Penal. Crime de desobediência. Cominação de multa se desrespeitada a obrigação. Atipicidade penal da conduta.

EMENTA:

– Não se reveste de tipicidade penal descaracterizando-se, desse modo, o delito de desobediência (CP, art. 330) – a conduta do agente, que, embora não atendendo a ordem judicial que lhe foi dirigida, expõe-se, por efeito de tal insubmissão, ao pagamento de multa diária (?astreinte?) fixada pelo magistrado com a finalidade específica de compelir, legitimamente, o devedor a cumprir o preceito. Doutrina e jurisprudência.

(STJ/DJU de 10/3/06)

A existência na decisão judicial de cominação de multa diária, em caso de descumprimento da ordem expedida, basta, por si só, para provocar a descaracterização típica do delito de desobediência.

Neste sentido, a decisão da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, relator o ministro Calso de Mello, com o seguinte voto condutor:

O Senhor Ministro Celso De Mello – (Relator): Consta dos autos que se instaurou procedimento penal contra o ora paciente, porque este teria desrespeitado ordem judicial, que, emanada de Juizado Especial Civil da comarca de Cruz Alta/RS, havia determinado, em sede cautelar, à empresa Rio Grande Energia S.A., que não efetuasse o corte de energia na residência de certa pessoa, sob pena de multa diária de cem reais (fls. 85/86).

Sustenta-se, a partir da interpretação dada ao art. 330 do CP, que não estaria configurada, na espécie, a tipicidade penal da conduta que o Ministério Público atribuiu ao ora paciente (fls. 78/79), pois, segundo alegado na impetração, a existência, na decisão judicial, de cominação de multa diária, em caso de descumprimento da ordem expedida, bastaria, por si só, para provocar a descaracterização típica do delito de desobediência (fls. 04).

O exame da presente impetração, considerado o magistério jurisprudencial dos Tribunais em geral, inclusive o desta Suprema Corte (RT 368/265 RT 502/336 – RT 543/347 RT 613/413 RT 715/533 RF 189/336 Julgados do TACRIM/SP, vol. 72/287, v.g.), põe em evidência, na espécie, a integral procedência da postulação veiculada nesta sede processual:

?PENAL. CRIME DE DESOBEDIÊNCIA. DETERMINAÇÃO JUDICIAL ASSEGURADA POR MULTA DIÁRIA DE NATUREZA CIVIL (ASTREINTES). ATIPICIDADE DA CONDUTA.

Para a configuração do delito de desobediência, salvo se a lei ressalvar expressamente a possibilidade de cumulação da sanção de natureza civil ou administrativa com a de natureza penal, não basta apenas o não cumprimento de ordem legal, sendo indispensável que, além de legal a ordem, não haja sanção determinada em lei específica no caso de descumprimento. (Precedentes).

??Habeas corpus? concedido, ratificando os termos da liminar anteriormente concedida.?

(HC 22.721/SP, Rel. Min. FELIX FISCHER – grifei)

??HABEAS CORPUS?. CRIME DE DESOBEDIÊNCIA. AÇÃO DE NUNCIAÇÃO DE OBRA NOVA. DETERMINAÇÃO JUDICIAL. MULTA DIÁRIA.

(…) Se o juiz comina pena pecuniária para o descumprimento de preceito judicial, a parte que desafia tal ameaça não comete o crime de desobediência. Precedentes.?

(HC 37.279/MG, Rel. Min. HUMBERTO GOMES DE BARROS – grifei)

Cabe enfatizar, neste ponto, que essa orientação jurisprudencial encontra pleno apoio em autorizado magistério doutrinário (DAMÁSIO DE JESUS, ?Direito Penal Parte Especial?, vol. 4, p. 219, 12.ª ed., 2002, Saraiva):

?Inexiste desobediência se a norma extrapenal, civil ou administrativa, já comina uma sanção sem ressalvar sua cumulação com a imposta no art. 330 do CP. Significa que inexiste o delito se a desobediência prevista na lei especial já conduz a uma sanção civil ou administrativa, deixando a norma extrapenal de ressalvar o concurso de sanções (a penal, pelo delito de desobediência, e a extrapenal). Ex. de sanções cumuladas: CPC, art. 362. Exs. de sanções não cumuladas: infração a regulamento de trânsito, desobediência ao Código de Menores etc. Assim, a recusa de retirar o automóvel de local proibido, que configura infração ao CNT, não constitui crime de desobediência.

Isso porque a norma extrapenal prevê uma sanção administrativa e não ressalva a dupla penalidade.? (grifei)

Essa mesma percepção do tema, por sua vez, já era também perfilhada por NELSON HUNGRIA (?Comentários ao Código Penal?,

vol. IX, p. 417, 1958, Forense), cujo magistério continha a seguinte advertência:

?Se, pela desobediência de tal ou qual ordem oficial, alguma lei comina determinada penalidade administrativa ou civil, não se deverá reconhecer o crime em exame, salvo se a dita lei ressalvar expressamente a cumulativa aplicação do art. 330 (ex.: a testemunha faltosa, segundo o art. 219 do Cód. de Proc. Penal, está sujeita não só à prisão administrativa e pagamento das custas da diligência da intimação, como a ?processo penal por crime de desobediência?)?. (grifei)

Cumpre ter presente que esse entendimento é também registrado pelo magistério da doutrina (JULIO FABBRINI MIRABETE, ?Código Penal Interpretado?, p. 2.444, 5.ª ed., 2005, Atlas; LUIZ REGIS PRADO, ?Comentários ao Código Penal?, p. 1.017, 2002, RT; FERNANDO CAPEZ, ?Curso de Direito Penal?, vol. III, p. 481, 2004, Saraiva; CELSO DELMANTO, ROBERTO DELMANTO, ROBERTO DELMANTO JÚNIOR e FÁBIO M. DE ALMEIDA DELMANTO, ?Código Penal Comentado?, p. 657, 6.ª ed., 2002, Renovar; PAULO JOSÉ DA COSTA JR., ?Código Penal Comentado?, p. 1.073, item n. 4, 8.ª ed., 2005, DPJ Editora, v.g.).

Em suma: não se reveste de tipicidade penal descaracterizando-se, desse modo, o delito de desobediência (CP, art. 330) – a conduta do agente, que, embora não atendendo a ordem judicial que lhe foi dirigida, expõe-se, por efeito de tal insubmissão, ao pagamento de multa diária (?astreinte?) fixada pelo magistrado com a finalidade específica de compelir, legitimamente, o devedor a cumprir o preceito.

Sendo assim, considerando as razões expostas e acolhendo, ainda, o parecer da douta Procuradoria-Geral da República (fls. 148/153), defiro o pedido de ?habeas corpus?, em ordem a determinar a definitiva extinção do Processo-crime n.º 011/2.04.0002542-2, ora em tramitação perante o Juizado Especial Criminal da comarca de Cruz Alta/RS, eis que desvestida de tipicidade penal a conduta que o Ministério Público atribuiu ao ora paciente.

É o meu voto.

Decisão unânime, votando com o relator os ministros Carlos Velloso, Ellen Gracie, Gilmar Mendes e Joaquim Barbosa.

Ronaldo Botelho é advogado e professor da Escola da Magistratura.