Penal. Habeas corpus…

Penal. Habeas corpus. Art. 33, caput, c/c art. 40, III e V, da Lei n.º 11.343/2006. Dosimetria da pena. Fixação da pena-base. Ausência de fundamentação. Majorante da interestadualidade. Não caracterização

HABEAS CORPUS N.º 95.009-MS
Rel.: Min. Felix Fischer
EMENTA

I – A pena deve ser fixada com fundamentação concreta e vinculada, tal como exige o próprio princípio do livre convencimento fundamentado (arts. 157, 381 e 387 do CPP c/c o art. 93, inciso IX, segunda parte da Lex Maxima). Dessa maneira, considerações genéricas, abstrações ou dados integrantes da própria conduta tipificada não podem supedanear a elevação da reprimenda (Precedentes do STF e STJ).

II – In casu, verifica-se que o v. acórdão recorrido apresenta em sua fundamentação incerteza denotativa ou vagueza, utilizando-se, entre outras, de expressões como:”personalidade desajustada; conduta social desviada; motivos egoísticos. etc.” Dessa forma, não existem argumentos suficientes a justificar, no caso concreto, a exacerbação da reprimenda.

III – Ademais, nota-se que a menção constante do v. acórdão atacado de que o paciente não seria primário não procede, porquanto esta referência não se trata de condenação já transitada em julgado. De outro lado, a quantidade da droga apreendida, no caso, não se revela apta a justificar o aumento da pena-base.

IV – Não configurada a hipótese prevista no art. 40, inciso V, da Lei n.º 11.343/2006, afasta-se a aplicação da causa de aumento.
Habeas corpus concedido.
(STJ/DJU de 4/8/2008)

O Superior Tribunal de Justiça por sua 5.ª Turma, Relator o Ministro Félix Fischer, voltou a insistir na exigência da fundamentação da pena-base, rejeitando expressões vagas e incertas como “personalidade desajustada; conduta social desviada; motivos egoísticos, etc.”.

Consta do voto do Relator:

O Exmo. Sr. Ministro Felix Fischer: Buscam os impetrantes, em suma, no presente writ, a redução da pena-base ao mínimo legal, sustentando a impossibilidade de inclusão de novos fundamentos, pelo e. Tribunal ad quem, inexistentes na sentença, em recurso exclusivo da defesa, para justificar a exacerbação da reprimenda, e a consideração do paciente como portador de maus antecedentes não obstante a inexistência de condenação definitiva transitada em julgado.

Requerem, ainda, a exclusão da causa de aumento prevista no art. 40, inciso V, da Lei n.º 11.343/2006 uma vez que a droga transportada não teria ultrapassado a fronteira de outro Estado e a aplicação da atenuante da confissão espontânea.
Quanto ao primeiro tópico, a súplica merece acolhida.

Vejamos o que consta na r.sentença condenatória e no v. acórdão objurgado quanto a individualização da pena imposta ao paciente:

“Considerando a culpabilidade do réu, que se revela intensa pela reprovabilidade de seu ato, a sua conduta social desviada da normalidade, a sua personalidade desajustada e desagregadora, aos motivos egoísticos do crime, que visa vantagem ilícita sem o sacrifício do trabalho honesto, as conseqüências do crime, que causam danos irreversíveis e de grande potencial ofensivo à família e a sociedade como um todo, com conseqüências deletérias de toda ordem; aos crimes conexos que geram o tráfico ilícito de entorpecente, que ajuda a manter a criminalidade financiando outros crimes, que só foi interrompido por circunstancias alheias a sua vontade, fixe a pena acima do mínimo legal em 08 (oito) anos de reclusão e 800 (oitocentos) dias-multa a razão de 1/30 do salário mínimo vigente a época dos fatos, ao dia, corrigidos.” (fl.39).
….

“A pena-base fixada acima do mínimo legal, em 8 anos de reclusão e pagamento de 800 dias-multa, está justificada pelas circunstâncias judiciais desfavoráveis cotejadas na sentença, dentre as quais destaco a culpabilidade acentuada do réu, a quantidade considerável de “cocaína” que ele transportava, bem como a existência de um antecedente criminal em seu desfavor em Araçatuba-SP, conforme certidão judicial de 53.

Vale lembrar que a Lei 11.343/2006 pune de forma mais rigorosa os traficantes de entorpecentes, cominando pena mínima para o delito em 5 anos de reclusão e pagamento de 500 dias-multa.

