Possibilidade de aplicação do princípio da insignificância em crimes ambientais

 

 

A ementa é a seguinte:

 

“RECURSO ESPECIAL. PENAL. CRIME AMBIENTAL. FALTA DE PREQUESTIONAMENTO. DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL NÃO COMPROVADA.  RESERVA BIOLÓGICA MARINHA. UNIDADE DE CONSERVAÇÃO FEDERAL. MAR TERRITORIAL. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. APLICAÇÃO DO VERBETE SUMULA N.º 283 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. AUSÊNCIA DE ANÁLISE DE TODAS AS TESES DEFENSIVAS. DESNECESSIDADE. REEXAME DOCONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO. SÚMULA N.º 07 DESTA CORTE. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. ANÁLISE DO CASO CONCRETO.

1. A tese referente ao art. 50 da Lei n.º 9.985⁄2000 não foi examinada pelo acórdão recorrido, a despeito da oposição de embargos de declaração, carecendo a matéria do indispensável prequestionamento viabilizador do recurso especial.

2. A divergência jurisprudencial não restou devidamente comprovada, conforme os arts. 541, parágrafo único, do Código de Processo Civil e 255, §§ 1.º e 2.º, do Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça.

3. O suposto crime teria ocorrido na Reserva Biológica Marinha do Arvoredo, criada pelo Decreto n.º 99.142 de 12⁄03⁄1990, localizada na região costeira ao norte da ilha de Santa Catarina, em pleno mar territorial, que é bem da União, nos termos do art. 20, inciso VI, da Constituição Federal, evidenciando-se a competência da Justiça Federal.

4. A questão do indeferimento de prova testemunhal assentou-se em mais de um fundamento, suficiente, por si só, para manter a decisão, sendo, portanto, inviável o conhecimento do recurso já que a parte deixou de infirmar um deles, consoante o verbete sumular n.º 283 do STF.

5. O julgador não está obrigado a responder todas as questões e teses deduzidas pela defesa, sendo suficiente que exponha de forma clara os fundamentos autônomos que embasam sua decisão. Ademais, constata-se que o acórdão recorrido rechaçou todas as teses defensivas.

6. A pretensão recursal acerca dos arts. 20 e 21, ambos do Código Penal, bem como do art. 386, incisos II, IV e VI, do Código de Processo Penal demanda, necessariamente, o reexame do conjunto fático-probatório, o que não se coaduna com a via eleita, consoante o teor da Súmula n.º 7 do STJ.

7. A aplicabilidade do princípio da insignificância deve observar as peculiaridades do caso concreto, de forma a aferir o potencial grau de reprovabilidade da conduta, valendo ressaltar que delitos contra o meio ambiente, a depender da extensão das agressões, têm potencial capacidade de afetar ecossistemas inteiros, podendo gerar dano ambiental irrecuperável, bem como a destruição e até a extinção de espécies da flora e da fauna, a merecer especial atenção do julgador.

8. No caso dos autos, constatou-se que a pesca artesanal de 03 ou 04 peixes não ocasionou expressiva lesão ao bem jurídico tutelado, afastando a incidência da norma penal.

9. Recurso especial conhecido parcialmente e, nessa parte, provido para, cassando o acórdão impugnado e a sentença de primeiro grau, absolver o Recorrente em face da atipicidade da conduta pela incidência do princípio da insignificância.”

(STJ – REsp 905864/SC – 5ª T. – Rel. Min. Laurita Vaz – DJe de 7.6.11)

 

Do acórdão, extraem-se os fundamentos fáticos e jurídicos do caso:

 

A EXMA. SRA. MINISTRA LAURITA VAZ (Relatora):

(…)

Não obstante, cumpre ressaltar que o suposto crime teria ocorrido na Reserva Biológica Marinha do Arvoredo, criada pelo Decreto n.º 99.142 de 12⁄03⁄1990, localizada na região costeira ao norte da ilha de Santa Catarina, em pleno mar territorial, que é bem da União, nos termos do art. 20, inciso VI, da Constituição Federal. Dessa forma, evidencia-se a competência da Justiça Federal para processar e julgar crime perpetrado na Reserva Biológica Marinha do Arvoredo.

(…)

De outra parte, extrai-se do acórdão recorrido que o agente foi preso em flagrante delito pela guarnição da Companhia de Proteção e Polícia Ambiental. Na ocasião, foram apreendidos os instrumentos utilizados para a pesca, bem como recipientes térmicos com 12kg de pescados. Observa-se que o Tribunal a quo, soberano na análise fático-probatória, entendeu por manter a condenação de primeiro grau, concluindo que a conduta de pescar em reserva ecológica se adequava ao crime contra fauna previsto no art. 34, caput, da Lei n.º 9.605⁄98. O acórdão hostilizado, ainda, rechaçou as teses defensivas de erro de tipo e de erro de proibição, como se observa dos seguintes trechos: 

