Processo Penal. Ônus da prova da acusação. Documento da defesa ignorado pelo magistrado. Nulidade da sentença.

EMENTA

1. O órgão acusador tem a obrigação jurídica de provar o alegado e não o réu demonstrar sua inocência.

2. É característica inafastável do sistema processual penal acusatório o ônus da prova da acusação, sendo vedado, nessa linha de raciocínio, a inversão do ônus da prova, nos termos do art. 156 do Código de Processo Penal.

3. Carece de fundamentação idônea a decisão condenatória que impõe ao acusado a prova de sua inocência, bem como ignora documento apresentado pela Defesa a teor dos artigos 231 e 400 do Código de Processo Penal.

4. ORDEM CONCEDIDA para anular a decisão condenatória, para que outro julgamento seja proferido, apreciando-se, inclusive, a prova documental ignorada.

(STJ/DJU de 9/4/07)

No processo penal não pode ocorrer a inversão do ônus da prova, de maneira que o órgão acusador se abstenha da obrigação jurídica de provar o alegado enquanto o réu tenha que demonstrar sua inocência. Acórdão da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, Relator o Ministro Paulo Medina.

Consta do voto:

O exmo. sr. Ministro Paulo Medina (Relator): Postula-se a concessão da ordem para anular julgamento proferido pelo Tribunal de origem, realizando-se outro, com a apreciação da prova produzida.

Verifico, prima facie, a nulidade do acórdão condenatório, pois, evidente a falta de fundamentação.

O decisum motivou a condenação no fato de que as testemunhas arroladas pelo Paciente

?nada esclareceram, afirmando que só tomaram conhecimento do assunto, posteriormente, através de comentários feitos pelo próprio prefeito. Ficou claro no depoimento destas testemunhas, que elas não participaram da transação efetivada entre a Prefeitura Municipal de Tefé e a Empresa L.C.R. Navegação e Agropecuária/ no momento em que os fatos ocorreram, fragilizando tais depoimentos/ para combater os argumentos sustentados pelo dominus litis na peça inaugural. Assim, queda-se inerte o principal argumento da defesa do denunciado de que o cheque em questão foi dado como garantia de dívida, para descaracterizar o crime de estelionato. A cópia do cheque (fls. 11) n.º 000185, do Banco do Brasil, Agência de Tefé-Am, no valor de

R$ 40.000,00 (quarenta mil reais) devolvido pro três vezes, é a prova inconteste da prática do ilícito.? (fls. 183/STJ).

Estarrecido estou com o teor do decreto condenatório, porquanto o trecho transcrito corresponde à integralidade da fundamentação.

Nada mais há; sequer uma só referência à prova produzida pelo órgão ministerial, seja quanto aos fatos objetivamente considerados, seja com relação ao elemento subjetivo do tipo, ou seja, o intuito de fraudar.

Não houve qualquer apreciação das provas produzidas pela acusação para firmar o juízo condenatório, mas, ao contrário, afirmou-se que não logrou o acusado provar inverídicos os fatos a ele imputados, numa inaceitável inversão do ônus da prova ao presumir, juris tantum, como verdadeira a narrativa do Parquet, incumbindo ao réu o dever de desconstituir tal presunção.

É notório que o órgão acusador tem a obrigação jurídica de provar o alegado e não o réu demonstrar sua inocência. É característica inafastável do sistema processual penal acusatório, como retratado no art. 156 do Código de Processo Penal.

Nesse sentido, afirma AFRÂNIO SILVA JARDIM:

?O réu apenas nega os fatos alegados pela acusação. Ou melhor, apenas tem a faculdade de negá-los, pois a não impugnação destes ou mesmo a confissão não leva a presumi-los como verdadeiros, continuando eles como objeto de prova de acusação. Em poucas palavras: a dúvida sobre os chamados ?fatos da acusação? leva à improcedência da pretensão punitiva, independentemente do comportamento processual do réu.

Assim,

O ônus da prova, na ação penal condenatória é todo da acusação e relaciona-se com todos os fatos constitutivos do poder-dever de punir do Estado/, afirmado na denúncia ou queixa; conclusão esta que harmoniza a regra do art. 156, primeira parte, do Código de Processo Penal com o salutar princípio in dubio pro reo?. (Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: forense, 2000, p. 214).

Por outro lado, como sabido, o estelionato não se dá com a mera ocorrência de fato que, à primeira vista, se adéqua ao tipo do art. 171, CP, pois, indispensável a demonstração da intenção de fraudar.

O acórdão não analisou os elementos subjetivos do tipo consistentes no dolo e no especial fim de agir, de modo a fundamentar a afirmação de que o crime realmente acontecera, em total desprezo à prescrição do art. 93, IX, da Constituição da República.

Acrescento, por fim, que a decisão condenatória sequer fez menção ao documento juntado pela Defesa, consistente em declaração da vítima de suposto estelionato, dando conta que os cheques pré-datados, emitidos pelo Paciente, foram apresentados como garantia de um negócio jurídico firmado entre as partes – compra de combustível para o município de Tefé/AM.

Esse documento corrobora, ainda, a versão apresentada pela Defesa no sentido de que foram dados (03) três cheques (no valor de R$ 40.000,00 cada), em garantia de dívida, sendo que somente o último deixou de ser pago (fl. 199/STJ).

Outrossim, o acórdão recorrido, neste particular, também padece de vício, pois fere de morte o art. 5.º, inciso LV, da Constituição da República, bem como os artigos 231 e 400 do Código e Processo Penal.

Destarte, nula é a decisão proferida pelo Tribunal a quo.

Posto isso, CONCEDO a ordem para anular a decisão condenatória, para que outro julgamento seja proferido, apreciando-se, inclusive, a prova documental ignorada.

Decisão unânime, votando com o Relator os Ministros Maria Thereza de Assis Moura, Hamilton Carvalhido e Paulo Gallotti.

Ronaldo Botelho é advogado e professor da Escola da Magistratura.