HABEAS CORPUS N.º 47.670-SP

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REL.: MIN. NILSON NAVES

EMENTA

1.A norma penal prevê a possibilidade de se aplicarem sanções outras que não a pena privativa de liberdade para crimes de pequena e média gravidade, como meio eficaz de combater a crescente ação criminógena do cárcere.

2.A disciplina da Lei n.º 8.072/90 e o disposto no Cód. Penal (art. 44) não são incompatíveis.

3.Em se tratando de réu primário e possuidor de bons antecedentes, não há falar em óbice à substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos.

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4.Ordem concedida.

(STJ/DJU de 20/11/06, pág. 365)

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Mesmo nos casos de crime hediondo, o réu primário e de bons antecedentes tem direito à substituição, nos casos cabíveis, da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, conforme a presente decisão da Relatoria do Ministro Nilson Naves, acompanhado pelos Ministros Paulo Gallotti e Maria Tereza de Assis Moura. Ausentes, justificadamente, os Ministros Paulo Medina e Hamilton Carvalhido.

Consta do Voto do relator:

O Exmo. Sr. Ministro Nilson Naves (Relator): Foi dito pela Juíza de Ribeirão Preto o seguinte:

?Analisados os fatores de individualização da pena, notadamente as circunstâncias do artigo 59 do Código Penal, tendo em vista que o réu é primário e de bons antecedentes, fixo a pena base no mínimo de 3 (três) anos de reclusão e pagamento de 50 (cinqüenta) dias-multa. Deixo de aplicar a redução da pena correspondente à atenuante pela sua menoridade, ante a fixação da pena base no mínimo legal. Torno esta pena definitiva ante a ausência de outras circunstâncias modificadoras.

Cada dia-multa fica no valor mínimo previsto na lei especial, dada a pouca fortuna do réu, dado que emerge dos autos.

O regime de cumprimento da pena privativa de liberdade será, integralmente, o fechado por expressa previsão legal (art. 2.º, § 1.º, da Lei 8.072/90). Ademais, os delitos de tráfico de entorpecentes são daqueles que contribuem para a segregação da família e da sociedade, sendo responsáveis pela degeneração física e moral do indivíduo, funcionando como delito propagador e incentivador de outros diversos.

O montante da pena e o crime cometido, não permitem quaisquer substituição ou favores legais.

Inaplicável, na espécie, as alterações promovidas pela Lei 9.714/98 que alterou o tratamento das penas restritivas de direitos no Código Penal.

De fato, a traficância é crime equiparado a hediondo (art. 2.º da Lei 8.072/90) e tal fato torna-o incompatível com a substituição promovida pelo novo diploma.

Ante o exposto, julgo procedente a pretensão punitiva deduzida em juízo, e o faço para declarar Wilson de Araújo, portador do RG n.º 45.616.871-0, filho de Benedito Custódio de Oliveira e Maria Aleide de Araújo, incurso no art. 12, ?caput?, da Lei 6.368/76, razão pela qual o condeno ao cumprimento de pena de 03 (três) anos de reclusão e pagamento de 50 (cinqüenta) dias-multa, a ser cumprida em regime integralmente fechado.?

Devolvida a matéria ao Tribunal de Justiça, decidiu-se assim:

?O regime fixado para o cumprimento da pena privativa de liberdade, o integral fechado, a teor do art. 2.º, § 1.º, da Lei 8.072/90, apresenta-se como adequado.

Esta norma legal não apresenta contornos de incostitucionalidade, pois, além do fato de que a individualização da pena não se resume à aplicação do sistema progressivo, o legislador constitucional conferiu ao ordinário, expressamente, sua regulamentação (CF, art. 5.º, XLVI).

A Lei 9.455/97, especial em relação ao crime de tortura, aplica-se somente a esta espécie penal, não tendo derrogado a Lei 8.072/90, no que diz respeito ao regime prisional a ser observado para o cumprimento da pena privativa de liberdade aplicada em razão de condenação por crime hediondo ou equiparado.

Por derradeiro, os crimes hediondos ou equiparados, por terem disciplina especial em relação ao cumprimento da sanção corporal, são incompatíveis com o sistema de penas alternativas e com a concessão de qualquer espécie de benefício ao início da execução penal.?

É de bom aviso recuperarmos a sentença nesta passagem (não alterada pelo acórdão): ?Analisados os fatores de individualização da pena, notadamente as circunstâncias do artigo 59 do Código Penal, tendo em vista que o réu é primário e de bons antecedentes, fixo a pena base no mínimo…? E essa pena se tornou definitiva. Tal, então, a circunstância, quero crer aplicável à espécie o escrito por mim para o HC-32.498, em pedido de vista:

