Penal e Processual Penal. Habeas Corpus.

Penal e Processual Penal. Habeas Corpus. Posse Ilegal de Arma de Fogo. Prazo para a regularização da arma…

 

Artigos 30, 31 e 32, do Estatuto do Desarmamento.

HABEAS CORPUS N.º 92.369-SP

Rel.: Min. Felix Fischer

EMENTA

I – Não se pode confundir posse de arma de fogo com o porte de arma de fogo. Com o advento do Estatuto do Desarmamento, tais condutas restaram bem delineadas. A posse consiste em manter no interior de residência (ou dependência desta) ou no local de trabalho a arma de fogo. O porte, por sua vez, pressupõe que a arma de fogo esteja fora da residência ou local de trabalho. (Precedentes).

II – Os prazos a que se referem os artigos 30, 31 e 32, da Lei n.º 10.826/2003, só beneficiam os possuidores de arma de fogo, i.e., quem a possui em sua residência ou emprego. Ademais, cumpre asseverar que o mencionado prazo teve seu termo inicial em 23 de dezembro de 2003, e possui termo final previsto para 31 de dezembro de 2008 (nos termos do art. 1.º da Medida Provisória n.º 417, de 31 de janeiro de 2008, que conferiu nova redação aos arts. 30 e 32 da Lei 10.826/03). Desta maneira, nas hipóteses ocorridas dentro de tal prazo, ninguém poderá ser preso ou processado por possuir (em casa ou no trabalho) uma arma de fogo. (Precedente).

III – In casu, as condutas atribuídas ao paciente foram as de possuir munição e de manter sob sua guarda arma de fogo de uso permitido, ambos no interior de sua residência. Logo, enquadra-se tal conduta nas hipóteses excepcionais dos artigos 30, 31 e 32 do Estatuto do Desarmamento, restando, portanto, extinta a punibilidade, ex vi do art. 5.º, XL, da CF c/c art. 107, III, do Código Penal.
Ordem concedida.

(STJ/DJU de 7/4/2008)

O Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade de votos, concedeu habeas corpus, explicando a diferença entre porte e posse ilegal de arma de fogo, para afirmar que os art. 30, 31 e 32 do estatuto se referem à posse e não ao porte de arma.

Relatório

O Exmo. Sr. Ministro Felix Fischer: Trata-se de habeas corpus, com pedido liminar, impetrado em favor de NILSON DA SILVA, condenado como incurso nas sanções do art. 12, caput, da Lei n.º 6.368/76 (antiga Lei de Tóxicos) e do art. 16, parágrafo único, IV, da Lei n.º 10.826/2003, contra v. acórdão prolatado pelo e. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, na apelação criminal 1.015.350.3-4. Eis a ementa do v. acórdão:

“EMENTA: apelação – condenação de agente por porte ilegal de arma de fogo e tráfico de entorpecente – preso em flagrante prova segura da inculpação para o crime de porte de arma – dúvida quanto à traficância – desclassificação operada, em face da novatio legis in mellius, aplicação do art. 28 da Lei n.º 11.343/06 – penas mitigadas – preliminar rejeitada e recurso parcialmente provido.” (fl. 161).
No presente mandamus, aduz o impetrante, em síntese, que a conduta de posse de arma de fogo seria atípica, haja vista ter sido praticada no prazo concedido pela lei para a devolução ou regularização de arma, acessório ou munição. Requer, assim, a absolvição do paciente, em razão da atipicidade da conduta praticada.

Liminar indeferida à fl. 24.

Informações prestadas às fls. 29/30, com os documentos de fls. 31/176.
A douta Subprocuradoria-Geral da República, às fls. 178/181, manifestou-se pela denegação da ordem.

É o relatório.

Voto

O Exmo. Sr. Ministro Felix Fischer: Aduz o impetrante que a conduta de posse de arma de fogo seria atípica, haja vista ter sido praticada no prazo concedido pela lei para a devolução ou regularização de arma, acessório ou munição.
Inicialmente, cumpre asseverar que não se pode confundir posse irregular de arma de fogo de uso permitido (art. 12 da Lei n.º 10.826/2003) com o porte ilegal de arma de fogo de uso permitido (art. 14 c/c art. 15, do mesmo diploma legal). Com o advento do Estatuto do Desarmamento, tais condutas restaram bem delineadas. A posse consiste em manter no interior de residência (ou dependência desta) ou no local de trabalho a arma de fogo. O porte, por sua vez, pressupõe que a arma de fogo esteja fora da residência ou local de trabalho.