De seu turno, a causa de aumento da reprimenda prevista no artigo 40, V, do citado regramento, está bem configurada pela confissão do acusado, o qual declarou que viajou de Araçatuba-SP para Corumbá-MS, de onde levava a droga de volta para a cidade paulista, onde seria comercializada.

Assim, está provada a majorante que prevê o aumento da sanção em razão de o tráfico de drogas ocorrer entre Estados da Federação, ainda que o entorpecente não tenha chegado ao seu destino final.

Uma reforma, no entanto, deve ser feita na sentença condenatória.

Ocorre que o juiz deixou de aplicar a causa de diminuição de pena do tráfico ocasional, prevista no artigo 33, § 4.º, da Lei 11.343/2006, por considerar que o réu integrava uma organização criminosa.

Contudo, nenhuma prova foi produzida nesse sentido, transparecendo que o acusado, na verdade, era mero transportador esporádico da droga, que enveredou nos caminhos da ilicitude em busca do chamado “lucro fácil”.

De seu turno, o antecedente mencionado, que se refere a crime de menor potencial ofensivo, embora seja suficiente para exasperar a pena-base, não se afigura como impeditivo à concessão do benefício.

Assim, é de se admitir a redução pretendida.

Considerando a pena estabelecida em 9 anos e 15 dias de reclusão e pagamento de 907 dias-multa, reduzo-a, pela minorante, em 1/3, ou seja, 3 anos e 5 dias e 302 dias-multa, de que resulta 6 anos e 10 dias de reclusão e pagamento de 605 dias-multa, que torno definitiva.” (fls. 61/62).

Inicialmente, vale asseverar que não há como acolher a tese dos impetrantes no sentido de que a consideração de novos fundamentos no acórdão objurgado, em recurso exclusivo da defesa, para justificar o aumento da pena-base, constituiria reformatio in pejus. Na verdade, referido princípio veda, em análise de recurso exclusivo da defesa, apenas, que a situação do recorrido seja agravada, o que não ocorreu na hipótese dos autos, pois a pena-base do paciente se manteve em 8 (oito) anos de reclusão.

Assim, a decisão do Tribunal que confirma a pena-base imposta ao paciente, em primeiro grau, amparada em fundamentos diversos dos eleitos pelo magistrado, não constitui reformatio in pejus. Nesse sentido, o seguinte precedente:
“HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. ADULTERAÇÃO DE SINAL IDENTIFICADOR DE VEÍCULO AUTOMOTOR. RÉU CONDENADO À PENA DE 3 ANOS E 8 MESES. PEDIDO DE SUBSTITUIÇÃO DA PENA INDEFERIDO POR CRITÉRIO DIVERSO DO APRESENTADO PELO JUÍZO MONOCRÁTICO. REFORMATIO IN PEJUS. INOCORRÊNCIA. ORDEM DENEGADA.

1. O princípio da ne reformatio in pejus não vincula o Tribunal aos critérios ou fundamentos adotados pelo Juízo monocrático, mas apenas o impede de agravar a situação do réu.

2. O Tribunal a quo, após a superação do óbice apresentado pelo Magistrado de primeiro grau, qual seja, o quantum da pena, ao examinar os requisitos legalmente exigidos para a obtenção da substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, conforme requerido pela própria defesa em sua Apelação, apenas apresentou nova fundamentação para a manutenção do indeferimento do benefício, razão pela qual, não há que se falar em reformatio in pejus.

3. (…)

4. (…)

5. In casu, resta claro que o Desembargador Relator do acórdão reprochado, ao indeferir a substituição da pena privativa de liberdade sob o fundamento de que a conduta do réu foi dotada de culpabilidade sopesada, não impôs situação mais gravosa ao réu, mas sim, a manteve.

6. Habeas Corpus denegado, em que pese a manifestação ministerial em sentido contrário”. (HC 88.952/SC, 5.ª Turma, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, DJ 10/12/2007).

Muito embora a adoção de novos fundamentos pelo e. Tribunal não configure a vedada reformatio in pejus, tanto a fundamentação utilizada em primeiro grau quanto a acrescida em segundo não se revelam suficientes a justificar a exasperação da pena-base.

Desse modo, quanto à fixação da pena privativa de liberdade, entendo que houve violação ao art. 59 do Código Penal. É que a pena, para ser fixada acima do mínimo legal, exige fundamentação concreta e vinculada. Considerações genéricas, abstrações ou dados integrantes da própria conduta tipificada não podem supedanear a elevação da reprimenda. O princípio do livre convencimento fundamentado ou da persuasão racional não o permite (art. 157, 381, 387 e 617 do CPP c/c o art. 93, inciso IX, 2.ª parte da Lex Maxima). Assim, a ausência de fundamentação indica error in procedendo.

