Penal e processual penal. Crime ambiental.

Penal e processual penal. Habeas corpus. Crime ambiental.
Impossibilidade de qualificar-se a pessoa jurídica como paciente no writ.
Sistema ou teoria da dupla imputação. Denúncia. Inépcia não verificada

HABEAS CORPUS N.º 93.867-GO

Rel.: Min. Felix Fischer

EMENTA

I – A orientação jurisprudencial desta Corte firmou-se no sentido de não se admitir a utilização do remédio heróico em favor de pessoa jurídica (Precedentes).
II – Admite-se a responsabilidade penal da pessoa jurídica em crimes ambientais desde que haja a imputação simultânea do ente moral e da pessoa física que atua em seu nome ou em seu benefício, uma vez que “não se pode compreender a responsabilização do ente moral dissociada da atuação de uma pessoa física, que age com elemento subjetivo próprio” cf. Resp n.º 564960/SC, 5.ª Turma, Rel. Ministro Gilson Dipp, DJ de 13/6/2005 (Precedentes).

III – A denúncia, a teor do que prescreve o art. 41 do CPP, encontra-se formalmente apta a sustentar a acusação formulada contra o paciente, porquanto descrita sua participação nos fatos em apuração, não decorrendo a imputação, de outro lado, pelo simples fato de ser gerente da pessoa jurídica ré.

Ordem parcialmente conhecida e, nesta parte, denegada.
(STJ/DJU de 12/5/08)

Decidiu a Quintado Superior Tribunal de Justiça, Relator o Ministro Félix Fischer, que a pessoa jurídica não pode figurar como paciente em ação de “habeas corpus”, e, ainda, que, conforme decidiu o STJ, “não se pode compreender a responsabilidade do ente moral dissociada da atuação de uma pessoa física, que age com elemento subjetivo próprio” (cf. Resp n.º 564960/SC, 5.ª Turma, Rel. Ministro Gilson Dipp, DJ de 13/6/2005 (Precedentes).

Consta do voto do Relator:

O exmo. sr. Ministro Felix Fischer: A presente impetração foi utilizada em favor tanto de pessoa física, quanto jurídica. Ocorre que a orientação jurisprudencial desta Corte firmou-se no sentido de não se admitir a utilização do remédio heróico em favor de pessoa jurídica. Neste sentido, v.g.:
“RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. DIREITO PROCESSUAL PENAL. CRIME AMBIENTAL. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. PESSOA JURÍDICA NA QUALIDADE DE PACIENTE. INADMISSIBILIDADE. RECURSO IMPROVIDO.

1. Como é da jurisprudência deste Superior Tribunal de Justiça, o habeas corpus não se presta para amparar reclamos de pessoa jurídica, na qualidade de paciente, eis que restrito à liberdade ambulatorial. Precedentes.

2. Recurso a que se nega provimento.
(RHC 16762/MT, 6.ª Turma, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, DJ de 1.º/2/2005)
Assim, nesta parte, a impetração não merece conhecimento.

Passo a analisar o segundo tópico. Aqui sustenta o impetrante a inépcia da denúncia em relação ao paciente Umberto Pereira da Cruz Raposo. Assevera que a exordial “não descreve o comportamento penalmente relevante atribuído aos imputados, se limitando a incluí-los na peça angular da ação penal” (fl. 04). Mais adiante prossegue: “pretendeu o titular da acusação oficial incluir na denúncia pessoa que, pela condição de gestor da empresa-denunciada, automaticamente, deve ser responsabilizada pela eventual conduta criminosa apontada…”(fl. 06).
Entretanto, a situação delineada nos autos não evidencia o error na proemial acusatória como pretende fazer crer o impetrante. A propósito, veja-se o seguinte excerto da combatida denúncia:

“Consta dos inclusos autos de inquérito policial que, durante vistoria ua Polícia Técnico-Científica do Estado de Goiás, realizada em 20 de abril do ano de 2006. na Rua dos Ferroviários, Chácara 01, Setor Esplanada dos Anicuns, nesta capital, foi constatado que a primeira denunciada, a empresa EXPRESSO SÃO LUIZ LTDA., por deliberação de sua direção, o segundo denunciado UMBERTO PEREIRA DA CRUZ CARDOSO, e em seu proveito, econômico, com o desenvolvimento ordinário de suas atividades, praticou as seguintes condutas criminosas:

a) Estava e continua impedindo e dificultando a regeneração natural da área de preservação permanente de 30m do Ribeirão Anicuns, mediante a ocupação indevida de suas margens;

b) Estava causando poluição de qualquer natureza em níveis tais que possam resultar em danos à saúde humana, mediante o lançamento de óleos ou substâncias oleosas, em desacordo com as exigências estabeleci das em leis ou regulamentos;

c) Estava e continua fazendo funcionar estabelecimento potencialmente poluidor, sem licença ou autorização dos Órgãos ambientais competentes e contrariando as normas legais c regulamentares pertinentes.