?Ora, não são de hoje nem de ontem, mas de anteontem os apelos no sentido de que se deve, por uma série de razões de todos nós amplamente conhecidas, incentivar sejam adotadas sanções outras para os denominados delinqüentes sem periculosidade. Por exemplo, confiram-se os seguintes tópicos de três exposições de motivos: (I) ?Parece fora de dúvida que a gravidade da situação exige a imediata reformulação de alguns dispositivos legais, de modo a reservar o recolhimento a prisão para os criminosos de maior periculosidade, possibilitando aos estabelecimentos existentes dedicar-se com maior rigor àqueles cuja conduta representa mais acentuado perigo, quer para as pessoas, individualmente, quer para a sociedade, orientação que se coaduna com as recomendações de vários organismos internacionais? (Exposição de Motivos da Lei n.º 6.416/77); (II) ?Esse questionamento da privação da liberdade tem levado penalistas de numerosos países e a própria Organização das Nações Unidas a uma ?procura mundial? de soluções alternativas para os infratores que não ponham em risco a paz e a segurança da sociedade? (Exposição de Motivos da nova Parte Geral do Cód. Penal); (III) ?O espírito que norteou a Reforma de 1984 continua presente nesta parte, principalmente quando reafirmamos que ?uma política criminal orientada no sentido de proteger a sociedade terá de restringir a pena privativa de liberdade aos casos de reconhecida necessidade, como meio eficaz de impedir a ação criminógena cada vez maior do cárcere. Esta filosofia importa obviamente na busca de sanções outras para crimes de pequena e média gravidade, se assim considerar o juiz ser medida justa. Não se trata de combater ou condenar a pena privativa da liberdade como resposta penal básica ao delito. Tal como no Brasil, a pena de prisão se encontra no âmago dos sistemas penais de todo o mundo. O que por ora se discute é a sua limitação aos casos de reconhecida necessidade? (Exposição de Motivos do Projeto de Lei n.º 3.473/00, que altera a Parte Geral do Cód. Penal).

Então, se razão estritamente jurídica não houvesse, mas há, sem dúvida que há, razões de política criminal igualmente existem, ótimas e suficientes razões. Nos últimos dias e isso já aconteceu em outros momentos, inclusive através de palavras minhas , a imprensa escrita e falada dedicou páginas e páginas, palavras e palavras ao sistema prisional brasileiro, que passa, segundo as reportagens, ?por uma crise sem precedentes?.

Confira-se, entre outras, a edição 316 da Revista Época, que constata, primeiro, que ?cerca de 30% da população prisional poderia estar cumprindo penas alternativas. A aplicação não chega, porém, a 10% dos casos, enquanto na Europa atinge 70%?; segundo, que ?a desorganização prolonga a estada de quem já podia ter saído da prisão?. Confira-se, também, o artigo de Janio de Freitas publicado na Folha de S. Paulo de 6/6/04, que afirma: ?No Brasil enraizou-se a idéia de que a cadeia é escola do crime. Será a cadeia? Ou a escola do crime é a sociedade que, por suas representações políticas e institucionais, cria e preserva condições das quais o ser humano é levado a sair como ser desumano, se ainda não o era depois das experiências precedentes??

Já disse, mais de uma vez, mais vale o Penal preventivo que o Penal repressivo; aliás, o agravamento das penas, por si só, não constitui fator de inibição da criminalidade. Estou entre aqueles que defendem a necessidade de um direito penal humanitário.

Tal o contexto, concedo a ordem a fim de assegurar ao paciente a substituição da pena privativa de liberdade por duas restritivas de direitos a serem estabelecidas pelo Juízo da Execução Penal.?

O Relator Ministro Medina redigiu esta ementa para o acórdão (DJ de 17/12/04):

?Habeas corpus. Processo Penal. Aguardar julgamento em liberdade. Trânsito em julgado. Perda do objeto. Não-conhecimento. Tráfico. Pena substitutiva. Lei 8.072/90. Vedação. Incompatibilidade. Inexistência. Ordem concedida de ofício.

1. Com o trânsito em julgado da decisão condenatória, fica sem objeto o writ no qual se requeria a suspensão do mandado de prisão para a Paciente aguardar em liberdade o julgamento do recurso especial;

2. É aplicável o art. 44 do Código Penal aos crimes hediondos e equiparados, visto que não há impedimento legal, nem incompatibilidade com a Lei 8.072/90 no tocante ao cumprimento do regime integralmente fechado;

3. Ordem concedida, ex officio, para aplicação da pena restritiva de direitos em substituição à sanção privativa de liberdade.?

É de redação seguinte a ementa que escrevi para o REsp-754.630 (DJ de 21/11/05):

?Política criminal. Pena de prisão (limitação aos casos de reconhecida necessidade). Tráfico de entorpecentes. Substituição da pena (possibilidade). Art. 44 do Cód. Penal.

1. A norma penal prevê a possibilidade de se aplicarem sanções outras que não a pena privativa de liberdade para crimes de pequena e média gravidade, como meio eficaz de combater a crescente ação criminógena do cárcere.

2. A disciplina da Lei n.º 8.072/90 e o disposto no Cód. Penal (art. 44) não são incompatíveis.

3. Em se tratando de delinqüente sem periculosidade, não há falar em óbice à substituição da pena privativa de liberdade por pena restritiva de direitos.

4. Recurso especial improvido.?

Concedo a ordem a fim de assegurar ao paciente a substituição da pena privativa de liberdade por duas restritivas de direitos, a serem estabelecidas pelo Juízo da execução penal.

Ronaldo Botelho é advogado e professor da Escola da Magistratura.