Penal. Crime fiscal. Esgotamento da via administrativa. Necessidade.

“HABEAS CORPUS N.º 83.414-1/RS

REL.: MIN. JOAQUIM BARBOSA

EMENTA – Habeas corpus. Penal. Tributário. Crime de supressão de tributo (art. 1.º da lei 8.137/1990). Natureza jurídica. Esgotamento da via administrativa. Prescrição. Ordem concedida.

1. Na linha do julgamento do HC 81.611 (rel. min. Sepúlveda Pertence, Plenário), os crimes definidos no art. 1.º da Lei 8.137/1990 são materiais, somente se consumando com o lançamento definitivo.

2. Se está pendente recurso administrativo que discute o débito tributário perante as autoridades fazendárias, ainda não há crime, porquanto “tributo” é elemento normativo do tipo.

3. Em conseqüência, não há falar-se em início do lapso prescricional, que somente se iniciará com a consumação do delito, nos termos do art. 111, I, do Código Penal.”

(STF/DJU de 23/4/04)

Depois de um largo período em que a jurisprudência das instâncias extraordinárias e ordinárias entendia possível a instauração e a solução da ação penal, independentemente da decisão final no procedimento administrativo-fiscal, mais recentemente o Supremo Tribunal passou a considerar que, nos crimes contra a ordem tributária previsto no art. 1.º da lei n.º 8.137/90, a ação penal não pode ser recebida sem que haja a constituição definitiva do crédito tributário, isto é o lançamento final do tributo que somente ocorre com o exaurimento da via administrativa fiscal (v. artigo de Jorge Vicente da Silva, in “Direito e Justiça”, ed. do dia 30/5/04).

Assim ocorreu em 10/12/03, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 1.571-1, relator o ministro Gilmar Mendes, onde ficou assentado que: “Antes de constituído definitivamente o crédito tributário não há justa causa para a ação penal.

E, também em 10/12/03, no julgamento “habeas corpus” n.º 81.611, relator o ministro Sepúlveda Pertence, em que ficou ressaltado que “nos crimes previstos no artigo 1.º da Lei n.º 8.137/90, que são materiais ou de resultado, a decisão definitiva do processo administrativo consubstancia uma condição objetiva de punibilidade, configurando-se como elemento essencial à exigibilidade da obrigação tributária” (Notícias do STJ de 11/5/04).

E, agora, com esta decisão posta em destaque, da primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, relator o ministro Joaquim Barbosa, com o seguinte voto condutor:

O senhor ministro Joaquim Barbosa (relator): A presente impetração é fundada nas teses (i) da inépcia da inicial e (ii) da necessidade de esgotamento do procedimento administrativo nos crimes contra a ordem tributária.

Quanto à tese da inépcia da inicial, deixo de conhecê-la. Da leitura dos acórdãos do Tribunal de Justiça local e do Superior Tribunal de Justiça, noto que não houve discussão acerca dessa questão.

Transcrevo o trecho do relatório do acórdão da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça que me parece elucidativo:

“Alega a Impetrante, nesta oportunidade, constrangimento ilegal ante ausência de justa causa para o desenvolvimento da instrução criminal, uma vez que o auto de infração administrativa ainda não foi julgado naquela esfera decisória. Sustenta, destarte, que o exaurimento e o julgamento desfavorável, na esfera administrativa, são condições de procedibilidade para o oferecimento da peça acusatória ministerial.” (Fls. 144)

Assim, os argumentos alinhados pelos impetrantes no título “Do Abuso do Poder de Denunciar” (fls. 26-34) vão além daqueles discutidos nas instâncias anteriores, razão por que não podem ser conhecidos. Haveria, do contrário, supressão de grau da jurisdição ordinária. (Preceentes: HC 83.041, rel. min. Carlos Velloso, DJ 30/5/2003; HC 82.769, rel. min. Gilmar Mendes, RJ 1.º/4/2003, e HC 79.776, rel. min. Moreira Alves, DJ 3/3/2000.)

Já a tese da necessidade de esgotamento prévio do procedimento administrativo para oferecimento da denúncia merece ser conhecida e provida.

A situação fática é a seguinte: a empresa de que o paciente é sócio foi autuada por possíveis irregularidades no lançamento de ICMS. Durante o prazo para a impugnação administrativa do auto de infração, foi oferecida a denúncia.

Recentemente, o Plenário desta corte, no julgamento do HC 81.611, posicionou-se no sentido de que antes do esgotamento da via administrativa não há crime tributário, o que torna inviável o oferecimento da denúncia.

Após profícuos debates, parece-me que prevaleceu a seguinte orientação. O delito tipificado no art. 1.º da Lei 8.137/1990 é crime material que se consuma apenas com o lançamento definitivo, o que não ocorre antes do exaurimento do procedimento administrativo. Isso porque “tributo” é elemento normativo do próprio tipo penal, o que faz com que eventual processo criminal de fato ainda não típico acarreta constrangimento ilegal por falta de justa causa para a ação penal.

Como conseqüência, também não há falar-se em início do lapso prescricional, que, nos termos do art. 111, I, do Código Penal, tem por termo inicial a consumação do delito.

Quanto ao mais, observo que, com o advento da Lei 10.684/2003, não há mais necessidade de se pagar o tributo até o recebimento da denúncia (e, portanto, antes mesmo do exaurimento da vida administrativa) para que o cidadão não venha a ser processado criminalmente. Isso porque o § 2.º do art. 9.º da referida lei criou uma causa extintiva da punibilidade, consistente no pagamento, a qualquer tempo, do débito tributário.

Do exposto, conheço parcialmente da presente impetração de habeas corpus (excluindo a alegação de inépcia da inicial) e, no mérito, concedo a ordem pleiteada, para trancar a ação penal de número 110886091, em curso na 1.ª Vara Criminal da Comarca de Porto Alegre.

Decisão unânime, votando com o relator os ministros Cezar Peluso, Carlos Britto.

Ronaldo Botelho

é advogado e professor da Escola da Magistratura.