Processo Penal. Júri. Inexigibilidade de conduta diversa. Tese da defesa. Possibilidade.

“HABEAS CORPUS N.º 12.917-RJ

REL.: MIN. JORGE SCARTEZZINI

EMENTA – Por ocasião do julgamento pelo Júri, tendo a defesa formulado a tese de inexigibilidade de conduta diversa, o quesito correspondente deve ser formulado aos jurados, mesmo que inexistia expressa previsão legal sobre tal tese nos dispositivos do Código Penal.

– Precedentes.

– Ordem concedida para que se possibilite a formulação de quesito acerca da causa supralegal de exclusão da ilicitude (inexigibilidade de conduta diverso)”.

(STJ/DJU de 10/06/02, pág. 227)

Com base em precedentes da Corte, a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, relator o ministro Jorge Scartezzini, considerou que, não obstante a divergência doutrinária e jurisprudencial no que tange ao reconhecimento pelo Júri de causa supralegal de exclusão da antijuridicidade, o melhor entendimento seria aquele que admite, como tese de defesa, a inexigibilidade de conduta diversa, com a respectiva quesitação.

Consta do voto do relator:

O Exmo. sr. ministro Jorge Scartezzini (relator): sr. presidente, pretende o impetrante a nulidade do v. acórdão proferido pelo E. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, que deu provimento ao recurso de apelação interposto pelo Ministério Público, anulando r. decisão do Tribunal do Júri que absolveu a paciente da imputação de homicídio qualificado, pelo acolhimento da tese de inexigibilidade de conduta diversa.

Consta dos autos que a paciente, filha da vítima, participou do delito de homicídio qualificado contra seu pai, contratando a empreitada com os dois outros denunciados, prometendo a paga de R$ 3.000,00 (três mil reais), tão logo recebesse o seguro de vida que fizera em nome desta, dias antes de ser morto.

Denunciada e pronunciada pelo crime tipificado no art. 121, § 2.º, I e IV, c/c o art. 61, II, “e”, do Código Penal, foi submetida a julgamento perante o Tribunal do Júri da Comarca de Nova Iguaçu, tendo sido absolvida pela incidência de causa de exclusão da culpabilidade, qual seja, a inexigibilidade de conduta diversa.

O Ministério Público interpôs recurso de apelação, requerendo, preliminarmente, a anulação do julgamento por insuperável vício de quesitação e, no mérito, caso não aceitas as preliminares, por ter sido a tese da defesa totalmente divorciada das provas dos autos. O eg. Tribunal a quo, em acolhimento ao apelo ministerial, anulou o julgamento, sob o argumento da necessidade de novo exame do conjunto probatório, indispensável ao melhor entendimento das matérias postas em discussão, devendo a paciente submeter-se a novo Júri Popular.

O writ procede.

Com efeito, no que tange ao reconhecimento da causa supralegal de exclusão de culpabilidade, apesar de não ser unânime a doutrina e a jurisprudência, o melhor entendimento me parece ser aquele em que se admite como tese de defesa, permitindo-se, com isso, a quesitação a respeito da inexigibilidade de conduta diversa.

À propósito, o eminente ministro Assis Toledo, por ocasião do julgamento do Resp 2.492/RS, ao examinar o tema aqui controvertido, salientou que é possível admitir-se causa supralegal desde que seja considerada a “não-exigibilidade” em seus devidos termos, não como juízo subjetivo do próprio agente do crime, mas como um momento do juízo de reprovação da culpabilidade, a ser emitido pelo juiz o Tribunal.

Alertou, porém, que não se deveria perguntar aos jurados, que se tem por leigos, teses ou conceitos jurídicos, mas fatos ou circunstâncias fáticas, como estabelece o art. 484, inciso III, do CPP, devendo ser apresentada de forma a ser seu entendimento perfeito e inteligível a estes.

Sob este prisma, corroborando tese esposada por Adriano Marrey, Alberto Silva Franco e Rui Stoco, in “Teoria e Prática do Júri, Revistas dos Tribunais”, destaco artigo apresentado por Rogério Lauria Tucci, in “Tribunal do Júri – Estados sobre a mais democrática instituição jurídica brasileira”, Ed. Revista dos Tribunais, 1999, p. 242/244, verbis:

“Se a defesa alega que, em determinadas circunstâncias históricas concretas em que agiu o réu, não se podia exigir dele conduta diversa, pode o juiz formular quesito a respeito dessa tese?

Sim.

O juiz deve formular o quesito da inexigibilidade de conduta diversa, ainda que não haja previsão legal expressa para a hipótese.

