Penal. Deficiente fundamentação na imposição da pena. Processual penal. Condenação por crime hediondo. Direito de apelar em liberdade.

“HABEAS CORPUSN.º 21.795 – PB

REL.: MIN. FÉLIX FISCHER

EMENTA

I – A pena deve ser fixada com fundamentação concreta e vinculada, tal como exige o próprio princípio do livre convencimento fundamentado (arts. 157, 381 e 387 do CPP c/c/ o art. 93, inciso IX, segunda parte da Lex Máxima). Ela não pode ser estabelecida acima do mínimo com supedâneo em referências vagas e dados não explicitados.

II – Configura-se ilegal a decisão que, sem qualquer fundamentação, determina seja expedido mandado de prisão contra o réu condenado por crime hediondo, cerceando-lhe o direito de apelar em liberdade, se este respondeu solto ao processo, além do que foi reconhecido como primário pela sentença. (Precedentes).

Ordem concedida.”

(STJ/DJU de 17/2/03, pág. 312)

Duas questões são tratadas neste aresto da 5.ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, relator o ministro Félix Fischer: a primeira, diz respeito com a necessidade de fundamentação explícita para a aplicação da pena acima do mínimo legal, não bastando, para tanto, referências vagas e genéricas; a segunda, na linha de inúmeros precedentes, proclama o direito que tem o réu que respondeu solto o processo de apelar em liberdade, ainda que condenado por crime hediondo.

Eis, na íntegra, o voto do relator.

O exmo. sr. ministro Félix Fischer: Inicialmente, no que tange à alegação do impetrante de que a quantidade de pena imposta ao paciente foi extremamente exacerbada e desprovida de qualquer fundamentação, a irresignação merece prosperar. Compulsando-se os autos, verifica-se que a pena-base foi fixada acima do mínimo legal, e sem a devida fundamentação, conforme se constata na análise da r. sentença, in verbis:

`Considerando os elementos do art. 59 do Código Penal, passo a dosar a pena do acusado José Humberto de Lima. Pelo que consta dos autos, o acusado é primário, sua culpabilidade demonstra que o mesmo praticou o fato com certo índice de reprovabilidade. Seus antecedentes são favoráveis. Quanto à conduta social não existe prova de que o mesmo possui mau comportamento. Consta que o acusado possui uma personalidade dentro dos padrões sociais. Os motivos são considerados de média reprovação. Quanto às circunstâncias, o crime não extrapolou do esperado. As conseqüências do crime foram as esperadas para o tipo penal sub judice. Por tudo isso, fixo a pena base em 7 (sete), anos e 6 (seis) meses de reclusão, que a torno definitiva, verificando a existência de circunstância atenuante e agravante, bem como causa de diminuição ou aumento, devendo a mesma ser cumprida integralmente em regime fechado, conforme estabelece a Lei n.º 8.072/90, em seu seu art. 2.º, § 1.º, que trata dos crimes hediondos.

Considerando que o tipo penal encontra-se no elenco dos crimes hediondos, e em conformidade com o art. 594, do CPP, deverá o réu recolher-se à prisão. Expeça-se o competente mandado de prisão.” (Fls. 45).

Desse modo, quanto à fixação da resposta penal, especificamente, da pena privativa de liberdade, entendo que houve violação ao art. 59 do C. Penal. É que a pena, para ser fixada acima do mínimo legal, exige fundamentação concreta e vinculada. Considerações genéricas, abstrações ou dados integrantes da própria conduta tipificada não podem supedanear a elevação da reprimenda. O princípio do livre convencimento fundamentado ou da persuasão racional não o permite (art. 157, 381, 387 e 617 do CPP c/c o art. 93, inciso IX, 2.ª parte da Lex Maxima).Assim, a ausência de fundamentação indica error in procedendo.

Por análise dos autos, verifica-se que a r. decisão de primeiro grau apresenta em sua fundamentação incerteza denotativa ou vagueza, carecendo, na fixação da resposta penal, de fundamentação objetiva imprescindível. Por exemplo, no estabelecimento da pena base, fala que a culpabilidade do paciente “demonstra que o mesmo praticou fato com certo índice de reprovabilidade”. A seguir, sem descer ao concreto, diz “”. que os motivos são considerados de média reprovação”. Afirma, ainda, que “o acusado é primário”, “seus antecedentes são favoráveis”, “não existe prova de que o mesmo possui mau comportamento”, “que o acusado possui uma personalidade dentro dos padrões sociais” e que, “quanto às circunstâncias, o crime não extrapolou do esperado”. entretanto, não obstante essas considerações, a pena privativa de liberdade foi estabelecida em 7 (sete) anos e 6 (seis) meses de reclusão (pena base). Data venia, a nulidade é manifesta, absoluta, e deve ser sanada.

