Processo Penal. Substituição da pena prisional por restritiva de direitos. Dano potencial à liberdade. Cabimento do “habeas corpus”.

“HABEAS CORPUS N.º 82.697-1/SP

REL.: MIN. ILMAR GALVÃO

EMENTA

Firme a jurisprudência do STF de que a possibilidade de conversão das penas restritivas de direitos em privativa de liberdade caracteriza situação de dano potencial à liberdade de locomoção do condenado, sendo cabível a impetração de habeas corpus para sanar eventual constrangimento dela decorrente.

Não havendo o STJ conhecido da impetração, nem sendo caso de concessão da ordem de ofício, é vedado a esta Corte examinar desde logo o mérito do pedido, sob pena de suprimir daquele Tribunal a análise das alegações do impetrante.

Habeas corpus deferido em parte para que o Superior Tribunal de Justiça, afastado o óbice invocado ao conhecimento do writ, proceda à sua apreciação, decidindo como entender de direito.”

(STJ/DJU de 14/3/03)

O Superior Tribunal de Justiça não conheceu de “habeas corpus” ao entendimento de que a pena restritiva de direitos não ameaça o direito ambulatorial.

Contra essa decisão, o Supremo Tribunal Federal, através de sua Primeira Turma, relator o ministro Ilmar Galvão, concedeu “habeas corpus” por considerar a existência de dano potencial à liberdade de locomoção, uma vez que a pena restritiva de direitos pode ser convertida em privativa de liberdade.

Eis, na íntegra, o voto do relator:

O Senhor Ministro Ilmar Galvão (Relator): O Supremo Tribunal Federal no julgamento do HC 79.865, relator min. Celso de Mello, firmou o entendimento de que a “possibilidade legal de conversão, em sanção privativa de liberdade, da pena restritiva de direitos (CP, art. 44, § 4.º, na redação dada pela Lei n.º 9.714/99), faz instaurar situação de dano potencial à liberdade de locomoção física do condenado, o que legitima a utilização, em seu benefício, do remédio constitucional do habeas corpus”.

No mesmo sentido foi o entendimento desta Turma no julgamento do HC 80.218, de minha relatoria, em que ficou assentado que “o writ não poderia ser considerado, de plano, como incabível, dado o reflexo que eventual revogação do benefício da suspensão condicional da pena produziria sobre o direito de ir e vir do condenado”.

Resta saber se a ordem a ser deferida implicará a apreciação imediata da pretensão inserta, na impetração, como pretende o impetrante, ou se esta Corte deve determinar o retorno dos autos ao STJ para que prossiga no julgamento do writ, apreciando seu mérito.

No julgamento do RHC 80.757, esta Turma afastou preliminar de devolução dos autos, ao entendimento de ser possível examinar-se desde logo o mérito de impetração, se a questão tiver sido devidamente suscitada – ainda que não tenha havido manifestação sobre ela por parte do acórdão recorrido -, uma vez que a matéria veiculada é devolvida ao exame do STF.

Naquela oportunidade, ficou assentado, contudo, que a única circunstância capaz de impedir a análise imediata do pedido seria a hipótese de não-conhecimento do writ.

É justamente o que ocorre na espécie.

Com efeito, não havendo o Superior Tribunal de Justiça conhecido do habeas corpus, nem sendo caso de concessão de ordem de ofício, é vedado ao Supremo Tribunal Federal examinar desde logo o mérito da impetração, sob pena de suprimir daquela Corte e análise das alegações do impetrante.

Nesse contexto, impõe-se a devolução do feito ao Superior Tribunal de Justiça para que, afastado o óbice invocado ao conhecimento da questão apontada, proceda à sua apreciação, decidindo como entender de direito.

Ante o exposto, voto pelo deferimento parcial da ordem, para o fim especificado.

Decisão unânime, votando com o relator os ministros Sydney Sanches, Sepúlveda Pertence, Ilmar Galvão e Ellen Gracie.

Direito civil. Propriedade. Uso nocivo do prédio vizinho. Ação proposta contra o dono do prédio objeto de locação. Admissibilidade.

“RECURSO ESPECIAL N.º 480.621/RJ

Rel.: Min. Ruy Rosado de Aguiar

EMENTA – A ação do proprietário pelo uso nocivo do prédio vizinho pode ser contra o dono, ainda que locada a coisa. Art. 554 do C. Civil. Peculiaridades do caso.

Recurso conhecido e provido.”

(STJ/DJU de 12/8/03, pág. 240)

Decidiu o Superior Tribunal de Justiça, através de sua Quarta Turma, relator o ministro Ruy Rosado de Aguiar, que a ação pelo uso nocivo do prédio vizinho pode ser proposta contra o dono, ainda que locada a coisa. Considerou a Turma que o art. 554 do antigo Código Civil, bem como o art. 1.277 do atual estatuto, cuidam apenas da legitimidade ativa (do proprietário, inquilino ou possuidor), mas não tratam da legitimidade passiva. Então, com fundamento na lição de Pontes de Miranda (Tratado – 13/310), e ainda pelas peculiaridades do caso (partiu do proprietário a iniciativa para que a situação danosa ocorresse, ao destinar o prédio à finalidade de lavagem e lubrificação de veículos, com todas as conseqüências que sabidamente daí decorreu), considerou que a ação, nesse caso, pode ser endereçada contra o proprietário.