Por análise dos autos, verifica-se que as decisões ora atacadas apresentam em suas fundamentações incerteza denotativa ou vagueza, carecendo, na fixação da resposta penal, de fundamentação objetiva imprescindível. Veja-se que no caso foram utilizados fundamentos, tais como, “personalidade desajustada; conduta social desviada; motivos egoísticos. etc.” (fl.39).

Vale dizer, embora a longa redação procurando justificar o aumento da reprimenda, de concreto, nada foi trazido de extra-típico ou que tecnicamente justificasse o aumento com base em uma das circunstâncias do art. 59, do CP.

É orientação do Pretório Excelso, in verbis:
“HABEAS CORPUS. PACIENTE CONDENADO A SEIS MESES DE RECLUSÃO PELA PRÁTICA DE LESÃO CORPORAL. ALEGAÇÕES DE AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO IDÔNEA QUANTO À MAJORAÇÃO DA PENA-BASE E DE FALTA DE MANIFESTAÇÃO SOBRE O BENEFÍCIO DA SUSPENSÃO CONDICIONAL DA REPRIMENDA (CP, ART. 77). ORDEM PARCIALMENTE CONCEDIDA. A fixação da pena-base acima de seu mínimo legal deve apoiar-se em elementos concretos, objetivamente demonstrados, que justifiquem a exasperação, não se mostrando suficiente, para tal fim, a simples referência ao texto genérico da lei (CP, art. 59). Neste panorama e não sendo possível aferir, nem mesmo a partir de uma análise global da motivação, os elementos considerados pelo julgador quando da majoração do castigo, é de se deferir a ordem de habeas corpus, fixando-se a pena em seu mínimo legal, eis que os elementos dos autos autorizam que se tome, desde logo, esta medida. Não tendo ocorrido provocação formal da autoridade coatora, a respeito da concessão do sursis (CP, art. 77), não pode o Supremo Tribunal Federal apreciar a questão, pena de indevida supressão de instância. Habeas corpus parcialmente deferido”

(HC 85033/MS, 1.ª Turma, Rel. Min. Carlos Britto, DJ de 27/5/2005).

“”Habeas corpus”. – Falta de fundamentação para a fixação da pena acima do mínimo. “Habeas corpus” concedido em parte para que, mantida a conclusão condenatória, voltem os autos da ação penal à primeira instância, a fim de que, fundamentadamente, se fixe a pena a ser aplicada ao paciente”

(HC 82796/RJ, 1.ª Turma, Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 13/6/2003).

“Individualização da pena: motivação: inidoneidade. Não se prestam a motivar a exacerbação da pena-base nem circunstâncias elementares do tipo, nem a opinião do Juiz sobre o desvalor em abstrato da figura penal”
(HC 79949/SP, 1.ª Turma, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 4/8/2000).

E ainda: STF, HC 69419/MS, 1.ª Turma, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJU de 28/8/92, p. 13.455; STF, HC 70250/SP, 2.ª Turma, Rel. Min. Carlos Velloso, DJU de 3/9/93, p. 17.744; STF, HC 69141/RJ, 1.ª Turma, Rel. Min. Celso de Mello, DJU de 28/8/92, p. 13.453; STF – HC 69334/PE, 1.ª Turma, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJU de 4/9/92 etc.

Na mesma linha tem decidido esta Corte:

“PENAL. HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE ENTORPECENTES. CRIME EQUIPARADO A HEDIONDO. PROGRESSÃO DE REGIME. LEI N.º 8.072/90. DOSIMETRIA DA PENA.
FIXAÇÃO DA PENA-BASE. FUNDAMENTAÇÃO.

I – (…)

II – (…)

III – A pena deve ser fixada com fundamentação concreta e vinculada, tal como exige o próprio princípio do livre convencimento fundamentado (arts. 157, 381 e 387 do CPP c/c o art. 93, inciso IX, segunda parte da Lex Maxima). Ela não pode ser estabelecida acima do mínimo legal com supedâneo em referências vagas e dados não explicitados (Precedentes do Pretório Excelso e do STJ).
Writ parcialmente concedido, com extensão ex officio ao có-réu”

(HC 45602/SE, 5.ª Turma, de minha relatoria, DJ 14/11/2005).