É orientação do Pretório Excelso, in verbis:

“Habes corpus”: inidoneidade, segundo a jurisprudência atual (v.g., HHCC 69.619 e 68.507), para corrigir quaisquer ilegalidade da sentença penal condenatória que não impliquem coação ou iminência direta de coação a liberdade de ir e vir: aplicação “a fortiori” a hipótese do caso, quando a perda de bens já apreendidos operou-se “ipso jure” com o trânsito em julgado da condenação, sem que caiba, portanto, cogitar de quaisquer eventuais reflexos sobre a liberdade pessoal do paciente, que pudessem advir da execução do confisco. II. Sentença condenatória: Individualização da pena: Coerência lógico-jurídica entre a fundamentação e o dispositivo.

1. A exigência de motivação da individualização da pena – hoje, garantia constitucional do condenado (CF, arts. 5, XLVI, e 93, IX) -, não se satisfaz com a existência na sentença de frases ou palavras quaisquer, a pretexto de cumpri-la: a fundamentação há de explicitar a sua base empírica e essa, de sua vez, há de guardar relação de pertinência, legalmente adequada, com a exacerbação da pena – no caso, ao ponto de quadruplicar o mínimo da comina cominação legal -, desvela o subjetivismo dos critérios utilizados, de todo distanciados dos parâmetros legais.”

(STF, HC 69.419/MS, 1.ª Turma, rel. min. Sepulveda Pertence, DJU de 28/8/92, p. 13.455).

“Processual penal. Penal. Pena: Fixação. Pena base fixada acima do mínimo legal : necessidade de motivação.

I. – Pena base fixada acima do mínimo legal: necessidade de fundamentação. Neste caso, anula-se a fixação da pena, mantida, entretanto, a condenação, para que outra seja fixada, de acordo com os critérios legais.

II. H.C. deferido, em parte.”

(STJ, HC 70.250/SP, 2.ª Turma, rel. min. Carlos Velloso, DJU de 3/9/93, p. 17.744).

“Habeas corpus”. Roubo qualificado. Alegação de nulidade de sentença condenatória. Fixação da pena-base acima do mínimo legal. Possibilidade – Alegada ausência de fundamentação. Inocorrência. Pedido indeferido.

– A simples primariedade do acusado não obriga e nem vincula o julgador a fixar a pena-base no mínimo legal. A exacerbação da resposta penal do Estado pode justificar, em caráter excepcional, a imposição, ao sentenciado primário, de limites juridicamente mais gravosos, desde que o ato decisório se apresente suficientemente fundamentado e encontre suporte em dados da realidade que dêem concreção às circunstâncias judiciais abstratamente definidas no art. 59 do Código Penal.

– Traduz situação de injusto constrangimento o comportamento processual do Magistrado ou do Tribunal que, ao fixar a pena-base do sentenciado, adstringe-se a meras referências genéricas pertinentes às circunstâncias abstratamente elencadas no art. 59 do Código Penal. Penal. O juízo sentenciante, ao estipular a pena-base e ao impor a condenação final, deve referir-se, de modo específico, aos elementos concretizadores das circunstâncias judiciais fixadas naquele preceito normativo. Decisão que, no caso, atendeu, plenamente, as exigências da lei e da jurisprudência dos Tribunais.

– Os elementos de convicção que motivaram o juízo sentenciante na fixação da pena-base, a partir da análise das circunstâncias judiciais previstas no art. 59 do Código Penal, não se revelam suscetíveis de reexame em sede processual de “habeas corpus”.

(STJ, HC 69.141/RJ, 1.ª Turma, rel. min. Celso de Mello, DJU de 28.8.92, pág. 13.453).

“Habeas corpus. Pena. Fixação além do mínimo cominado para o crime de lesão corporal de natureza grave. Fundamentação necessária.