Para Aníbal Bruno, sob a ótica da concepção normativa da culpabilidade, “exclui-se a reprovação e, portanto, a culpabilidade, se ocorrem circunstâncias em face das quais não se pode exigir de quem atua um comportamento ajustado ao dever. A não exigibilidade de conduta diversa, em princípio, exclui do agente o juízo de culpável” (Direito Penal. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984, tomo II, p. 31). Magalhães Noronha, por sua vez, assevera que “se a culpabilidade é juízo de reprovação social, é censurabilidade: compõe-se de outro elemento: a exigibilidade de outra conduta”, pois “culpável é a pessoa que praticou o fato, quando outra conduta lhe era exigida e, ao revés, exclui-se a culpa pela inexigibilidade de comportamento diverso do que o indivíduo teve”(Direito Penal. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 1986, v.I.p. 100). Damásio Evangelista de Jesus, sustentando a concepção finalista da culpabilidade (normativa pura), também ensina que “só há culpabilidade quando, devendo e podendo o sujeito agir de maneira conforme o ordenamento jurídico, realiza conduta diferente, que constitui o delito. Então, faz-se objeto do juízo de culpabilidade. Ao contrário, quando não lhe era exigível comportamento diverso, não incide o juízo de reprovação, excluindo-se a culpabilidade”(Direito Penal. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 1985, v.I.p. 417). Assim, a conduta somente será reprovável “quando for possível fazer-se recair um juízo de reprovabilidade em face de suas características pessoais e das circunstâncias em que o agente atuou: (Escritos jurídico-penais. Das penas e sua execução do novo Código Penal. São Paulo: RT, p. 206). E, como lembra Walter Marciligil Coelho “a culpabilidade não pode prescindir de um juízo valorativo de conduta humana, e esse elemento normativo é fundamental à configuração da culpa penal, deixando em segundo plano o simples nexo psicológico da antiga concepção clássica”. E em que termos se fará esta avaliação? Quando se poderá afirmar que a ação criminosa é culpável, isto é, reprovável? Quando as circunstâncias do fato não impediam a agente de motivar-se de acordo com o dever, segundo Goldschmidt; ou, em outras palavras, indagando-se sempre da exigibilidade ou na exigibilidade de outra conduta, nas circunstâncias em que atuou o agente do crime, segundo Feudenthal” (op. cit., Erro de tipo e erro de proibição do novo Código Penal, p. 88).

As circunstâncias do fato, as quais Frank, em sua obra Estrutura do conceito de culpabilidade, chamava de concomitantes, não podem ser desprezadas na análise da conduta e, especialmente, de sua reprovabilidade. Como lembra Heitor Costa Júnior “não se duvida hoje que a autodeterminação humana está limitada pelas circunstâncias.” Na célebre lição de Ortega y Gasset : eu sou eu e as minhas circunstâncias” (O direito penal e o novo Código Penal brasileiro, a Reforma da parte geral do Código Penal Brasileiro, Porto Alegre, 1985, p. 51).

Como se vê, na estrutura da culpabilidade está a exigibilidade de um comportamento adequado ao dever, isto é, a conduta típica deve ser praticada em situação em que seja lícito exigir do agente, individualmente considerado no seu momento histórico, comportamento diferente. Não basta o cometimento de um fato típico e antijurídico para que surja a reprovação da conduta: é imprescindível que o agente, nas circunstâncias do fato, e em face de sua situação pessoal, tenha a possibilidade de realizar outra conduta, de acordo com o ordenamento jurídico. A inexigibilidade de conduta diversa, portanto, exclui a culpabilidade. E, obviamente, além daquelas circunstâncias legais e específicas de exclusão da culpabilidade em face da inexigibilidade de conduta diversa (v. Código Penal, artigo 22), há outras que, posto não previstas expressamente em lei, devem ser consideradas pelo julgador. Aliás, Aníbal Bruno, mesmo advogando uma concepção clássica a respeito do conceito de crime, afirma que o princípio que norteia a não exigibilidade de conduta diversa com caráter de causa geral de exclusão da culpabilidade “está realmente implícito no Código e pode aplicar-se, por analogia, a casos semelhantes aos expressamente previstos no sistema. Na realidade, são casos de verdadeira lacuna na lei, que a analogia vem cobrir pela aplicação de um princípio latente no sistema legal. É a analogia in bonan partem, que reconhecemos com tendo aplicação no Direito Penal”

(Direito Penal. Parte geral. v. II. 102)

Destarte, a inexigibilidade de outra conduta constituiu princípio de direito penal, devendo, portanto, além das hipóteses que foi consagrada por lei, ser admitida como causa supralegal de exculpação. Não verifico assim, nenhum obstáculo à sua acolhida como tese defensiva. Entendimento diversos contraria o sistema penal em vigor, infringindo o princípio da culpabilidade que, como é sabido é aceito sem restrições pelo ordenamento penal brasileiro. Pode-se afirmar que, sua não aceitação, em última análise, violaria o princípio maior da ampla defesa.

No mesmo sentido, esta Corte Superior de Uniformização em julgado da Relatoria do ilustre ministro José Arnaldo, assim decidiu:

“No julgamento pelo Tribunal do Júri, tendo a defesa formulado, em debates orais, a tese de inexigibilidade de conduta diversa, o quesito correspondente deve ser formulado aos jurados, ainda que não haja expressa previsão legal sobre tal tese nos dispositivos do Código Penal, sob pena de nulidade da decisão popular por configurar cerceamento do direito de defesa”(RT 750/589).

Por tais fundamentos, concedo a ordem para que se possibilite a formulação de quesitos a respeito de causa supralegal de exclusão de culpabilidade quando do novo julgamento pelo Tribunal do Júri.

É como voto.

Decisão unânime, votando com o relator os ministros Edson Vidigal, José Arnaldo da Fonseca, Felix Fischer e Gilson Dipp.

Ronaldo Botelho

é advogado e professor da Escola da Magistratura.