Eis, na íntegra o voto do relator:

O Ministro Ruy Rosado de Aguiar (Relator):

1. O art. 554 do CCivil, vigente ao tempo da propositura da ação, tinha a seguinte redação:

“O proprietário, ou inquilino de um prédio tem o direito de impedir que o mau uso da propriedade vizinha possa prejudicar a segurança, o sossego e a saúde dos que o habitam”.

A redação do atual Código não difere muito:

“O proprietário ou o possuidor de um prédio tem o direito de fazer cessar as interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que o habitam, provocadas pela utilização de propriedade vizinha.” (art. 1277)

2. Como se vê, existe na lei a indicação do legitimado ativo, que é o proprietário ou o inquilino, hipóteses que a doutrina estendeu depois ao possuidor, assim como hoje está na lei.

Mas não é feita indicação do legitimado passivo, a exemplo do constante no art. 555 (art. 1280 do Código Civil de 2002), que dirige a ação contra o dono do prédio vizinho.

A questão posta neste recurso especial diz com a legitimação passiva do proprietário que locou o imóvel. O r. acórdão recorrido entendeu que a ação somente poderia ser dirigida contra o locatário.

3. Sabe-se que o réu aluga o imóvel para “o comércio de peças e acessórios para automóveis, troca de óleo lubrificante e, caso a Locatária execute as obras para tal, se responsabilize por problemas com vizinhos e preencha todos os requisitos necessários, às suas expensas e sob a sua responsabilidade, também para lavagem tipo americana de veículos, proibida destinação diferente” (fl. 53).

Em razão desse contrato, que não é o primeiro com a mesma destinação, pois há nos autos cópia de contratos de locação desde 1991, com diferentes locatários, instalou-se no prédio vizinho ao da autora o posto de serviços de troca de óleo e lavagem de veículos.

Segundo afirmado na inicial, “o réu manteve a calha de escoamento pluvial colada à parede do prédio da autora; a água, contaminada pelo óleo diesel resultante da pulverização infiltra-se pelas paredes do prédio, como demonstrado nas fotografias anexas, tornando sua residência inabitável… Isso devido ao mau cheiro que exala pelas paredes da sala, permanentemente impregnadas de óleo diesel.”….”Em virtude da pulverização (“lava-a-jato”), o vento traz para a residência da autora uma poeira de água misturada com óleo diesel, impregnando os móveis e as roupas estendidas no varal.”

Nesse contexto, não me parece que se possa dizer que o proprietário do imóvel é um terceiro estranho ao dano causado à autora, em virtude do mau uso da propriedade. Em primeiro lugar, porque celebrou contrato com essa destinação específica, a qual sabidamente causava prejuízos aos vizinhos, tanto que no último contrato tratou de incluir cláusula transferindo ao locatário a responsabilidade pelo mau uso do local (regra que não tem eficácia diante da autora ). Depois, porque permite que a construção do seu prédio não evite a infiltração que se observa na parede, fato agravado com a contaminação da água pelo óleo usado no posto de serviços. Finalmente, porque a ação – embora possa ser dirigida contra o possuidor – pode também ser endereçada ao proprietário, quando dele a iniciativa para que a situação danosa se concretize, ao destinar o prédio à finalidade de lavagem e lubrificação de veículos, com todas as conseqüências que sabidamente daí decorrem.

O contrato de locação existente em 1998, data da ação, tinha o prazo de um ano, a contar de setembro de 1998, e já findou, portanto. Em situação como essa, não sendo o contrato renovado, o autor se verá constrangido a ir buscar um outro réu, e a cada nova citação já outro será o possuidor, o que tornaria inútil a ação judicial.

Assim, penso que a ação foi bem dirigida contra o proprietário, sendo aplicável a solução proposta por Pontes de Miranda: intentada a ação contra o proprietário, o possuidor há de tolerar as medidas que se fizerem necessárias (Tratado, 13/310). Trata-se de uma limitação ao direito de propriedade, de direito real, portanto, e a ação pode ser contra o proprietário.

Posto isso, conheço do recurso, pela alínea a, por ofensa ao disposto no art. 554 do CC, e dou-lhe provimento, para cassar a sentença e permitir o prosseguimento da ação.

É o voto.

Decisão unânime, votando com o relator os ministros Fernando Gonçalves, Aldir Passarinho Júnior e Sálvio de Figueiredo Teixeira.

Ronaldo Botelho

é advogado e professor da Escola da Magistratura.