“No mérito, o recorrente repisa os argumentos expendidos nas preliminares, negando, primeiramente, a autoria, e asseverando que “estava dormindo quando da abordagem pela Polícia Ambiental”. Acrescenta, por outro lado, que caso estivesse mesmo pescando, isso teria se dado unicamente por erro, haja vista que desconhecia a extensão total da Reserva. Inicialmente, não pode prosperar a discussão acerca da autoria, em face do que dispõe a Lei nº 9.605⁄98, verbis: Art. 36. Para os efeitos desta Lei, considera-se pesca todo ato tendente a retirar, extrair, coletar, apanhar, apreender ou capturar espécimes dos grupos dos peixes, crustáceos, moluscos e vegetais hidróbios, suscetíveis ou não de aproveitamento econômico, ressalvadas as espécies ameaçadas deextinção, constantes nas listas oficiais da fauna e da flora. Sem dúvida, consta da Notícia de Infração Penal Ambiental de fls. 9-11 rol de equipamentos de pesca apreendidos no barco de Jaime, junto à Ilha Deserta – dentro, portanto, da superfície marítima pertencente à Reserva – como varas, molinete, carretel e linha, além de quatro recipientes térmicos, nos quais guardava 12 kg de pescados. Nesse sentido, à luz do disposto na legislação, parece evidente que o acusado cometia ato tendente a apanhar peixes, apesar de aduzir que dormia no momento da abordagem. Com efeito, no interrogatório judicial, o denunciado levantou a tese de que a pesca ocorrera à noite, fora da Reserva, e que ele e os dois amigos que o acompanhavam só foram localizados no interior dela por ter o barco ficado à deriva durante a madrugada. Porém, não logrou trazer aos autos nenhum indício que pudesse afastar a força probatória do flagrante, nem informar quem o estaria acompanhando além de Zelmo. Ademais, a tese de erro ocasionado pelo desconhecimento não encontra resguardo na prova coligida. Em primeiro lugar, Jaime apôs sua assinatura no Auto de Infração de fl. 12, o qual relata a prática da conduta vedada, inexistindo notícia de que tenha contestado, em âmbito administrativo, a autuação. Paralelamente, na fl. 15, encontra-se petição firmada por ele, de sua livre iniciativa, e dirigida à Companhia de Polícia de Proteção Ambiental, reconhecendo o ato, e demostrando arrependimento. Por outro lado, à fl. 14, há declarações suas, no sentido de que conhecia a Reserva do Arvoredo, porém ignorava a extensão. Observe-se que, ao passo em que se disse parceiro na manutenção da REBIO, alegou desconhecer que a Ilha Deserta, junto à qual pescava, pertencia a ela. Porém, as testemunhas Witor da Silva e Mauro José Machado, arroladas pela defesa na condição de experts no assunto, afirmaram que tem quatro ilhas, sendo a Deserta uma delas (fls. 144-150). Nesse contexto, mostra-se estranho que Jaime, um colaborador no trabalho de conservação, e que se declarou também conhecedor da área, ignorasse a circunstância de que essa ilha fosse uma das quatro cobertas pela Reserva. Funda-se o argumento do erro também na alegada imprecisão quanto às dimensões extremas da área, tencionando a defesa fazer crer que os limites são mesmo confusos, de difícil apreensão para a maioria das pessoas que vivem no entorno. Contudo, há que atentar para o fato de que o flagrante não ocorreu em alto mar, mas reconhecidamente junto a uma das ilhas, inexistindo dúvida de que ela pertence à região defesa. De qualquer forma, impositivo considerar que, ou o agente dominava os limites da região em que a retirada de peixes do mar era vedada, ou, na melhor das hipóteses, assumiu o risco de pescar na área proibida, o que não afasta a subsunção do comportamento ao previsto no art. 34. A propósito, cabe trazer à colação o ensinamento de Vladimir e Gilberto Passos de Freitas (Crimes contra a Natureza, 6ª ed., Revista dos Tribunais, pp. 103-104) acerca do tema: “No caput, a conduta vedada é pescar em época proibida ou em lugar interditado. Os peixes, em sua grande maioria, se reproduzem soltando os ovos à deriva. É a chamada desova. Evidentemente, nesta época a pesca deve ser proibida, pois, caso contrário, a reprodução será prejudicada. (…) Por outro lado, às vezes o local é que deve ser interditado. Proíbe-se a pesca em certo local para que os espécimes que ali vivem tenham possibilidade de reprodução e crescimento.” (fls. 257⁄259).

Nesse contexto, a pretensão recursal acerca da fragilidade probatória, a suposta existência de erro de tipo e⁄ou erro de proibição demandam, necessariamente, o reexame do conjunto fático-probatório, o que não se coaduna com a via eleita, consoante o teor da Súmula n.º 7 do STJ. De outro lado, a parte Recorrente sustenta que houve violação ao art. 386, inciso II, do Código de Processo Penal, c.c. o art. 34, caput, da Lei n.º 9.605⁄98 por não ter sido aplicado o princípio da insignificância ao caso em análise, pois a apreensão teria sido seletiva, por meio de pesca de linha e molinete, de 12 kg de pescado. Cabe transcrever o art. 34, caput, da Lei n.º 9.605⁄98, in verbis: “Art. 34. Pescar em período no qual a pesca seja proibida ou em lugares interditados por órgão competente: Pena – detenção, de 1 (um) ano a 3 (três) anos ou multa, ou ambas as penas cumulativamente.”

