Penal. Suspensão condicional da pena.Compatibilidade com os crimes hediondos.

EMENTA

Normas Penais – Interpretações. As normas penais restritivas de direitos hão de ser interpretadas de forma teleológica – de modo a confirmar que as leis são feitas para os homens -, devendo ser afastados enfoques ampliativos.

Suspensão condicional da pena. Crime Hediondo. Compatibilidade.

A interpretação sistemática dos textos relativos aos crimes hediondos e à suspensão condicional da pena conduz à conclusão sobre a compatibilidade entre ambos.?

(STF/DJU de 26/11/04, pág. 25)

Decidiu a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, relator o ministro Marco Aurélio, que é possível a concessão do benefício da suspensão condicional da pena nos delitos elencados na lei dos crimes hediondos.

Consta do voto do relator:

Quanto à suspensão condicional da pena, constata-se a observância do teto fixado na cabeça do artigo 77 do Código Penal – dois anos, não se tratando de condenado reincidente em crime doloso. No tocante à substituição prevista no artigo 44 do citado Código – da pena restritiva da liberdade pela restritiva do direito -, nota-se que o decreto condenatório, em face das circunstâncias judiciais e na primeira fase da dosimetria da pena, fez-se ao mundo jurídico no mínimo estabelecido para o tipo do artigo 12 da Lei n.º 6.368/76. Confira-se com a sentença que se encontra à folha 647 à 654, mais precisamente com a parte constante da folha 651. Então, seria dado concluir pelo enquadramento da situação jurídica do paciente no artigo 77 do Código Penal. Todavia, surgiu a óptica segundo a qual a suspensão em análise é incompatível com o regime de cumprimento integralmente fechado versado na Lei n.º 8.072/90. Embora o meu entendimento seja semelhante ao do ministro Ilmar Galvão – a que já me referi anteriormente -, o óbice até aqui prevalecente à aplicação do artigo 77 do Código Penal está submetido ao crivo do Plenário. Cumpre, então, a este Colegiado, definir se entende relevante ou não, o desfecho do processo que veicula a inconstitucionalidade da Lei n.º 8.072/90 em relação ao problema do regime de cumprimento da pena. De minha parte, penso dispensável a elucidação do tema. Assim concluo dada a impossibilidade de interpretar-se preceito legal elastecendo-lhe o rigor. O artigo 2.º da Lei n.º 8.072/90 afasta assim a anistia, a graça, o indulto, a fiança e a liberdade provisória. É certo que, a seguir, tem-se cláusula do regime de cumprimento da pena. Não menos correto é que ela somente se aplica a situação concreta em que a reprimenda, conforme os ditames do arcabouço normativo em vigor, deva ser cumprida. Ora, a partir do momento em que os pressupostos do artigo 77 do Código Penal esteja presentes e não havendo a lei em questão afastado o instituto da suspensão condicional, como também não o fez quanto à substituição da pena privativa de liberdade pela restritiva de direito, descabe interpretação por analogia contrária à defesa. Nesse sentido é a melhor doutrina que transcrevo apenas para efeito de documentação:

Teria cabimento a suspensão condicional da pena nos crimes hediondos?

A Lei 8.072/90 não contém nenhuma norma explícita que exclua a possibilidade de aplicação do sursis, não se podendo extrair a conclusão de sua incompatibilidade em face da mera aposição da etiqueta hediondo num determinado tipo penal. Além disso, o princípio constitucional da humanidade das penas, que informa o direito penal moderno, impede que se afaste, por via exegética, todo e qualquer posicionamento favorável ao acusado.

(Alberto Silva Franco, Crimes Hediondos – Anotações Sistemáticas à Lei 8.072/90, pág. 224, Ed. RT).

A execução da pena imposta em face de sua prática, presentes seus pressupostos objetivos e subjetivos, não é incompatível com o sursis. Ex.: tentativa de atentado violento ao pudor, imposta pena mínima de dois anos de reclusão. Não impede o disposto no art. 2.º, § 1.º, da Lei n.º 8.072/90, que disciplinou os delitos hediondos e deu outras providências, segundo o qual a pena deve ser executada integralmente em regime fechado. Ocorre que o sursis constitui uma medida penal sancionatória de natureza alternativa, não se relacionando com os regimes de execução. Nesse sentido: Antônio Scarance Fernandes, Considerações sobre a Lei 8.072, de 25 de julho de 1990 – crimes hediondos, RT, 660:261 e 266 e 751:578; (Damásio de Jesus, Código Penal Anotado, pág. 262, Ed. Saraiva).

