Penal. Processual penal. Habeas corpus. Falso testemunho.

HABEAS CORPUS Nº 55.442 – SC
REL.: MIN. MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA
EMENTA

1. A alteração do teor de depoimento de testemunha que havia sido ouvida no curso da ação penal que ensejou a condenação do paciente é motivo suficiente para autorizar o conhecimento de ação revisional, por caracterizar prova nova.

2. É possível a utilização de prova produzida em ação de justificação criminal proposta por terceiros, e que não contou com a participação do paciente, se esta lhe é benéfica.

3. Ordem concedida para determinar ao tribunal a quo que conheça da ação de revisão criminal interposta pelo paciente, analisando as provas por ele trazidas, em especial aquelas produzidas no seio de justificação criminal interposta em favor de S.J.G.B.

(STJ/DJe de 3/8/2009)

Decidiu o Superior Tribunal de Justiça à unanimidade, Relatora a Ministra Maria Thereza de Assis Moura, que a prova produzida em processo de justificação criminal afastando depoimento que incriminava o paciente, constitui nova prova, apta a ser utilizada em favor do réu.

Votaram com a Relatora os Ministros Og Fernandes, Celso Limongi (Desembargador convocado do TJ/SP) e Paulo gallotti votaram com a Sra. Ministra Relatora.

Consta do voto da Relatora:

Ministra Maria Thereza de Assis Moura (Relatora):

Chamou-me a atenção o fato de que o acórdão objurgado, assim como aquele que negou provimento aos embargos, afasta de forma veemente a utilização do teor de depoimentos prestados em ação de justificação criminal que trariam a pretendida prova da inocência do paciente. Reproduzo aqui, novamente, os argumentos expendidos a respeito:

“Além disso, causa espécie a irresignação do embargante sob esse aspecto, eis que, nas razões do apelo que interpôs, opôs-se às provas obtidas naquele processo (080.98.004212-7), entendendo não se prestarem para embasar o decreto condenatório, por se tratar de prova emprestada.

Agora, pretende fazer valer a justificação criminal ali realizada. Contudo, nesse ato, não houve participação da acusação nos autos em comento, como seria de rigor. Portanto, utiliza-se, nesse ponto, o mesmo raciocínio despendido pelo requerente ao entender inválidas as provas contidas naquele processo, eis que não respeitado o contraditório. E isso foi alvo de manifestação no acórdão mencionado, em que ficou esclarecido não ter a condenação restado calcada naqueles elementos, mas tão-somente nos contidos nos presentes autos.”

É certo que a justificação criminal em questão teria sido realizada de sorte a embasar revisão criminal em favor de outra pessoa, que não o ora paciente. Todavia, a meu ver, isso não constitui verdadeiramente um óbice à análise de seu conteúdo para beneficiar o paciente em sua revisão criminal, especialmente quando as mesmas testemunhas que o incriminaram, sustentando a acusação de falso testemunho, teriam voltado atrás em seu depoimento, afirmando que teriam feito um acordo para incriminar a mesma pessoa que o paciente teria procurado inocentar com o seu testemunho.

Se não, vejamos. Na sentença que condenou o paciente pelo crime de falso testemunho, assim foi valorada a prova contra ele:
“(…)

Emerge do contexto probatório, que os réus acima mencionados, foram denunciados, processados e condenados na ação penal n.º 088/94, que tramitou na 2.ª Vara desse Juízo, pelo bárbaro crime de latrocínio praticado na manhã do dia 21 de abril de 1994, por volta das 6 horas, contra a vítima Jean Paulo Picinatto.

Consta que os réus Emerson e Sílvio, armados de adaga e revólver, surpreenderam a vítima Jean Paulo quando esta chegava em casa com seu veículo, e sob ameaça, Emerson no volante e Sílvio no banco traseiro, dirigiram-se rumo à BR 467, parando em determinado ponto da estrada, quando obrigaram a vítima a assinar todas as folhas de cheques que trazia consigo. Aproveitando-se de um descuido, a vítima buscou empreender fuga, quando foi alvejada com um tiro nas costas, e, em seguida, esgorjada com a adaga. Depois de matar Jean Paulo, subtraíram o veículo do mesmo, sendo que Emerson conduziu este rumo à Mariópolis (PR), enquanto que Sílvio retornou ao centro da cidade em companhia do réu Edson, que desde o primeiro momento dava cobertura aos comparsas, tripulando outro veículo. No curso da instrução, apurou-se que este veículo tratava-se de um opala verdade escuro, e que na noite do crime foi visto rodando pela cidade, pilotado por Edson, fato negado por este e seu irmão, que aduziam já haver entregue o carro para o acusado Miguel Antonio no dia anterior ao crime, o qual, arrolado como testemunha de defesa, endossou essa versão em juízo. Contudo, o álibi criado não restou provado, tendo os réus sido condenados, e imputado ao ora acusado, falsidade em seu depoimento.

