Penal. Juízo negativo de antecedentes com base em inquéritos policiais e processos em curso. Inadmissibilidade.

HABEAS CORPUS N.º 79.966-3/SÃO PAULO

REL. P/ ACÓRDÃO: MIN. CELSO DE MELLO

EMENTA – Habeas corpus. Injustificada exacerbação da pena com base na mera existência de inquéritos ou de processos penais ainda em curso. Ausência de condenação penal irrecorrível. Princípio constitucional da não-culpabilidade (CF, art. 5.º, LVII). Pedido deferido, em parte.

O princípio constitucional da não-culpabilidade, inscrito no art. 5.º, LVII, da Carta Política não permite que se formule, contra o réu, juízo negativo de maus antecedentes, fundado na mera instauração de inquéritos policiais em andamento, ou na existência de processos penais em curso, ou, até mesmo, na ocorrência de condenações criminais, ainda sujeitas a recurso, revelando-se arbitrária a exacerbação da pena, quando apoiada em situações processuais indefinidas, pois somente títulos penais condenatórios, revestidos da autoridade da coisa julgada, podem legitimar tratamento jurídico desfavorável ao sentenciado. Doutrina, Precedentes.”(STF/DJU de 29/8/2003)

O Supremo Tribunal Federal, através de sua Segunda Turma, relator para o acórdão o ministro Celso de Mello, decidiu, por maioria de 3 (três) votos contra 1 (um), que inquéritos policiais e processos em curso não podem servir como fundamento para a exasperação da pena-base na condicionante dos antecedentes.

Consta do voto do relator:

O senhor ministro Celso de Mello – (redator para acórdão): Entendo, na linha de diversas decisões que já proferi nesta Suprema Corte (RTJ 136/627 – RTJ 139/885, v.g.), que a mera sujeição de alguém a simples investigações policiais, ou a persecuções criminais ainda em curso, não basta, só por si – ante a inexistência de condenação penal transitada em julgado – para justificar o reconhecimento de que o réu não possui bons antecedentes.

Na realidade, a simples existência de situações processuais ainda não definidas revela-se insuficiente para legitimar a recusa jurisdicional de determinados benefícios legais que só podem ser negados àqueles que já sofreram condenação penal irrecorrível.

O Código Penal, ao definir as circunstâncias judiciais que deverão orientar o magistrado na fixação da pena-base (CP, art. 59), determina que se considerem, dentre outros elementos os antecedentes do réu.

O ato judicial de fixação da pena, contudo, não poder emprestar relevo, jurídico-legal a circunstâncias que meramente evidenciem haver sido, o réu, submetido a procedimento penal-persecutório, sem que deste haja resultado, com definitivo trânsito, qualquer condenação de índole penal.

A submissão de uma pessoa a meros inquéritos policiais ou, ainda, a persecuções criminais de que não haja derivado, em caráter definitivo, qualquer título penal condenatório, não se reveste de suficiente idoneidade jurídica para justificar ou legitimar a especial exacerbação da pena. Tolerar-se o contrário implicaria admitir grave e inaceitável lesão ao princípio constitucional que consagrada a presunção juris tantum de não-culpabilidade dos réus ou dos indiciados (CF, art. 5.º, LVII).

A doutrina penal, pronunciando-se a respeito do tema ora em exame, rejeita, sumariamente, a possibilidade de se fixar a pena-base com fundamento em situa-ções de absoluta neutralidade condenatória, que só evidenciem a existência de simples persecutis criminis, sem qualquer e definitivo pronunciamento jurisdicional contra o acusado.

Por isso mesmo, assinala Damásio E. de Jesus (“Código Penal Anotado”, p. 140/141, 1989, Saraiva), “não devem ser considerados como antecedentes prejudicando o réu, processos em curso (TACrimSP, RvCrim 124.212, JTACrimSP, 78:14); inquéritos em andamento (TACrimSP, RvCrim 124.212, JTACrim, 78:14); sentenças condenatórias ainda não confirmadas (TACrimSP, RvCrim 121.212, JTACrimSP, 78:14); simples indiciamento em inquérito policial (TACrimSP, Acrim 331.713, RT, 536:338); fatos posteriores não relacionados com o crime (TFR, Acrim 6.448, DJU, 14 nov. 1985, p. 20.614); fatos anteriores à maioridade penal (TACrimSP, Acrim 245.015, JTACrimSP, 67:310); sentenças absolutórias (RT, 572:391); referência feita pelo delegado de polícia de que o indivíduo tem vários inquéritos contra si (JACRimSP, 65/67); simples denúncia (JTACrimSP, 49:243); periculosidade (JTACrimSP, 54;425); e revelia, de natureza estritamente processual (TACrimSP, HC 155:748, JTACrimSP, 90:88)”.