Nada impede que seja concedido o sursis ao condenado por crime hediondo ou equiparado que preencha os requisitos legais. Na falta de regra especial que o proíba, aplicam-se as regras gerais sobre a concessão da suspensão condicional da pena. (Julio Fabbrini Mirabete, Manual de Direito Penal – Parte Geral, pág. 324, Ed. Atlas S.A.)

Apesar de, objetivamente, ser possível a suspensão condicional, há duas posições a esse respeito: a) cabe sursis, pois a Lei 8.072/90 não o vedou de modo algum, não competindo ao juiz criar restrições onde o legislador não previu. Assim: ?Admissibilidade – Preenchimento pelo réu dos requisitos do art. 77 do CP – Lei 8.072/90 que impõe o cumprimento da pena em regime fechado para aqueles que devam recolher-se a presídios, excluídas assim as hipóteses em que, atendidos os pressupostos, seja viável o sursis – Inadmissibilidade da interpretação analógica ou extensiva, sobretudo quando se trate do comprometimento ao direito à liberdade. Embora se batam alguns pela inadmissibilidade do sursis, em que se cuidando de crimes hediondos, o certo é que a lei especial não impôs nenhuma restrição a esse respeito. Disse, é certo, que as penas de tais crimes serão cumpridas, integralmente, em regime fechado, mas assim dispôs, é claro, para os casos em que se cuide de réu que deva recolher-se a presídio, não para hipóteses em que, por força da quantidade da pena e do atendimento aos demais pressupostos a tanto exigidos, seja viável a suspensão condicional. A restrição reclamava imposição expressa, pois, é curial, em sede de comprometimento ao direito à liberdade, não se compreende aceitação dele mercê interpretações analógicas ou extensivas da norma que a ele não se refere ostensivamente. Estando presentes os requisitos do art. 77 do CP, há de deferir-se o sursis (TJSP, Ap. 153.487-3, 2.º C., rel. Canguçu de Almeida, 12/07/1995, v. u., RT 719/391); STJ, RT 739/572; TJSP. Ap. 181.250-3, Barueri, 6.ªC., rel. Gentil Leite, 01/06/1995, v. u.; TJSP, Ap. 196.318-3, São Roque, 3.º C, rel. Oliveira Passos, 12/05/1997, v. u.; b) (…). A corrente majoritária é a primeira, embora seja da nossa preferência adotar o meio-termo. De fato, tendo cometido um crime hediondo, não é razoável tenha o réu direito a exigir, sempre, a concessão do sursis, embora não se lhe possa negá-lo sistematicamente. A gravidade do crime faz parte dos requisitos para a obtenção do benefício (art. 77, II, CP), de modo que, conforme o caso, o juiz pode deixar de conceder a suspensão condicional da pena para o condenado por delito hediondo. Mais adequado, portanto, é analisar caso a caso com maior rigor, concedendo sursis ao sentenciado que, realmente, merecer. (Guilherme de Souza Nucci, Código Penal Comentado, págs. 77 e 78, Ed. Revista dos Tribunais).

A aplicação do sursis não é incompatível com os crimes hediondos, uma vez atendidos os requisitos legais cf. a Súmula n.º 7 do TJMG. Anteriormente à Lei n.º 8.072, de 25/07/1990, já se admitia a suspensão para o caso de tráfico de entorpecentes ou drogas afins (STJ, em DJU de 18/09/1989, p. 14.666). E após a vigência do aludido diploma, a melhor doutrina tem mantido esse entendimento (Damásio de Jesus, Código Penal Anotado, p. 209). (René Ariel Dotti, Curso de Direito Penal – Parte Geral, pág. 588, Ed. Forense).

É a regra primária de hermenêutica que as normas que restringem direitos individuais devem ser interpretadas restritivamente. Se a Lei 8.072/90 não vedou expressamente a suspensão condicional da pena, o hermeneuta não pode lançar mão de interpretação dilatória ou ampliativa, para fazer incluir no rol de proibições de direitos e garantias, elencadas no referido texto legal, mais esta restrição. (Cláudia Viana Garcia, Sursis e a Lei n.º 8.072/90, Revista Jurídica, Ano XLV, n.º 239, Setembro de 1997, pág. 30, Ed. Síntese).

Por isso, assento, independente do que se venha a deliberar sobre a inconstitucionalidade da Lei n.º 8.072/90, sob o ângulo da individualização da pena, que a previsão do cumprimento desta no regime fechado está ligada, em si, à execução, e não à norma de direito substancial instrumental reveladora da suspensão condicional da pena. Concedo a ordem.

Decisão unânime, votando com o relator os ministros Cezar Peluso, Carlos Britto e Eros Grau.

Ronaldo Botelho é advogado e professor da Escola de Magistratura.