Segundo ficou apurado pelos peritos criminais do Instituto de Criminalística – Laudo de Exame Pericial EL97/RG 9905/05 (fls. 85/105), a empresa EXPRESSO SÃO LUIZ LTDA., ocupa indevidamente a faixa marginal de 30m do Ribeirão Anicuns, considerada como área de preservação permanente, de acordo com o artigo 2.º, alínea “a”, I, da Lei 4771/65 (Código Florestal).

Apurou-se que, na referida área, a primeira denunciada fez instalar um galpão para estacionamento de ônibus e depósito de sucatas, bem como área adjacente do lavador de veículos, sendo que tais ocupações impedem e dificultam a regeneração natural da área de preservação permanente.

Conforme o laudo pericial supra mencionado, ficou constatado que as atividades da empresa denunciada causam riscos de danos ao meio ambiente, face a ineficácia do sistema de tratamento, bem como a presença de resíduos oleosos em piso não impermeável, senão vejamos:

“4.1. No momento do levantamento pericial, a empresa se encontrava em funcionamento. As instalações, equipamentos e serviços executados corroboravam as atividades executadas no local, que, em suma, eram: reparo de veículos, troca de óleo lubrificante, posto de abastecimento de combustíveis, lavagem de veículos, depósito de combustíveis e derivados e funções administrativas. Os veículos, anteriormente mencionados, tratavam-se de ônibus diversos:

4.2. Os serviços de manutenção e reparo dos veículos eram executados em galpão (denominado (G1, em imagem situação), onde existia piso não impermeável, e perímetro imediato deste, local recoberto por piso, não impermeável (piso em bloquetes de concreto):

4.3. A presença de incrustações oleosas no piso do galpão e serragem lançados sobre manchas e poças de óleo, mesmo sobre bloquetes de concreto (áreas do perímetro imediato do galpão), corroboravam esta contaminação:

4.4. A ausência de canaletas isolando o perímetro do galpão da oficina (G1), e a declividade do terreno, determinava que mesmo os contaminantes (exemplo: resíduos oleosos e de combustíveis) que atingiam o piso do galpão pudessem ser carreados para a porção externa deste (recoberto por bloquetes, não impermeável);

4.5. Efluentes (águas ricas em resíduos oleosos e de combustíveis) produzidos na porção sudoeste do galpão da oficina (G1) eram coletados e direcionados a unidade de tratamento de efluente. Esta se tratava de separador de óleos por densidade (Fig 2, Spo). Este separador, em sua última unidade, apresentava visivelmente resíduos oleosos sobrenadantes, indicando tratamento não eficaz em sua totalidade. Pelos elementos disponíveis e levantados, não foi determinado o destino exato do efluente a partir deste ponto ou mesmo seu local de lançamento no manancial:

4.6. Junto à borda do galpão da oficina (GI), presença de tanque de combustível (diesel), capacidade de 5000L, locado sobre piso não impermeável (em bloquetes de concreto) e destituído de bacia de contenção. Em torno deste, o piso (bloquetes) apresentava coloração enegrecida, derivado de impregnações oleosas;

4.7. Na porção inferior do pátio do estacionamento, presença de caixa de captação de pluviais, a qual apresentava superfícies internas enegrecidas, sugerindo carreamento de óleos e graxas por pluviais (vide foto 11);

4.8. Presença, entre outros, de fragmentos de madeiras diversos, peças de veículos, tampas de latões, dispostas em local a céu aberto, em local com piso em bloquetes de concreto, formando local propício à atração de animais sinantrópicos e vetores de patogenias, como ratos, baratas ou mesmo mosquitos, como os transmissores do dengue (foto 12);

4.9. Presença de tanque de armazenamento de óleos advindos de trocas de lubrificantes de veículos, disposto na divisa entre os patamares do terreno (vide imagem situação, Tq. 2). Tal tanque se tratava de reservatório disposto diretamente sobre o solo, não impermeável e destituído de bacia de contenção (foto 14):