A aferição da insignificância da conduta formalmente típica deve ser norteada pelos os vetores doutrinários e jurisprudenciais, tais como aqueles listados com maestria pelo eminente Ministro Celso de Mello no julgamento do HC n.º 84.412⁄SP: “a) a mínima ofensividade da conduta do agente, b) nenhuma periculosidade social da ação, c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada.”

A aplicabilidade do princípio da insignificância, assim, deve observar as peculiaridades do caso concreto, de forma a aferir o potencial grau de reprovabilidade da conduta, valendo ressaltar que delitos contra o meio ambiente, a depender da extensão das agressões, têm potencial capacidade de afetar ecossistemas inteiros, podendo gerar dano ambiental irrecuperável, bem como a destruição e até a extinção de espécies da flora e da fauna, a merecer especial atenção do julgador.

Ao analisar as peculiaridades do caso concreto, vê-se que somente foram apreendidos 12 (doze) quilos de pescado denominado garoupa ou garoupeta, nome científico Epinephelus Marginatus, bastante conhecido no litoral da Região Sul e Sudeste do país. Depreende-se que seriam três ou quatro peixes pescados de forma artesanal, o que não ocasionou expressiva lesão ao ambiente da Reserva Biológica Marinha do Arvoredo. Ante o exposto, CONHEÇO PARCIALMENTE do recurso especial e nessa parte, DOU-LHE PROVIMENTO para, cassando o acórdão impugnado e a sentença de primeiro grau, absolver o Recorrente em face da atipicidade da conduta pela incidência do princípio da insignificância.

É o voto.

MINISTRA LAURITA VAZ

Relatora” (Destaques originais)

 

N o t a s

 

Embora não seja incomum o entendimento de que “a quantidade de pescado apreendido não desnatura o delito descrito no art. 34 da Lei 9.605/98” (STJ – HC 192696/SC – 5ª T. – Rel. Min. Gilson Dipp – DJe de 4.4.11) diante da grande importância da proteção constitucional de que dispõe o meio ambiente, não se pode concluir que, apenas por isso, ele não pode suportar nenhum tipo de lesão – ainda que diminuta.

É verdade que “a Constituição Federal de 1988, consolidando uma tendência mundial de atribuir maior atenção aos interesses difusos, conferiu especial relevo à questão ambiental, ao elevar o meio-ambiente à categoria de bem jurídico tutelado autonomamente, destinando um capítulo inteiro à sua proteção” (idem). Mas, é igualmente certo que a Constituição tutela, em proporção ainda maior, os direitos do cidadão. E, dentre eles, está o princípio da dignidade da pessoa humana, que, em combinação com os critérios da individualização da pena (CF, art. 5º, XLV), da proporcionalidade e da mínima intervenção, podem indicar, no caso concreto, a ausência de reprovabilidade social da conduta.

Não se pode negar que reprovabilidade social é uma noção por demais abstrata. Por certo, ela veicula uma ideia de harmonia do âmbito particular com o público, isto é, não se privilegia, legalmente (salvo exceções), um sujeito em detrimento do meio ambiente. Porém, quando o meio público não for suficientemente prejudicado pela ação humana, é descabida a interferência estatal na sua esfera de liberdade. Isso porque se estaria permitindo uma inversão de importâncias no ordenamento: em que medida uma garantia do cidadão, como, por exemplo, o devido processo legal, não é, também, uma garantia pública? É dizer, o sacrifício desnecessário do direito do particular pode repercutir negativamente em todos os cidadãos, e, com isso, o dano social oriundo da pena seria maior do que dano advindo da ação reprovada.

Há condições para que se veja aplicar a sanção criminal: “a) a mínima ofensividade da conduta do agente, b) nenhuma periculosidade social da ação, c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada” (trecho da decisão em destaque). Tais condições valem para todos os casos em que a ofensa ao bem jurídico possa ser graduada.

Em crimes contra a vida, p.ex., não se pode medir a lesão: ou a vida foi ceifada – e, aí, a lesão nunca será insignificante – ou a vida subsiste – e, aí, poder-se-á cogitar de crime tentado ou de ausência de crime por outra razão. Já em crimes contra o meio ambiente, é plenamente possível ponderar a dimensão do dano: a pesca artesanal de dois peixes, p.ex., não pode acarretar à natureza prejuízo maior do que o causado pela invasão do poder público na esfera privada do cidadão para fins de censura penal. Afinal, o ser humano também compõe o meio ambiente. Nesse sentido, os seguintes precedentes: STJ – HC 128566/SP – 6ª T. – Rel. Min. Maria Thereza Rocha de Assis Moura – DJe de 15.6.11; STJ – HC 143208/SC – 5ª T. – Rel. Min. Jorge Mussi – DJe de 14.6.10; STJ – HC 112840/SP – 5ª T. – Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho – DJe de 3.5.10.

 

 

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