HABEAS CORPUS 86.163-6 SÃO PAULO

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Rel.: Min. Gilmar Mendes

EMENTA: Habeas Corpus. 2. Homicídios qualificados. 3.

Alegação de excesso de linguagem. Inexistência do vício. 4.

Inocorrência de falta de correlação entre a denúncia e a pronúncia.

5. Dolo eventual não se compatibiliza com a qualificadora do art. 121, § 2.º, IV (traição, emboscada, dissimulação). 6. Primariedade e bons antecedentes como excludente de prisão preventiva, matéria não conhecida, sob pena de supressão de instância. 7. Precedentes. 8. Ordem parcialmente concedida, para exclusão da qualificadora argüida.

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(STF, DJU de 3/2/06, pág. 89)

Decidiu a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, relator o ministro Gilmar Mendes que a causa de qualificação prevista no art. 121, § 2.º, inciso IV, com o dolo eventual.

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Consta do voto do relator:

O Senhor Ministro Gilmar Mendes (Relator):

São estas as questões trazidas na impetração: a) incompatibilidade entre o dolo eventual e a qualificadora prevista no inciso IV do § 2.º do art. 121: ?à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido?; b) nulidade da pronúncia em razão do excesso de linguagem; e c) descabimento da prisão provisória, por ser o paciente primário, sem outros antecedentes, ter família constituída, residência e emprego fixos.

Em relação à incompatibilidade entre o dolo eventual e a qualificadora prevista no inciso IV do § 2.º do art. 121, manifestou-se o Ministério Público Federal, em Parecer da lavra do ilustre Subprocurador-Geral da República Edson Oliveira de Almeida, verbis (fls. 683-700):

?8. Nem há como cogitar de desclassificação para homicídio culposo, sequer na modalidade de culpa consciente, pois o afastamento do dolo eventual exige exame aprofundado da questão de fato, o que é inadmitido em habeas corpus. Valho-me, outra vez, do acórdão do STJ: ?somente a análise específica e detalhada da conduta do motorista permitirá ao Julgador concluir pela configuração de culpa consciente ou de dolo eventual?.

9. Cumpre observar que a qualificadora genérica referente ao recurso que dificulte ou torne impossível a defesa da vítima deve guardar correspondência com aquelas especificadas no mesmo inciso, ou seja, deve ter a mesma natureza insidiosa. Segundo Celso Delmanto: ?O modo deve ser análogo aos outros do inciso IV (traição, emboscada ou dissimulação). A surpresa, para qualificar, é a insidiosa e inesperada para a vítima, dificultando ou impossibilitando a sua defesa?. Por seu turno assevera Heleno Fragoso: ?Para que se configure a qualificação do homicídio, é necessário que a dificuldade ou a impossibilidade resultem do modo por que o agente atua, e não das condições em que se apresenta o sujeito passivo?.

Complementando, aduz Guilherme Nucci: ?É indispensável a prova de que o agente teve por propósito efetivamente surpreender a pessoa visada, enganando-a, impedindo-a de se defender ou, ao menos, dificultando-lhe a reação.?

10. Por todos, ensina Nelson Hungria:

?Quando um dispositivo legal contém uma fórmula exeplificativa, e, a seguir, uma cláusula genérica, deve entender-se que esta, segundo elementar princípio da hermenêutica, somente compreende os casos análogos aos destacados por aquela. De outro modo, seria inteiramente ociosa a exemplificação, além de que o dispositivo redundaria no absurdo de equiparar, grosso modo, coisas desiguais. Assim, o outro recurso, a que se refere o texto legal, só pode ser aquele que, como a traição, a emboscada, ou a dissimulação, tenha caráter insidioso, aleivoso, sub-reptício?.

11. Nessas circunstâncias, afigura-se incompatível a qualificadora em questão com o dolo eventual, pois imprescindível a intenção, o propósito do agente em atingir a vítima. Aduz Nelson Hungria: ?No inciso IV, é qualificado o homicídio quando haja insídia, não já pela natureza do meio empregado, mas no modo da atividade executiva, de que resulte dificuldade ou impossibilidade de defesa da vítima?. A qualificadora da surpresa, tendo também esse elemento subjetivo, não se confunde com o mero acontecimento repentino, inopinado. Pertinente, portanto, o comentário de Damásio de Jesus ao explicitar que o dolo eventual é incompatível com a qualificadora da surpresa, ?uma vez que nela o sujeito deve ter vontade de surpreender a vítima, circunstância que não é possível naquele?.? (fls. 695-696)

Assim, verifica-se a incompatibilidade entre a subsistência do dolo eventual e a qualificadora do inciso IV, do § 2.º, do art. 121 do Código Penal.

Em se tratando da nulidade da pronúncia em razão do excesso de linguagem, bem observou o custos legis:

?12. Ao contrário que sustenta a impetração, a sentença de pronúncia não invadiu o mérito da causa. Certo que a peculiaridade do caso concreto em que vitimadas nove pessoas – envolveu uma análise mais detalhada dos fatos, mas sem se afastar dos limites do juízo de admissibilidade. Conforme salientou o Ministério Público Federal, na manifestação perante o Superior Tribunal, a pronúncia apenas se aprofundou no exame dos elementos de convicção para extremar o dolo eventual, em contraposição à tese da defesa, que pretendia a desclassificação dos fatos para homicídio culposo.

[…]

14. Esse também tem sido o entendimento do Supremo Tribunal Federal, sempre enfatizando, quanto à sentença de pronúncia, ?o difícil equilíbrio entre o dever de motivação e o exagero nela, de modo a fugir do dilema entre ser nula por excesso ou por escassez?. Em tais condições, não cabe crítica à motivação que se revela adequada ao momento processual, ?não contendo linguagem ou raciocínio capaz de influir indevidamente no ânimo dos jurados? (HC 69.990-MS, rel. Min. Carlos Velloso, DJU 16.04.93)? (fl. 696 e 700).

Neste sentido, vale destacar os seguintes precedentes desta

Corte: HC no 74.432, Rel. Min. Néri da Silveira, DJ de 15.12.2000; HC no 74.324, Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 07.03.1997; HC no 77.413, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ de 11.09.1998; e HC 77.371, Rel. Min. Nelson Jobim, DJ de 23.10.1998.

E, em relação ao descabimento da prisão provisória, por ser o paciente primário, sem outros antecedentes, ter família constituída, residência e emprego fixos, a matéria não foi argüida perante o Tribunal a quo, o que inviabiliza o conhecimento por esta Corte, sob pena de supressão de instância. Neste sentido: HC n.º 84.349, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 24.9.04; HC n.º 83.922, Rel. Min. Nelson Jobim, DJ de 2.4.04; HC n.º 83.489, Rel. Min. Ellen Gracie, DJ de 19.12.03; HC n.º 81.617, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ de 28.6.02.

Adotando estas como razões de decidir, concedo, em parte, a ordem de habeas corpus, tão-somente para excluir da acusação a qualificadora do inciso IV do § 2.º do art. 121 do Código Penal.

É como voto.

Decisão unânime, votando com o relator os ministros Carlos Velloso, Ellen Gracie e Joaquim Barbosa.

Ronaldo Botelho é advogado e professor da Escola da Magistratura.