Prisão preventiva: Súmula 691/STF e excepcionalidade

 

Quem advoga na área criminal provavelmente já sentiu a necessidade de impetrar habeas corpus contra uma decisão que indefere pedido liminar de revogação da prisão preventiva em outro habeas corpus. Provavelmente, também, já teve que se deparar com a grande frustração de saber que a ordem de prisão é manifestamente ilegal ou está pautada em fundamento teratológico, mas, mesmo assim, seu pedido é barrado por suposto óbice na Súmula 691 do STF. A decisão abaixo trata dessas questões. Veja-se:

 

HABEAS CORPUS. SÚMULA 691/STF. CRIMES DE ROUBO MAJORADO E RECEPTAÇÃO. PRISÃO EM FLAGRANTE. PEDIDO DE LIBERDADE PROVISÓRIA. INDEFERIMENTO. AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO DA NECESSIDADE DA CUSTÓDIA CAUTELAR, NOS TERMOS DO ART. 312 DO CPP. AÇÃO CONSTITUCIONAL NÃO CONHECIDA. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO.

1. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é no sentido da inadmissibilidade de impetração sucessiva de habeas corpus, sem o julgamento de mérito da ação constitucional anteriormente ajuizada (cf. HCs 79.776, da relatoria do ministro Moreira Alves; 76.347-QO, da relatoria do ministro Moreira Alves; 79.238, da relatoria do ministro Moreira Alves; 79.748, da relatoria do ministro Celso de Mello; e 79.775, da relatoria do ministro Maurício Corrêa). Jurisprudência, essa, que deu origem à Súmula 691, segundo a qual “não compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer de habeas corpus impetrado contra decisão do Relator que, em habeas corpus requerido a tribunal superior, indefere a liminar“.

2. Tal entendimento jurisprudencial sumular comporta relativização, quando de logo avulta que o cerceio à liberdade de locomoção do paciente decorre de ilegalidade ou de abuso de poder (inciso LXVIII do art. 5º da CF/88).

3. A garantia da fundamentação importa o dever judicante da real ou efetiva demonstração de que a segregação atende a pelo menos um dos requisitos do art. 312 do Código de Processo Penal. Sem o que se dá a inversão da lógica elementar da Constituição, segundo a qual a presunção de não-culpabilidade é de prevalecer até o momento do trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Por isso mesmo foi que este Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC 84.078, por maioria, entendeu inconstitucional a execução provisória da pena. Na oportunidade, assentou-se que o cumprimento antecipado da sanção penal ofende o direito constitucional à presunção de não-culpabilidade. Direito subjetivo do indivíduo, que tem a sua força quebrantada numa única passagem da Constituição Federal. Leia-se: “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei” (inciso LXI do art. 5º).

4. No caso, a decisão que indeferiu o pedido de liberdade provisória do acusado – que não foi preso em flagrante por crime hediondo – não demonstrou, minimamente que fosse, o vínculo operacional entre a necessidade da segregação cautelar e os pressupostos do art. 312 do Código de Processo Penal, tal como estabelece o parágrafo único do art. 310 do mesmo diploma processual.

5. Habeas corpus não conhecido. Ordem concedida de ofício, nos termos do voto do relator.”

(STF – HC 103673/SP – 2ª T. – Rel. Min. Ayres Britto – DJe de 22.10.10. Destaques originais)

 

Do voto do relator, em referência à citada Súmula, consta:

“Sucede que esse entendimento sumular comporta relativização, quando de logo avulta que o cerceio à liberdade de locomoção do paciente decorre de ilegalidade ou de abuso de poder (inciso LXVIII do art. 5º da CF/88). O que me parece ser o caso dos autos. (…) Nessa contextura, tenho que magistrado processante da causa não demonstrou, minimamente, a presença dos requisitos necessários para a manutenção da segregação cautelar, nos termos do art. 312 do CPP. (…) Com efeito, não é preciso muito esforço para perceber a inexistência do conteúdo mínimo da fundamentação real das decisões judiciais. (…) Esse o quadro, não conheço do habeas corpus, ante o óbice da Súmula 691/STF. Todavia, concedo a ordem de ofício para determinar ao Juízo da 6ª Vara Criminal da Comarca de Campinas/SP a imediata expedição de alvará de soltura (…).”

 

N o t a s

 

        A solução técnica encontrada pelo colegiado parece não concordar com os fundamentos do voto, acima transcritos. Sim, pois está dito que o “entendimento sumular comporta relativização” em casos como o que foi julgado – o que leva a crer que pode ser conhecido o habeas corpus; porém, ao final, a Corte opta por não conhecer da ação.

            É claro que o resultado prático encontrado foi o mesmo. A ordem foi concedida de ofício, o que significa que o impetrante sequer teria interesse em recorrer do acórdão, já que seu pedido foi, afinal, atendido. Além disso, o acórdão está muito bem fundamentado no que concerne à excepcionalidade da prisão preventiva. É sempre oportuno frisar, como fez o relator em seu voto, a imperiosa necessidade de que o decreto judicial de prisão cautelar esteja lastreado em motivação real, qual seja, aquela que não se resume a menções genéricas e vazias à “presença dos requisitos legais”, à “gravidade do crime”, à “comoção popular”, à “credibilidade do Judiciário” e tantas outras fórmulas coringas do cerceamento da liberdade que tanto se veem na prática forense. A prisão cautelar, para ser justa, deve ser recomendada por elementos concretos e objetivos, localizáveis e individualizáveis nos autos do processo, como, p.ex., a prova de que o acusado tenta ameaçar testemunhas, evadir-se da jurisdição ou, de alguma forma, prejudicar a instrução criminal.

            Mas, afinal, por qual razão não se conheceu da ação? O que se insinua, da leitura do acórdão, é uma preocupação, da Corte, em simplesmente não encorajar que novas ações de habeas corpus sejam aforadas contra decisões que indeferem a liminar na instância inferior. É notório o abarrotamento de todas as instâncias do Poder Judiciário: o excesso de autos é uma realidade e a solução ainda não existe. Mas, para esse caso específico aqui comentado, caberia uma indagação: o fundamento pelo qual a ordem foi concedida de ofício não seria exatamente o mesmo fundamento que determinaria o conhecimento do habeas corpus? Sim, pois, se “sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção” será concedido habeas corpus (CF, art. 5º, LXVIII), então, ele deve ser, antes, e por questão de lógica, conhecido.

Nessa medida, embora possa parecer uma simples formalidade inofensiva, a solução de “não conhecimento” é uma grave afronta a Constituição, que, se, por um lado, atende ao pedido do solicitante (impedindo que ele recorra e, assim, que modifique a decisão), por outro lado, desatende ao interesse público, que deve ver, na jurisprudência do STF, a garantia de que não será afastada da apreciação do Poder Judiciário a coação à liberdade de locomoção (CF, art. 5º, XXXV). A sociedade busca, nas decisões do STF, precisamente a segurança de que ele conhecerá, como órgão máximo do Poder Judiciário, as violações a seus direitos, máxime em casos de prisão. Portanto, a manutenção da Súmula em questão, consubstanciada na recusa de se reconhecer o efeito prático da sua relativização, comporta ponderação, por desafiar a própria Constituição.

 

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