Os prazos previstos nos artigos 30, 31 e 32 do Estatuto do Desarmamento (ou “anistia”, segundo Luiz Flávio Gomes), só beneficiam os possuidores de arma de fogo, i.e., quem a possui em sua residência ou emprego (v.g., art. 12 da Lei n.º 10.826/2003). Dessa maneira, até que findasse tal prazo, ninguém poderia ser preso ou processado por possuir (em casa ou no trabalho) uma arma de fogo.
Nesse sentido, os seguintes precedentes:

“PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. LEI N.º 10.826/2003. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. PRAZO PARA A REGULARIZAÇÃO DA ARMA. ARTIGOS 30, 31 E 32, DO ESTATUTO DO DESARMAMENTO. PRAZO REFERENTE ÀS HIPÓTESES DE POSSE DE ARMA DE FOGO. NÃO SE CONFUNDE COM OS CASOS DE PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO.

I – Não se pode confundir posse irregular de arma de fogo com o porte ilegal de arma de fogo. Com o advento do Estatuto do Desarmamento, tais condutas restaram bem delineadas. A posse consiste em manter no interior de residência (ou dependência desta) ou no local de trabalho a arma de fogo. O porte, por sua vez, pressupõe que a arma de fogo esteja fora da residência ou local de trabalho.

II – Os prazos a que se referem os artigos 30, 31 e 32, da Lei n.º 10.826/2003, só beneficiam os possuidores de arma de fogo, i.e., quem a possui em sua residência ou emprego. Dessa maneira, até que finde tal prazo (hoje prorrogado até 23/6/2005 – consoante a Medida Provisória n.º 229/2004, de 18/12/2004), ninguém poderá ser preso ou processado por possuir (em casa ou no trabalho) uma arma de fogo.

III – In casu, a conduta atribuída ao paciente foi a de possuir arma de fogo de uso permitido. Logo, se enquadra nas hipóteses excepcionais dos artigos 30, 31 e 32 do Estatuto do Desarmamento, que se referem aos casos de posse de arma de fogo.

Recurso provido.”

(RHC 16.990/PR, 5.ª Turma, de minha relatoria, DJU de 23/5/2005).
“CRIMINAL. HC. PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO. CONDENAÇÃO COM BASE NA LEI N.º 9.437/97. NOVO ESTATUTO DO DESARMAMENTO. POSSIBILIDADE DE REGULARIZAÇÃO DA POSSE. VACATIO LEGIS INDIRETA E ABOLITIO CRIMINIS TEMPORÁRIA. EFEITOS QUE NÃO ALCANÇAM A CONDUTA DE “PORTAR ARMA DE FOGO”. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. IMPOSSIBILIDADE. ORDEM DENEGADA.

I. A Lei n.º 10.826/03, ao estabelecer o prazo de 180 dias para os possuidores e proprietários de armas de fogo sem registro, regularizassem a situação ou as entregassem à Polícia Federal, criou uma situação peculiar, pois, durante esse período, a conduta de possuir arma de fogo deixou de ser considerada típica.

II. Não se evidencia o sustentado fenômeno da “vacatio legis” indireta assim descrita na doutrina criada pelo legislador em relação ao crime de porte ilegal de arma de fogo, praticado na vigência do atual Estatuto do Desarmamento.

III. Sendo improcedente o argumento segundo o qual teria ocorrido “abolitio criminis temporalis” da conduta de portar ilegalmente arma de fogo, praticada sob a égide da Lei n.º 10.826/03, pois verificado, na hipótese, o princípio da continuidade normativa típica, torna-se inviável a extinção da punibilidade do paciente por ter incorrido no delito previsto no art. 10 da Lei n.º 9.437/97.

IV. Ordem denegada.”

(HC 41.619/MG, 5.ª Turma, Rel. Min. Gilson Dipp, DJU de 6/6/2005).
No caso sub examen, conforme constou da exordial acusatória, o paciente foi surpreendido com arma de fogo, sem autorização judicial, sob as seguintes circunstâncias: “Consta no incluso inquérito policial que, no dia dois de novembro de 2005, por volta de 00:30 horas, na Travessa do Parque Beco, n.º 281, casa 4, fundos, neste município e comarca, o denunciado tinha em depósito, para fim de tráfico, substância entorpecente e capaz de determinar dependência física e psíquica, sem autorização. Consta também que, na mesma data e local, o denunciado possuía arma de fogo, com numeração suprimida.