Se a decisão condenou o paciente além do mínimo previsto para o crime por ele cometido, deveria ter justificado o acréscimo. Somente a alusão a intensidade do dolo e as circunstâncias do fato, sem a necessária motivação, não atende aos requisitos do artigo 59 do Código Penal.

Ordem deferida, em parte, para anular o acórdão no ponto em que fixou a pena, para que nova fixação se faça, com explicitação das circunstâncias justificadoras de exasperação.”

(STF. HC 69.334/PE, 1.ª Turma, rel. min. Ilmar Galvão, DJU de 4/9/92, p. 14.092).

E, nesta Corte: “Penal e processual penal. Habes corpus (EC n.º 22/99). Estelionato. Defesa prévia. Pena. Fixação. Regime.

I – Não oferecida a defesa prévia pelo advogado constituído, a nomeação de dativo que supriu a omissão, após não ter sido localizada a ré-paciente, é procedimento tecnicamente incensurável, ainda mais que as alegações preliminares não são, por si, peça obrigatória.

II – A pena privativa de liberdade deve ser fixada com fundamentação concreta e vinculada tal como exige a princípio do livre convencimento fundamentado (arts. 157, 381 e 387 do CPP c.c. o art. 93, IX, segunda parte da Carta magna). Ela não pode ser estabelecida acima do mínimo com fulcro em suposição – ação em andamento que redundou inclusive, em absolvição ou com base em expressões vagas e infundadas (“personalidade voltada para o crime”, processos sentenciado e ação em andamento).

III – O regime inicial, a eventual suspensão da pena e, agora, as penas restritivas (Lei n.º Habeas corpus parcialmente concedido.

(STJ/ HC 9.526/PB, 5.ª Turma, de minha relatoria, DJU de 8/11/99, p. 83).

Sendo assim, pela leitura da r. sentença e considerando-se as circunstâncias detectadas para efeito das diretrizes judiciais do art. 59 do C.P., penso que a resposta penal, na pena-base deva ficar, mesmo, no mínimo legal (6 anos de reclusão).

No que tange ao apelo em liberdade, verifica-se dos autos que a r. sentença condenatória (fls. 45) reconheceu que o réu era primário. E, nas informações prestadas às fls. 84, consta que o réu permaneceu em liberdade durante toda a instrução. Mesmo assim, quando proferida a r. sentença condenatória, foi determinada a expedição de mandado de prisão contra o paciente, sem qualquer fundamentação concreta.

Não obstante o paciente ter sido condenado por crime hediondo, a vedação ao exercício do apelo em liberdade, até por uma questão de lógica, em tais circunstâncias, com o devido respeito a entendimento diverso, teria – tal vedação – que ser fundamentada. Refoge ao nosso sistema de garantias individuais a possibilidade de alguém ter a sua liberdade cerceada por livre arbítrio sem qualquer fundamentação concreta, tal como se vê do art. 93, IX, 2.” parte da nossa da Lex Maxima.

Nesse sentido:

“Processual penal. Habeas-corpus. Progressão de regime prisional. Questão não apreciada pela instância ordinária. Impossibilidade de conhecimento. Sentença condenatória. Apelação. Princípio da presunção de inocência: CF, Art. 5.º, LVII. Direito de recorrer em liberdade. CPP, Art. 594. Garantia violada.

– O habeas corpus é um instrumento de magnitude constitucional que tem por objetivo preservar o direito de locomoção, não se prestando para resolver questões formuladas e não decididas pelas instâncias ordinárias.

– Se as razões deduzidas na impetração ataca matéria ainda não apreciada pelo Tribunal, é descabido o seu deslinde nesta instância superior, sob pena de supressão de grau de jurisdição.

– À luz da nova ordem constitucional, que consagra no capítulo das garantias individuais o princípio da presunção de inocência (CF, art. 5.º, LVII), a faculdade de recorrer em liberdade objetivando a reforma de sentença penal condenatória é a regra, somente impondo-se o recolhimento provisório do réu à prisão nas hipótese em que enseja a prisão preventiva na forma inscrita no art. 312, do CPP.

– O direito de apelar em liberdade de sentença, assegurado pelo Código de Processo Penal, art. 594, não pode ser negado a réu que permaneceu em liberdade durante todo o curso do sumário, salvo se indicado no dispositivo da sentença fortes razões para a imposição da custódia processual.