Também perfilha igual orientação o magistério de Celso Delmanto, Roberto Delmanto, Roberto Delmanto Júnior e Fábio M. de Almeida Delmanto (“Código Penal Comentado”, p. 107, 5.ª ed., 2000, Renovar), cuja lição acentua, com inteira propriedade, que, na dosagem das san-ções penais, “não devem ser considerados autos de flagrante (…), inquéritos, mesmo com indiciamento (…) e processos em andamento (…) ou, ainda, sentenças pendentes de recurso (…), sendo necessário o trânsito em julgado destas (…), em face do princípio constitucional da presunção de inocência…” (grifei).

Esse entendimento – que se revela atento à presunção constitucional de não-culpabilidade (CF, art. 5.º, LVII) – adverte, corretamente, com apoio na jurisprudência dos Tribunais (RT 418/286 – RT 422/307 – RT 572/391 – RT 586/338), como já enfatizado, que processos penais em curso, ou inquéritos policiais em andamento ou, até mesmo, condenações criminais ainda sujeitas a recurso não podem ser considerados, enquanto episódios processuais suscetíveis de pronunciamento judicial absolutório, como elementos evidenciadores de maus antecedentes do réu.

É por essa razão que o Supremo Tribunal Federal já decidiu, por unânime votação, que “não podem repercutir, contra o réu, situações jurídico-processuais ainda não definidas por decisão irrecorrível do Poder Judiciário, especialmente naquelas hipóteses de inexistência de título penal condenatório definitivamente constituído” (RTJ 139/885, rel. min. Celso de Mello).

Desse modo, torna-se inquestionável que somente a condenação penal transitada em julgado pode justificar a exacerbação da pena, pois, como trânsito em julgado, descaracteriza-se a presunção juris tantum de não-culpabilidade do réu, que passa, então, a ostentar o status jurídico-penal de condenado, com todas as conseqüências legais daí decorrentes.

Considerando, portanto, que não podem repercutir, contra o réu, situações jurídico-processuais ainda não definidas por decisão irrecorrível do Poder Judiciário, especialmente naquelas hipóteses de inexistência do título penal condenatório, como ocorre no caso ora em exame, reputo arbitrária a exacerbação da pena imposta aos ora pacientes – que são tecnicamente primários -, decretada sob a alegação de que aqueles episódios de sua vita anteacta revelar-se-iam aptos a qualificar-lhes, negativamente, os antecedentes pessoais e sociais, para os fins a que se refere o art. 59 do Código Penal.

Tenho para mim, presentes as razões expostas, que o ato ora impugnado não se legitima em face da presunção constitucional de não-culpabilidade dos réus, inscrita no art. 5.º, LVII, de nossa Carta Política.

Concordo, pois, integralmente – consideradas as razões que venho de expor – com os fundamentos que dão suporte ao voto do eminente relator da presente causa.

Peço vênia, no entanto, para deferir, em parte, o pedido de habeas corpus, em ordem a invalidar a condenação ora questionada, por entender que a exacerbação da pena não se legitima ante a mera existência, contra os ora pacientes, de inquéritos ou de processos penais em curso.

Desse modo, e porque tais situações processuais ainda não se definiram, não podem elas ser consideradas em desfavor dos pacientes como elementos indicativos de maus antecedentes.

Por tal razão, e por entender que esta Corte não pode substituir-se ao magistrado de primeira instância na fixação da pena-base (único ponto no qual dissinto do eminente relator), determino que outra sentença venha ser proferida pelo Juízo da 6.ª Vara Federal Criminal de São Paulo/SP, nos autos do Processo-crime n.º 825.805-8, não devendo ser considerada, para os fins a que alude o art. 59 do CP, a mera existência de inquéritos policiais em andamento e de processos penais em curso.

É o meu voto.

Decisão por maioria de votos, presentes à sessão os ministros Celso de Mello, Marco Aurélio e Maurício Corrêa.

Ronaldo Botelho

é advogado e professor da Escola da Magistratura.