Penal. Pena inferior a 4 (quatro) anos. Regime prisional. Condenado reincidente. Admissibilidade do regime aberto.

“HABEAS CORPUS N.º 20.733 – SP

REL.: MIN. VICENTE LEAL

EMENTA

– A fixação do regime inicial integra o processo de individualização da pena, regulando-se pela compreensão sistemática do art. 33, § 2.º, e do art. 59, ambos do Código Penal, com integração do critério relativo ao quantum da pena e critério pertinente às circunstâncias judiciais.

– Na compreensão sistemática das alíneas do § 2.º do art. 33, do Código Penal, a melhor exegese aponta no sentido de ser admissível a imposição do regime semi-aberto aos condenados reincidentes cuja pena seja igual ou inferior a quatro anos, consideradas as demais circunstâncias judiciais (art. 59) em plano favorável.

– Habeas corpus concedido.”

(STJ/DJU de 5/8/02, pág. 415)

Não é de hoje que a doutrina e a jurisprudência vêm alertando contra a especial relevância que a reforma penal de 84 conferiu à reincidência como indicador da periculosidade do infrator a exigir medidas mais severas na imposição e execução da pena.

Na edição de 25/1/98, colocamos em destaque acórdão da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, relator o ministro Cernicchiaro, analisando a própria estrutura da reincidência e a sua repercussão na definição da situação jurídica do condenado:

“RECURSO EM HABEAS CORPUS N.º 5.145/RS

REL. DESIG.: MIN. LUIZ VICENTE CERNICCHIARO

EMENTA

RHC. Penal. Agravante. Reincidência. A reincidência está incluída no rol das circunstâncias agravantes. Não se esgota, porém, em dado meramente cronológico: crime praticado depois de condenação por crime anterior, com trânsito em julgado. Impõe-se, além disso, examinar se a repetição do agente evidencia tendência genérica, ou específica para a criminalidade, aferindo-se, assim, a personalidade do autor.”

(STJ/DJU de 6/10/97, pág. 50.013)

Com satisfação, podemos anunciar mais este lúcido acórdão da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, relator o ministro Vicente Leal, admitindo o regime aberto para o condenado reincidente.

Consta do voto do relator.

O exmo. sr. ministro Vicente Leal (relator):

Conforme exaustivamente no relatório, o presente habeas-corpus tem por objetivo assegurar ao paciente o cumprimento de pena em regime semi-aberto.

Conforme se extrai dos autos, o MM. Juiz da Segunda Vara Criminal Central de São Paulo condenou o réu pela prática do crime de tentativa de extorsão, estabelecendo o regime fechado, em face do reconhecimento da reincidência do acusado.

E esse entendimento foi confirmado em sede recursal pela egrégia Décima Quarta Câmara do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo.

Não merece prosperar a decisão de Tribunal a quo.

A questão é relevante.

A fixação do regime prisional inicial integra ao processo de individualização da pena, tema que hoje foi elevado a preceito de magnitude constitucional. E no campo infraconstitucional situa-se na compreensão sistemática dos artigos 33, § 2.º, e 59, ambos do Código Penal, com integração do critério referente ao quantum da pena e o critério pertinente às circunstâncias judiciais.

Na espécie, tem relevância o estudo da quantidade da pena para fins de definição do regime prisional, impondo-se para tanto, a decantação das alíneas a, b e c do § do art. 33, já mencionado.

Para uma precisa análise do tema, leia-se a expressão textual do parágrafo referenciado:

“§ 2.º. As penas privativas de liberdade deverão ser executadas em forma progressiva, segundo o mérito do condenado, observados os seguintes critérios e ressalvadas as hipóteses de transferência a regime mais rigoroso:

a) o condenado a pena superior a 8 (oito) anos deverá começar a cumpri-la em regime fechado;

b) o condenado não-reincidente, cuja pena seja superior a 4 (quatro) anos e não exceda a 8 (oito), poderá, desde o princípio, cumpri-la em regime semi-aberto;/

c) o condenado não-reincidente, cuja pena seja igual ou inferior a 4 (quatro) anos, poderá, desde o início, cumpri-la em regime aberto.”

Da leitura das citadas disposições extrai-se as seguinte conclusões:

a)

Aos condenados a pena superior a oito anos, o regime prisional inicial será obrigatoriamente o fechado (alínea a)

B)

Aos não-reincidentes condenados à pena superior a quatro anos e não excedente a oito anos, o regime prisional inicial poderá ser o semi-aberto. Não poderá ser o aberto, mas poderá ser o fechado, desde que exaustivamente demonstrado à necessidade da medida, à luz das circunstâncias inscritas no art. 59, do Código Penal.

c)

Aos não-reincidentes condenados a pena igual ou inferior a quatro anos, o regime prisional poderá ser, desde o início, o aberto.