“CRIMINAL. RHC. CRIME CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL. EXASPERAÇÃO DA PENA-BASE. CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS DO ART. 59 DO CÓDIGO PENAL CONSIDERADAS NEGATIVAMENTE. AUSÊNCIA DE ANÁLISE CONCRETA. RECURSO PROVIDO.

I. Reputa-se ilegal a sentença na parte em que fixa o quantum da pena-base sem apreciação detida das circunstâncias judiciais do art. 59 do CP.

II. Não obstante reconhecer-se que há certa discricionariedade na dosimetria da pena, relativamente à exasperação da pena-base, tem-se como indispensável a sua fundamentação, com base em dados concretos e em eventuais circunstâncias desfavoráveis do art. 59 do Código Penal.

III. Deve ser cassado o acórdão atacado, bem como a sentença proferida pela Juíza monocrática, apenas na parte relativa à dosimetria da pena, a fim de que outra seja proferida, com nova e adequada fundamentação no que diz respeito à pena-base e ao regime de cumprimento.

IV. Recurso provido, nos termos do voto do Relator”

(RHC 18.098/RJ, 5.ª Turma, Rel. Min. Gilson Dipp, DJ 17/10/2005).

Por fim, nota-se que a menção constante do v. acórdão atacado de que o paciente não seria primário não procede, porquanto esta referência não se trata de condenação já transitada em julgado. De outro lado, a quantidade da droga apreendida, no caso, não se revela apta a justificar o aumento da pena-base.

Dessa forma, não há razões suficientes a justificar, no caso, a fixação da pena-base em 8 (oito) anos de reclusão. Data venia, a nulidade é manifesta, absoluta, e deve ser sanada.

Concernente ao reconhecimento da atenuante da confissão espontânea, nesta parte, ao paciente falta interesse de agir. Isso porque a referida atenuante, prevista no art. 65, inciso III, letra d, do CP, incidiu em sua reprimenda, em primeiro grau, e foi mantida pelo Tribunal. Ainda que assim não fosse, com o novo apenamento ora estabelecido inviável seria sua aplicação a teor do disposto na Súmula 231 desta Corte.

Quanto a não caracterização da causa de aumento prevista no art. 40, inciso V, da Lei n.º 11.343/2006, assiste razão aos impetrantes.

Extrai-se dos autos que o paciente foi condenado como incurso nas sanções do art. art. 33, caput, c/c art. 40, incisos III e V, ambos da Lei n.º 11.343/2006, à pena de 9 (nove) anos e 15 (quinze) dias de reclusão, em regime fechado, e ao pagamento de 907 (novecentos e sete) dias-multa, porque, no dia 26 de outubro de 2006, por volta das 10h45m, no posto da Polícia Rodoviária Federal denominado Guaicurus, localizado na BR 262 Km 605, no município de Miranda/MS, no interior do ônibus da Viação Andorinha, trazia consigo, dentro do seu aparelho digestivo, 44 (quarenta e quatro) cápsulas contendo 440 g (quatrocentos e quarenta gramas) de cocaína, substância entorpecente, sem autorização e desacordo com determinação legal ou regulamentar.

A causa de aumento da interestadualidade foi aplicada em razão da confissão do acusado de que a droga apreendida seria transportada até a cidade de Araçatuba/SP, onde supostamente seria comercializada. Ocorre que o paciente não cruzou as fronteiras do Estado uma vez que foi preso em flagrante na cidade de Miranda/MS.

Destarte, se a traficância não excedeu os limites de mais de um Estado da Federação não há, ao menos com os elementos reunidos, como reconhecer a causa de aumento de pena prevista no art. art. 40, inciso V, da Lei n.º 11.343/2006.

Ante o exposto, concedo a ordem a fim de fixar a pena-base no mínimo legal: 5 (cinco) anos de reclusão. Acrescida a causa de aumento prevista no inciso III do art. 40 da Lei n.º 11.343/2006 (1/6): 5 (cinco) anos e 10 (dez) meses. Tendo em vista a causa de diminuição aplicada pelo Tribunal a quo (1/3) totaliza 3 (três) anos e 11 (onze) meses. Assim, tendo em vista a pena aplicada, revela-se adequada a fixação do regime inicial aberto para o cumprimento da pena ex vi art.33, § 2.º, a, c/c § 3.º. Deixo de aplicar o regime inicial fechado por ser a conduta do paciente anterior à Lei n.º 11.464/07. É o voto.

Decisão unânime, votando com o Relator os Ministros Laurita Vaz, Arnaldo Esteves Lima, Napoleão Nunes Maia Filho e Jorge Mussi.

Ronaldo Botelho é advogado e professor da Escola da Magistratura.