEXISTÊNCIA DE CONTINUIDADE DELITIVA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO CONFIGURADO. EXAME APROFUNDADO DE PROVAS INVIÁVEL NA VIA DO WRIT. – A configuração do crime continuado, previsto no art. 71 do Código Penal, exige além da pluralidade de ações e do nexo temporal e circunstancial no que se refere ao local e ao modo de execução, a comprovação da unidade de desígnios, o que não foi demonstrado na espécie e expressamente elidido pelo Tribunal a quo. – Bem fundamentado o v. acórdão que indeferiu o pedido de unificação de penas, necessário exame aprofundado de provas para afastar a referida argumentação, o que é vedado na via estreita do writ. – Ordem denegada.’ (HC n. 16.458/SP, Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, DJU de 25/02/2002, p. 415).

‘PENAL. RECURSO ESPECIAL. UNIFICAÇÃO DE PENAS. CONTINUIDADE DELITIVA. NÃO PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS OBJETIVOS E SUBJETIVOS. IMPOSSIBILIDADE. TEORIA MISTA. – A configuração do crime continuado, previsto no art. 71 do Código Penal, exige, além da pluralidade de ações e do nexo temporal e circunstancial no que se refere ao local e ao modo de execução, a comprovação da unidade de desígnios. – Esta Corte assentou-se na teoria mista para a configuração do delictum continuatum, motivo pelo qual é imprescindível, também, o preenchimento dos requisitos subjetivos para a unificação de pena. – Recurso especial conhecido e provido.’ (RESP 331319/SP, Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, DJU de 31/3/2003 p. 243).

Na presente hipótese, apesar de nada disso haver sido demonstrado, o Ministério Público local não recorreu do decisum que indevidamente reconheceu a continuidade delitiva, razão pela qual o Tribunal de origem, sem poder tecer considerações a respeito da questão, teve que manter a sentença condenatória nesse ponto.

Nesse sentido, já tendo sido o paciente indevidamente beneficiado com o reconhecimento da continuidade delitiva, não é de se conceder a ordem em que é postulada a aplicação do menor percentual de aumento da pena.”

Quanto ao pedido de fixação de regime inicial semi-aberto para o cumprimento da pena, não assiste melhor sorte ao paciente.

Sustenta-se, em síntese, estar o paciente sofrendo constrangimento ilegal por não ter o e. Tribunal a quo lhe reconhecido o direito à progressão de regime. Aduz que o atentado violento ao pudor para ser considerado hediondo deve ser praticado mediante violência real.

O art. 1.º da Lei n. 8.072/90, regulamentando norma constitucional (art. 5.º, inciso XLIII, da CF), reza:

“Art. 1.º – São considerados hediondos os seguintes crimes, todos tipificados no Decreto-Lei n.º 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, consumados ou tentados:

(…)

V – estupro (art. 213 e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único);

VI – atentado violento ao pudor (art. 214 e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único);

(…)

Parágrafo único. Considera-se também hediondo o crime de genocídio previsto nos arts. 1.o, 2.o e 3.o, da Lei n.º 2.889, de 1.º de outubro de 1956, tentado ou consumado.” – grifo não original.

Como se infere da leitura do dispositivo legal supra, tem-se claro que o estupro e o atentado violento ao pudor se encontram arrolados como crimes hediondos, tanto na sua forma simples, como na qualificada.

Esta Turma vem entendendo, reiteradamente, que os referidos crimes são considerados hediondos ainda que na forma básica, ou seja, não há a necessidade de ter como resultado lesão corporal de natureza grave ou morte da vítima.

Nesse diapasão, destaco trecho do voto do eminente Ministro Felix Fischer, na relatoria do Resp n.º 246.479/GO, DJU de 15/10/2001:

“Primeiramente, é de se crer pela própria redação utilizada nos incisos do art. 1.º da Lei n.º 8.072/90, que o estupro real e o atentado violento ao pudor real (vale sublinhar, real no sentido de violência ou grave ameaça) estão ali arrolados, tanto na forma básica como na forma qualificada. O ‘e’, objeto da quaestio (‘art. 213 e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único’), está empregado com a função de conjunção coordenativa aditiva, prestando-se a ligar palavras que guardam independência entre si ou, especificamente, evidenciando que tanto o estupro, na forma fundamental quanto o estupro qualificado, são delitos hediondos. E, contextualmente, é de se observar que na extorsão há referência exclusiva da forma qualificada (v. inciso III). No roubo (inciso II) e na epidemia (inciso VII), v.g., idem. Por que, então, no estupro e no atentado violento ao pudor a deslocada busca por solução diversa que, a par de manifesta transgressão de interpretação literal, destoa do contexto legal? Inexiste fundamento jurídico para tanto. Na linha ora abraçada tem-se: Resp 160.264-PR, 5.ª Turma-STJ, de minha relatoria, DJU de 11/05/98 (com diversos precedentes indicados).”

O Plenário do Pretório Excelso, aliás, em recente decisão, considerou hediondo os crimes de estupro e atentado violento ao pudor tanto na forma simples como na qualificada, incluindo também aqueles praticados mediante violência presumida.

Tal posicionamento, abraçado pelo Colendo Supremo Tribunal Federal (cf. HC n.º 81.288/SC, Rel. Min. CARLOS VELLOSO, julgado em 14/12/2001, Informativo n.º 255/STF) vem, a partir de então, também, sendo adotado por esta e. Turma julgadora. A propósito, trago à colação, o v. aresto proferido por ocasião do julgamento do HC n.º 19.301/PR, DJU de 8/4/2002, de relatoria do eminente Ministro FELIX FISCHER, que restou assim ementado:

“PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. VIOLÊNCIA FICTA. REGIME DE EXECUÇÃO.

Ressalvado entendimento do relator e seguindo o novo entendimento do Pleno do Pretório Excelso (Informativo 255), o atentado violento ao pudor, na forma básica, o que inclui o caso de violência presumida, é crime hediondo, incidindo, aí então, a regra inserida no art. 2.º, § 1.º da Lei nº 8.072/90.

Writ denegado.” – destaquei.

Seguindo, pois, a orientação aqui firmada e consoante posicionamento esposado pelo Colendo Supremo Tribunal Federal, entendo que, naqueles crimes, impõe-se que a pena seja cumprida, necessariamente, em regime fechado.

Por tais fundamentos, concedo parcialmente a ordem apenas para que o paciente responda ao processo em liberdade nos termos da sentença.

É como voto.

Decisão unânime, votando com o relator os ministros Laurita Vaz, José Arnaldo da Fonseca, Félix Fischer e Gilson Dipp.

Ronaldo Botelho é advogado e professor da Escola da Magistratura.

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