Neste quadro normativo – alíneas a, b e c, do parágrafo 2.º do artigo 33, do Código Penal – não há, como se pode perceber, previsão referente à hipótese de condenado reincidente ao qual foi imposta pena igual ou inferior a quatro anos. Tal situação não se enquadra em nenhuma das alíneas referenciadas.

Apesar disso, tem-se proclamado reiteradamente que ao reincidente condenado à pena de reclusão, independentemente do quantum da pena aplicada, deverá ser submetido ao regime inicial fechado. Basta que seja reincidente para ter que transitar pelos três regimes prisionais pela via da progressão.

Neste sentido, inúmeros são os precedentes deste Tribunal, merecendo referência os seguintes RESP n.º 4.217/PA, Rel. Min. José Cândido, in D.J. de 5/11/1990, pág. 12.438; RESP n.º 6.221/PR, Rel. Min. Carlos Thiabau, in D.J. de 22/4/1991; RESP n.º 66.708/SP, Rel. Min. Edson Vidigal, in D.J. 24/6/1996, pág. 22.786; RESP n.º 77.373/SP, Rel. Min. William Patterson, in D.J. de 13/5/1996, pág. 15.583; RESP n.º 149.263/DF, Rel. Min. José Arnaldo, in D.J. de 22/6/1998.

Após demorada reflexão sobre o thema decidendum, estou em que tal orientação não reflete, data venia, a melhor exegese em torno da matéria.

Como antes assinalado, não existe, no contexto normativo, qualquer vedação no sentido de se fixar o regime inicial semi-aberto aos condenados reincidentes punidos com pena não superior a quatro <%0>anos.

O princípio da individualização da pena consubstancia uma das franquias democráticas para proteger o réu do arbítrio judicial. Individualizar a pena é situar a atuação punitiva do Estado nos seus precisos limites, considerado o fato criminoso e o seu agente, em todas as suas nuances. Daí porque nesse processo se conjugam os critérios do quantum da pena e do exame das circunstâncias judiciais.

E o juiz, ao realizar tal operação, deve buscar a medida do justo, sopesando aqueles valores relativos aos elevados propósitos da sanção penal: a prevenção e a repressão do delito.

Dentro dessa linha de visão não se pode conferir ao repositório normativo uma interpretação mais gravosa, limitativa do poder do juiz na compreensão do assunto. As restrições na definição de um regime prisional mais brando devem ser aquelas literalmente previstas. E a letra da lei não impede a fixação do regime prisional semi-aberto na hipótese em que o reincidente é condenado a pena igual ou inferior a quatro anos.

De outra parte, impõe-se, no trato do assunto, uma maior reflexão sobre a extensão dos efeitos da reincidência. Na verdade, a reforma penal de 1984 conferiu a esse instituto um exagerado valor, vinculando de modo marcante a definição do regime penitenciário, circunstância susceptível de causar grave injustiça, pois coloca em situação equivalente um condenado por crime de pequeno potencial ofensivo, que tenha uma pequena condenação anterior, um delinqüente que feriu gravemente a sociedade com prática de homicídio qualificado ou latrocínio.

Neste sentido, merecem registro as críticas da melhor doutrina nacional. Confiram-se, a propósito, Alberto Silva Franco (in “Código Penal e Sua Interpretação Jurisprudencial”, Editora Revista dos Tribunais, 1993, Pág. 400), Miguel Reale Júnior, René Ariel Dotti e outros (“Temas de Direito Penal”. Saraiva, 1986, págs. 117/118).

Na verdade, não há como se conceber tamanha relevância ao instituto da reincidência. Vejo com aguda restrição, porque incompatível com os princípios que informam o Estado de Direito, a teoria da duplicidade de normas, invocada para justificar repercussão da reincidência, seja, uma norma que condena a conduta típica e outra que impõe a abstenção da prática de novos crimes no futuro. Exsurge dessa teoria um segundo bem jurídico tutelado, consubstanciado na pura vontade estatal de submissão do indivíduo. Nessa linha de visão, pune-se o agente pela sua conduta e pune-se também a sua personalidade, tida como socialmente perigosa. Institui-se, de conseqüência, uma distinção entre os não-perigosos e os perigosos, quebrando-se o princípio da igualdade e desprezando-se a dignidade da pessoa humana, valores de proteção constitucional.

Concebendo o tema sob esta perspectiva, há de se lhe conferir uma exegese que afaste a idéia de imposição obrigatória do regime fechado ao reincidente, sem expressa previsão legal, como na hipótese sub examen, em que ao condenado foi imposta a pena de apenas dois anos e vinte e seis dias de reclusão, embora reincidente.

Isto posto, concedo do habeas corpus para fixar o regime semi-aberto para o cumprimento da pena que foi imposta ao impetrante.

É o voto.

Decisão por maioria, votando com o relator os ministros Fernando Gonçalves, Hamilton Carvalhido e Paulo Gallotti.

Ronaldo Botelho

é advogado e professor da Escola da Magistratura.