Princípio da insignificância e valores pecuniários

               O princípio da insignificância também é conhecido como princípio bagatelar, ligando-se à expressão – de igual conteúdo – crime de bagatela. O fato de que não está previsto na Constituição não afeta, de forma alguma, o seu reconhecimento e a sua aplicação: embora a lei seja um indício do princípio, ele não depende dela para existir. Se, por um lado, sua aplicação, na prática, não seja, hoje, incomum, por outro lado, é frequente a variação dos critérios objetivos adotados pelos julgadores para reconhecê-lo. Um desses critérios é valor monetário envolvido.

          O Supremo Tribunal Federal, recentemente, aplicou referido postulado em um caso em que a acusada teria furtado bens avaliados em R$ 382 (trezentos e oitenta e dois reais). Veja-se a ementa:

Habeas Corpus. 2. Furto. Bens de pequeno valor (R$ 382,00). Mínimo grau de lesividade da conduta. 3. Aplicação do princípio da insignificância. Possibilidade. Precedentes. 4. Ordem concedida.”

(STF – HC 106094/MG – Rel. Min. Gilmar Mendes – DJe de 20.5.11)

 

            O que chama a atenção, nesse precedente, é que o valor é muito maior do que o verificado na maioria dos demais casos em que se declara ser a conduta penalmente irrelevante (ele varia, geralmente, entre R$ 10,00 e R$ 100). Pode parecer, à primeira vista, que, por isso, talvez a conduta merecesse reprovação penal, especialmente se for feita a comparação de tal valor com o salário mínimo nacional e com a realidade da maioria dos cidadãos brasileiros.

            Todavia, é um erro ater-se exclusivamente ao critério do valor pecuniário envolvido para se avaliar a incidência do corolário em questão. Quem explica é o Ministro Gilmar Mendes, em seu voto:

“No caso concreto, discute-se a possibilidade da aplicação, ou não, do princípio da insignificância em virtude da suposta tentativa de furto de objetos do interior de supermercado (5 embalagens de bacalhau do porto, 1 minitender defumado, 1 embalagem de bolinhos de bacalhau), avaliados no montante de R$ 382,00 (trezentos e oitenta e dois reais).

Evidencio, inicialmente, que, após longo processo de formação, marcado por decisões casuais e excepcionais, o princípio da insignificância acabou por solidificar-se como importante instrumento de aprimoramento do Direito Penal, sendo paulatinamente reconhecido pela jurisprudência dos tribunais superiores, e também por este Supremo Tribunal Federal.

(…)

Não é razoável que o direito penal e todo o aparelho do Estado-Polícia e do Estado-Juiz movimentem-se no sentido de atribuir relevância a hipótese de furto de objetos subtraídos do interior de supermercado, avaliados no montante de R$ 382,00 (trezentos e oitenta e dois reais), quando as condições que circundam o delito dão conta da sua singeleza, miudeza e não habitualidade.

Isto porque, ante o caráter eminentemente subsidiário que o Direito Penal assume impõe-se sua intervenção mínima, somente devendo atuar para proteção dos bens jurídicos de maior relevância e transcendência para a vida social. Em outras palavras, não cabe ao direito penal – como instrumento de controle mais rígido e duro que é – ocupar-se de condutas insignificantes, que ofendam com o mínimo grau de lesividade o bem jurídico tutelado.

Assim, só cabe ao Direito Penal intervir quando os outros ramos do direito demonstrarem-se ineficazes para prevenir práticas delituosas (princípio da intervenção mínima ou ultima ratio), limitando-se a punir somente condutas mais graves dirigidas contra os bens jurídicos mais essenciais à sociedade (princípio da fragmentariedade).

(…)

Dessarte, insta asseverar, ainda, que, para chegar à tipicidade material, há que se pôr em prática juízo de ponderação entre o dano causado pelo agente e a pena que lhe será imposta como conseqüência da intervenção penal do Estado. A análise da questão, tendo em vista o princípio da proporcionalidade, pode justificar, dessa forma, a ilegitimidade da intervenção estatal por meio do Direito Penal.

Ademais, essa Corte tem entendido que, para incidência do princípio da insignificância, alguns vetores devem ser objetivamente considerados, quais sejam: a) a mínima ofensividade da conduta do agente; b) a ausência de periculosidade social da ação; c) o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento; d) a inexpressividade da lesão jurídica causada (Cf. HC n. 84.412/SP, rel. Min. Celso de Mello, 2ª Turma, unânime, DJe 19.11.2004).

Diante do exposto, destaco que, no caso em apreço, o prejuízo material foi insignificante – furto de bens avaliados no valor de R$ 382,00 (trezentos e oitenta e dois reais) – e que a conduta não causou lesividade relevante à ordem social, havendo que incidir, por conseguinte, o postulado da bagatela. (…)” (sublinhamos)

 

N o t a s

 

          Como se vê, há outros vetores a se observar. Em relação ao valor material, o julgador pode, sempre, ponderar o quanto o Estado despenderá na persecução do delito e fazer a confrontação com o montante apurado no caso concreto. Um processo judicial é custoso. Um exame que leve em conta o salário dos servidores públicos movimentados, o tempo que eles aplicam na causa e deixam de trabalhar em outras, o material utilizado (autos, papel, etiquetas, computadores, livros etc.), máxime quando o processo chega na última instância após anos de tramitação, certamente concluirá que um processo custa, ao Estado, muito mais do que poucas centenas de reais. Se essa análise não for feita o quanto antes em casos como o aqui comentado, o prejuízo social será tanto maior quanto mais tempo o processo durar.

          É claro que todos os outros fatores da controvérsia devem pesar. Se o valor em questão for baixíssimo, mas houver violência na conduta ou alguma circunstância denotar a alta periculosidade dos atos do agente, o investimento do Estado no processo estará plenamente justificado. Mas isso não ocorre em hipótese de furto de alguns poucos alimentos de um supermercado, cujo sistema de alarmes e de segurança provavelmente impedirão que o ilícito se consume.

          Parece inegável que, como aduziu o Ministro, o caráter subsidiário do Direito Penal é determinante aqui. Afinal, não se discute a reprovabilidade ética ou moral do ato de subtrair para si patrimônio alheio, tampouco o dever de indenizar por ato ilícito: trata-se da eventual permissão da mais grave forma de intervenção do poder público, a pena criminal e todas as suas consequências subjetivas. Enquanto houver formas menos traumáticas e prejudiciais de se lidar com as questões sociais, o castigo penal deverá permanecer reservado às verdadeiras ameaças a bens jurídicos indisponíveis, como a vida, a integridade física e a liberdade sexual.

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