O acusado ao ser interrogado em juízo, ratificou in totum suas declarações prestadas naquela ação penal como testemunha de defesa, declarando que havia prestado serviços profissionais para os irmãos Edson e Sílvio Gonçalves Bueno, e como pagamento de seus honorários recebeu o Opala 1986, de cor verde escuro, de propriedade destes, esclarecendo:

‘(…)’.

Com esta versão, é certo que Miguel Antonio procurou dar azo ao álibi criado pelos réus Edson e Sílvio, os quais negavam qualquer participação no crime que vitimou Jean Paulo.

(…)

Perfilhando a prova oral colhida nestes autos, sob o crivo do contraditório, colhe-se que as testemunhas da acusação Anselmo Fernandes e Bastião Carneiro foram firmes, seguras e harmônicas em suas declarações, comparado aos depoimentos prestados no processo crime n.º 088/94, afirmando ter visto Edson circulando na noite que antecedeu o crime com o veículo Opala, cuja posse é alegada pelo acusado, bem como, Sílvio caminhando em companhia de Emerson, por volta das 5:00 horas da manhã.

(…)

Inegável que tais divergências fazem desmerecer a credibilidade da versão ofertada pelo acusado, e, com certeza, contribuíram decisivamente para a formação do convencimento do julgador quando do julgamento da outra ação penal.

(…)

No caso vertente, o tipo objetivo restringe-se a sua afirmação falsa, informando que na noite dos fatos, estava em poder do veículo Opala verde escuro, utilizado pelos réus para a execução do crime que vitimou o jovem Jean Paulo, quando na verdade, testemunhas e o próprio comparsa daquela empreitada criminosa, Emerson da Silva, afirmam que o Opala foi usado por Edson para dar proteção à ação dos demais.

Inquestionável, ao fazer afirmação falsa, como testemunha compromissada, com o fim de obter prova destinada a produzir efeito em processo criminal, configurou-se o crime de falso testemunho previsto no art. 342, §1.º, do Código Penal.” (fls. 37/40).

A condenação foi mantida em segunda instância com base nos mesmos fundamentos.

De se ver, portanto, que a prova contra o paciente foi eminentemente de cunho testemunhal, e em especial, com base nos testemunhos de Anselmo e Emerson. Se estas mesmas pessoas que o incriminaram (no caso de Anselmo, que faleceu após os fatos, o depoimento de seus familiares) agora reconhecem em ação de justificação criminal proposta por Sílvio Júnior Gonçalves Bueno que mentiram na ação penal que apurava o crime de latrocínio (e sustentaram a mesma versão contra o paciente na ação que apurou o falso testemunho) com o único propósito de incriminar os acusados, entendo que existe fato superveniente e relevante ao menos para o conhecimento da ação revisional.

O artigo 621, inciso III do Código de Processo Penal autoriza a revisão de sentenças penais condenatórias quando “após a sentença, se descobrirem novas provas de inocência do condenado ou de circunstância que determine ou autorize diminuição especial da pena”.
A leitura de tal dispositivo relativo à revisão criminal me faz recordar o debate travado por esta mesma Corte quando, no julgamento do habeas corpus n.º 51.958, perquiriu-se sobre o que deveria ser considerada como nova prova, apta a reabrir inquérito policial arquivado. Naquela oportunidade, tracei alguma considerações de ordem doutrinária que entendo relevantes também para o deslinde do presente caso, pois lá cheguei à conclusão de que o ineditismo no depoimento de testemunha já ouvida pode ser considerado como prova nova. Ali desenvolvi os seguintes argumentos, os quais passo a reproduzir:

“Para melhor divisar o conteúdo do instituto prova nova, socorre-se do magistério de JOSÉ FREDERICO MARQUES, o qual lembra as lições de BENTO DE FARIA que:

‘ensina o sentido da expressão novas provas – do art. 18, – para dizer que por elas ‘se entende as que não foram apreciadas, mas não a nova conceituação das que foram produzidas’. E reproduz o ensinamento de MARCONI-MARONGIU, nos termos seguintes:
‘Nuove prove, non diversa valuntazione dei fatti già accertati ‘.