(…)
4.12. O posto de abastecimento de ônibus da empresa, situado na porção nordeste da área, apresentava: piso, em locais de risco (ex: bombas de abastecimento), concretado, sugerindo sua impermeabilização o (fotos 18 e 19); canaletas isolando áreas de risco e direcionando águas que atingissem o piso; unidade de tratamento de águas residuárias, composta por separador de óleos por densidade;

Conclui o laudo pericial supra citado, que “a possibilidade de contaminação do solo era permitida e propiciada pela geração de resíduos oleosos no ambiente da oficina e entorno, com contaminação de piso não impermeável e existência de tanques de diesel e resíduos oleosos destituídos de bacia de contenção e em local de piso não impermeável.”

No caso sub examen, a primeira denunciada, além de estar causando poluição em níveis tais que possam resultar em danos à saúde humana, o está fazendo mediante o lançamento de substâncias oleosas em desacordo com as exigências estabelecidas em leis ou regulamentos que disciplinam a matéria (Lei 14.248/02, art. 12 e Decreto Estadual 1.745/79, art. 57).

Em conformidade com o Parecer n.º 229/2006 – DVALA, da Secretaria Municipal de Meio Ambiente, datado de 7/4/2006, que acompanha a presente peça acusatória, o empreendimento não possui o devido licenciamento ambiental, estando, portanto, operando de forma irregular, e, por conseguinte, reiterando na prática do delito tipificado no artigo 60 da Lei de Crimes Ambientais (Lei 9.605/98).
Segundo consta, o denunciado UMBERTO PEREIRA DA CRUZ CARDOSO, representante legal da primeira denunciada, corroborou para a realização dos delitos, na medida em que, sabendo de sua conduta criminosa, deixou de impedir a sua prática quando podia agir para evitá-la, bem como, na condição de dirigente da pessoa jurídica denunciada, deliberou para a prática dos fatos supra mencionados” (fls. 20/23).

Conforme já pacificado neste Tribunal admite-se a responsabilidade penal da pessoa jurídica em crimes ambientais desde que haja a imputação simultânea do ente moral e da pessoa física que atua em seu nome ou em seu benefício, uma vez que “não se pode compreender a responsabilização do ente moral dissociada da atuação de uma pessoa física, que age com elemento subjetivo próprio”, conforme bem ressaltou o Exmo. Sr. Ministro Gilson Dipp (Resp n.º 564960/SC, 5.ª Turma, DJ de 13/6/2005).

Nessa linha os seguintes precedentes: RMS 16696/PR, 6.ª Turma, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, DJU de 13/3/2006 e REsp 610114/RN, 5.ª Turma, Rel. Min. Gilson Dipp, DJU de 19/12/2005.

Essa a hipótese dos autos, porquanto procedida, pelo Parquet, a dupla imputação.
De outro lado não há como se acolher a alegação de que o paciente Umberto Pereira da Cruz Raposo somente figuraria no polo passivo da ação penal em virtude da posição que ocuparia na empresa (dirigente), eis que, como restou demonstrado na vestibular acusatória, sua participação nos fatos em apuração foram devidamente discriminados conforme se observa, notadamente, no seguinte trecho: “Segundo consta, o denunciado UMBERTO PEREIRA DA CRUZ CARDOSO, representante legal da primeira denunciada, corroborou para a realização dos delitos, na medida em que, sabendo de sua conduta criminosa, deixou de impedir a sua prática quando podia agir para evitá-la, bem como, na condição de dirigente da pessoa jurídica denunciada, deliberou para a prática dos fatos supra mencionados” (fl. 23).

Dessarte, o caso em apreço não se confunde com aqueles em que a imputação formulada se dirige a determinadas pessoas unicamente por figurarem no contrato social de pessoa jurídica o que, a toda evidencia, é repelido por esta Corte, por traduzir hipótese de responsabilidade penal objetiva. Já a efetiva participação do acusado nos fatos mencionados na denúncia deve ser apurada durante a instrução processual, pois que este exame configura nítida matéria de mérito da ação penal.

Ante o exposto conheço parcialmente a ordem, e, nesta parte, denego-a.
É o voto.

Decisão unânime, votando com o Relator os Ministros  Laurita Vaz, Arnaldo Esteves Lima, Napoleão Nunes Maia Filho e Jorge Mussi.

Ronaldo Botelho é advogado e professor da Escola da Magistratura do Paraná.