– Habes corpus parcialmente conhecido e nesta parte concedido.ª

(HC 16.567/SP,rel. min. Vicente Leal, DJU de 13/8/2001).

“Habeas corpus substitutivo de recurso ordinário. Tráfico ilícito de Entorpecentes. Crime impossível. Extensão. Direito de apelar em liberdade concurso eventual de agentes.

1. Não se conhece do pedido quando não houve manifestação da Corte Estadual sobre a matéria objeto de impugnação, sob pena de supressão de instância.

2. A fundamentação das decisões do Poder Judiciário, tal como resulta da letra do inciso IX do artigo 93 da Constituição da República, é condição absoluta de sua validade e, portanto, pressuposto da sua eficácia, substanciando-se na definição suficiente dos fatos e do direito que a sustentam de modo a certificar a realização da hipótese de incidência da norma e os efeitos dela resultantes.

3. Tal fundamentação, para mais, deve ser deduzida em relação necessária com as questões de direito e de fato postas na pretensão e na sua resistência, dentro dos limites do pedido, não se confundindo, de modo algum, com a simples reprodução de expressões ou termos legais, postos em relação não raramente com fatos e juízos abstratos, inidôneos à incidência da norma invocada.

4. Tendo o acusado, portador de bons antecedentes, respondido ao processo solto, a circunstância de o delito em apuração se tratar de tráfico ilícito de entorpecentes, por si só, não lhe obsta o direito de aguardar, em liberdade, o julgamento do apelo interposto, sendo inaceitável, ademais, para a imposição de custódia cautelar, a mera presunção de que o réu empreenderá fuga do distrito da culpa.

5. A absolvição do co-réu, em virtude do reconhecimento de flagrante preparado, não macula a condenação do outro acusado por anterior manutenção em depósito da substância entorpecente.

6. Absolvido o suposto e único co-réu, todavia, em face da aplicação do artigo 17 do Código Penal, impõe-se a exclusão da causa especial de aumento de pena, decorrente do concurso eventual de agentes, imposta ao acusado remanescente.

7. Habeas corpus conhecido em parte para, nesta extensão, deferir ao réu o direito de aguardar, em liberdade, o julgamento do apelo. Concessão de ofício da ordem, ademais, para excluir, da contenação do paciente, a majoração da pena imposta pelo artigo 18, inciso III, da Lei n.º 6.368/76.”

(HC 14.297/RJ, rel. min. Hamilton Carvalhido, DJU de 13/8/2001).

“Criminal. RHC. Tráfico de entorpecentes. Apelo em liberdade. Réu solto durante a instrução do processo. Fundamentação nos maus antecedentes. Alusão genérica à existência de indícios de ameaça a testemunhas. Insuficiência de fundamentação para a custódia determinada. Recurso provido.

Exige-se concreta e adequada motivação para a negativa ao apelo em liberdade, ainda que se tratando de réu com maus antecedentes, tendo em vista a excepcionalidade de custódia cautelar e diante das próprias peculiaridades da hipótese – réu que permaneceu solto durante toda a instrução do feito.

O simples fato de se tratar de crime hediondo não basta para que seja determinada a segregação do paciente para aguardar o julgamento do recurso de apelação.

Não tendo sido apontados fatos concretos, passíveis de serem caracterizados como “fortes indícios de estar ameaçando testemunhas”, a mera alusão genérica à presença de tais indícios não é suficiente para embasar a prisão processual.

Se o paciente permaneceu solto durante a instrução do processo, sem criar qualquer obstáculo ao seu regular andamento, e diante da inexistência de suficiente fundamentação quanto à necessidade da custódia, tem-se como descabida a segregação provisória determinada.

Recurso provido a fim de reconhecer o direito do paciente ao apelo em liberdade.”

(RHC 12.070/MG, rel. min. Gilson Dipp, DJU de 4/2/2002).

Ante o exposto, voto, pois, pela concessão da ordem, para determinar que a pena-base seja fixada no mínimo legal (6 anos de reclusão), bem como para que o réu possa apelar em liberdade (se por al não estiver preso).

Relatório e voto

Decisão unânime, votando com o relator os ministros Gilson Dipp, Jorge Seartezzini, Laurita Vaz e José Arnaldo da Fonseca.

Ronaldo Botelho

é advogado e professor da Escola da Magistratura.