Esclarece, por fim, que essas novas provas, ‘podem ser constituídas pelos novos depoimentos das testemunhas já ouvidas, ou novas declarações do praticante do crime, ou exame de documentos ainda não submetidos ao conhecimento do juiz’. (Elementos de direito processual penal. 2. ed. atual. por Eduardo Reale Ferrari. Campinas:

Millenium, 2000, v. 2, p. 206, destaquei).

Cumpre ainda salientar o entendimento do saudoso Professor SÉRGIO MARCOS DE MORAES PITOMBO:

‘As sentenças penais, que mandam arquivar inquérito , se e quando surgem terminativas , geram, apenas, coisa julgada formal. O reavivar do procedimento depende, então, sempre de novas provas (art. 18, do Cód. de Proc. Penal e Súm. n.º 524, do Sup. Trib. Federal).

Novas provas, ou outras provas, consistem em aquelas cujo conhecimento emerge superveniente ao ato decisório. Não se cuida, por óbvio, de reciclar as provas já conhecidas, ou de reinterpretar o sabido e afirmado, na decisão anterior (arts. 18, 409, par. único e 622, par. único, do Cód. de Proc. Penal).

‘Por novas provas se entende as que não foram apreciadas, mas não a nova conceituação das que foram produzidas’.

As outras provas para, assim, proporcionarem acusação necessitam de:

‘… alterar o quadro probatório de que dispunha o Ministério Público , quando requereu o arquivamento’. (Inquérito policial: novas tendências. Belém: Cejup, 1986, p. 31-32).

Em atenção ao posicionamento dos cultuados processualistas, tenho para mim que se está a tratar de prova nova, apta a proporcionar o desarquivamento, pois o depoimento da testemunha José Raimundo Sobral possibilitou uma nova condução, pelo Ministério Público, do caso, até então arquivado por insuficiência de provas relativas a autoria.

Com aludido depoimento, surgiu uma versão acerca dos fatos, a qual não foi apresentada anteriormente.

Para se alcançar o seu caráter novedio, é importante, antes, precisar o conceito de prova. Segundo TOURINHO FILHO:

‘Provar é, antes da mais nada, estabelecer a existência da verdade; e as provas são os meios pelos quais se procura estabelecê-la.

Entendem-se, também, por prova, de ordinário, os elementos produzidos pelas partes ou pelo próprio Juiz visando a estabelecer, dentro do processo, a existência de certos fatos.’ (Manual de processo penal. 8.ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 506) Ainda acerca do conceito do instituto, abrangente é a pesquisa realizada por FRANCISCO BAPTISTA, verbis :

‘Na definição de Chiovenda, ‘provar significa formar a convicção do juiz sobre a existência ou não de fatos relevantes no processo’; os modernos Cintra, Grinover e Dinamarco assentam que ‘[a] prova constitui, pois, o instrumento por meio do qual se forma a convicção do juiz a respeito da ocorrência ou inocorrência dos fatos controvertidos no processo’.

Os mestres do processo penal exprimem-se com igual segurança.

Na palavra de Espínola Filho, ‘[a] prova é justamente a atividade desenvolvida, no curso dessa ação [penal], no sentido de convencer de que ocorreu, efetivamente, a infração penal e dela é ou são autores quem a denúncia ou queixa acusa, bem como de ter havido, ou não, causas, que, justificando a ação ou omissão excluem a criminalidade, ou motivos para afastar a responsabilidade do agente; Magalhães Noronha adota o entendimento de Florian, para quem ‘provar é fornecer, no processo, o conhecimento de qualquer fato, adquirindo, para si, e gerando noutrem, a convicção da substância ou verdade do mesmo fato’, acrescentando-lhe a de Amaral dos Santos, que a define como ‘a soma dos fatos produtores da convicção dos produtores da convicção dentro do processo; Tornaghi a qualifica, enquanto atividade, como ‘uma reconstrução histórica’, mas ligada ao propósito de ‘formar a convicção do juiz’ e ‘demonstrar ao juiz a veracidade ou falsidade da imputação feita ao réu e das circunstâncias que possam influir no julgamento (…)’. (O mito da verdade real na dogmática do processo penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 60-61).