Segundo o apurado, policiais civis receberam notícia de que, no local supramencionado havia tráfico de entorpecentes. Para lá se dirigiram e avistaram o denunciado, que foi abordado e permitiu que se realizasse busca no imóvel, sendo certo que, durante esta, foi apreendido um saco plástico contendo cocaína, sendo também apreendido um revólver, de marca Taurus, calibre 38, com capacidade para seis tiros, e numeração suprimida, de acordo com o auto de exibição e apreensão de fl.15 e com o laudo de constatação de fl.12. O laudo de exame químico-toxicológico será juntado oportunamente aos autos”. (fl. 31).
Ora, não remanesce dúvida que, de fato, o objeto foi apreendido no interior da residência do paciente, caracterizando, assim, a posse.

Ressalte-se que a Lei n.º 10.826/03, em seus artigos 30 a 32, estipulou um prazo para que os possuidores de arma de fogo regularizassem sua situação ou entregassem a arma para a Polícia Federal. Dessa maneira, até que findasse tal prazo, que se iniciou em 23 de dezembro de 2003 e teve seu termo final prorrogado até 31 de dezembro de 2008 (nos termos do art. 1.º da Medida Provisória n.º 417, de 31 de janeiro de 2008, que conferiu nova redação aos arts. 30 e 32 da Lei 10.826/03), ninguém poderá ser preso ou processado por possuir arma de fogo.

Nesse sentido, veja-se o seguinte precedente desta Corte: “PENAL. RECURSO ESPECIAL. ART. 1.º, CAPUT, DA LEI N.º 9.437/97. ARTIGOS 30, 31 E 32, DO ESTATUTO DO DESARMAMENTO. POSSE ILEGAL DE ARMA DE FOGO. FATO ANTERIOR AO INÍCIO DO PRAZO PARA A REGULARIZAÇÃO DA ARMA. I – A Lei n.º 10.826/03, em seus artigos 30 a 32, estipulou um prazo para que os possuidores de arma de fogo regularizassem sua situação ou entregassem a arma para a Polícia Federal. Dessa maneira, até que findasse tal prazo, que se iniciou em 23/12/2003 e que teve seu termo final prorrogado até 23/10/2005 (cf. Lei 11.191/2005), ninguém poderia ser processado por possuir arma de fogo.

II – A nova lei, ao menos no que tange aos prazos dos artigos 30 a 32, que a doutrina chama de abolitio criminis temporária ou de vacatio legis indireta ou até mesmo de anistia, deve retroagir, uma vez que mais benéfica para o réu (APn n.º 394/RN, Corte Especial, Rel. p/ Acórdão Min. José Delgado, j. 15/3/2006).

III – O período de indiferença penal (lex mitior), desvinculado para os casos ali ocorridos, dado o texto legal, alcança situações anteriores idênticas. A permissão ou oportunização da regularização funcionaria como incentivo e não como uma obrigação ou determinação vinculada. A incriminação (já, agora, com a novatio legis in peius) só vale para os fatos posteriores ao período da “suspensão”.
Recurso ordinário provido.”

(RHC 21271/DF, 5.ª Turma, de minha relatoria, DJU de 10/9/2007).
Assim, tendo em vista que a conduta imposta ao paciente se enquadra nas hipóteses excepcionais dos artigos 30, 31 e 32 do Estatuto do Desarmamento, faz-se necessário reconhecer a extinção da punibilidade, ex vi do art. 5.º, XL, da CF, c/c art. 107, inciso III, do Código Penal.

Ante o exposto, concedo a ordem para trancar a ação penal quanto ao delito de posse de arma, relativa ao paciente NILSON DA SILVA.

É o voto.

Decisão da Quinta Turma, Relator o Ministro Félix Fischer, acompanhado pelos Ministros Laurita Vaz, Arnaldo Esteves Lima, Napoleão Nunes Maia Filho e Jorge Mussi.

Ronaldo Botelho é advogado e professor da Escola da Magistratura.