Evidencia-se, no caso, que, embora ouvido anteriormente, o depoente guardou informações que, para o universo do procedimento investigatório, podem ser considerados novas, visto que ali não figuravam.

Acerca de tal conceito jurídico processual penal de prova nova, esta Turma já assentou:

“HABEAS CORPUS . PROCESSO PENAL. INQUÉRITO POLICIAL. DESARQUIVAMENTO. NOVAS PROVAS. ENUNCIADO 524 DA SÚMULA DO STF. POSSIBILIDADE.

1. Entendem doutrina e jurisprudência que três são os requisitos necessários à caracterização da prova autorizadora do desarquivamento de inquérito policial (artigo 18 do CPP): a) que seja formalmente nova, isto é, sejam apresentados novos fatos, anteriormente desconhecidos; b) que seja substancialmente nova, isto é, tenha idoneidade para alterar o juízo anteriormente proferido sobre a desnecessidade da persecução penal; c) seja apta a produzir alteração no panorama probatório dentro do qual foi concebido e acolhido o pedido de arquivamento;

2. Preenchidos os requisitos – isto é, tida a nova prova por pertinente aos motivos declarados para o arquivamento do inquérito policial, colhidos novos depoimentos, ainda que de testemunha anteriormente ouvida, e diante da retificação do testemunho anteriormente prestado -, é de se concluir pela ocorrência de novas provas, suficientes para o desarquivamento do inquérito policial e o conseqüente oferecimento da denúncia;

3. Recurso a que se nega provimento.

(RHC 18.561/ES, Rel. Ministro HÉLIO QUAGLIA BARBOSA, SEXTA TURMA, julgado em 11/4/2006, DJ 1/8/2006 p. 545, destaquei)
Assim, apesar de a testemunha José Raimundo Sobral não ser nova no rol das pessoas ouvidas no inquérito, as suas declarações revestiram-se de ineditismo e afiguraram-se devidamente relevantes para desencadear a providência do art. 18 do Código de Processo Penal. Portanto, conclui-se que o meio de prova não era novo, mas o objeto de prova, o fato narrado pela testemunha, este sim, veio trazer luzes para a configuração dos indícios de autoria.”

Assim, não é de ser desprezada a importância da prova produzida na justificação criminal, ao argumento de que já foi analisada pelo acórdão que julgou a apelação.

Isto porque a mudança no teor dos depoimentos – inclusive com o acréscimo de nova informação, no sentido de que houve um ajuste voltado à produção de provas para a condenação dos acusados no processo de latrocínio – basta para a sua revaloração em sede revisional, cabendo ao tribunal a quo, que é o juízo natural do caso, apreciar a sua relevância e pertinência, para o fim, eventualmente, e se for o caso, de rescindir o édito condenatório, como pretendido pelo impetrante/paciente.

Por fim, e com supedâneo no que até então expus, não vejo a contradição apontada pelo acórdão que julgou os embargos declaratórios, no sentido de que a defesa do paciente teria se insurgido contra a utilização de prova emprestadas de outro processo para incriminá-lo, não podendo agora pretender a utilização de outro processo para beneficiar o paciente. Correta a defesa, a meu ver, em procurar afastar a utilização de prova produzida no processo relativo ao latrocínio que prejudicava o paciente, sob a alegação de violação ao contraditório. Quando a situação se inverteu, todavia, nenhum problema há em procurar importar de outro processo a prova que atualmente o beneficia, porque a falta de contraditório por parte do paciente não pode ser invocada para limitar o exercício de sua ampla defesa.

Embora não haja cópias da justificação criminal nos autos, entendo que caberá ao tribunal a quo, após conhecer da revisão criminal em questão, analisar o seu conteúdo, de molde a verificar se efetivamente há algo que aproveite em favor do paciente, ou que possa revelar eventual erro judiciário.

Ante o exposto, concedo a ordem para determinar ao tribunal a quo que conheça da ação de revisão criminal interposta pelo paciente, analisando as provas por ele trazidas, em especial aquelas produzidas no seio de justificação criminal interposta em favorde Sílvio Júnior Gonçalves Bueno.

É como voto.

Ronaldo Botelho é advogado e professor da Escola da Magistratura.