Necessidade de reinterrogatório após a Lei nº 11.719/08

O art. 2º do CPP é taxativo ao expor que a lei processual penal, após entrar em vigor, “aplicar-se-á desde logo“. No entanto, mesmo assim a controvérsia jurisprudencial se instaura quando se trata de aplicar esse simples mandamento ao caso concreto. É o que ocorre com a Lei nº 11.719/08, especificamente quanto ao momento de realização do interrogatório.

Assim que a lei entrou em vigor, o que deveria ser feito pelo magistrado de primeiro grau nos casos que ainda estavam em plena instrução e com o interrogatório já realizado? Para o Superior Tribunal de Justiça, como se vê da decisão abaixo, o juiz deveria ter determinado a realização de um novo interrogatório ao final da instrução, sem prejuízo dos atos realizados até então. Veja-se a ementa:

“PROCESSO PENAL.  HABEAS CORPUS. ROUBO CIRCUNSTANCIADO. LEI 11.719⁄08. INTERROGATÓRIO. ÚLTIMO ATO. LEI PROCESSUAL. APLICAÇÃO IMEDIATA. ILEGALIDADE. RECONHECIMENTO.

1. A Lei 11.719⁄08, de reforma do Código de Processo Penal, superado o período de vacatio legis, incidiu imediatamente sobre os feitos em curso. Assim, o interrogatório, como meio de defesa que é, deve ser realizado ao cabo da instância, não ficando ao talante do juiz estabelecer o momento apropriado, invocando-se o art. 196 do Codex.

2. Ordem concedida em menor extensão, acolhido o parecer ministerial e ratificada a liminar, para assegurar ao paciente e aos demais corréus o direito de serem interrogados ao cabo da ação penal, como determina a sistemática processual estabelecida pela Lei 11.719⁄08.”

(STJ – HC 123958/MG – 6ª T. – Rel. Min. Maria Thereza Rocha de Assis Moura – DJe de 4.5.11) 

Da íntegra do voto da eminente Ministra relatora, Maria Thereza Rocha de Assis Moura, extraem-se os relevantes fundamentos:

“O objeto da impetração cinge-se à verificação de ilegalidade consistente na ausência de imediata aplicação da Lei nº 11.719⁄08 a processo penal em curso. O juiz de primeiro grau assentou:

‘É notório que o interrogatório é reconhecido mais como peça de defesa do que de ataque. No interrogatório o acusado tem a oportunidade de dar a sua versão dos fatos ou até mesmo, como fez PAULO NORBERTO, de ficar calado e nada responder.

A lei 11.719⁄08, em boa hora, e reconhecendo o interrogatório como peça de defesa, disse que, ao final o réu será interrogado. O objetivo do legislador foi estabelecer um novo momento em que o Juiz obrigatoriamente interrogará o réu para que ele possa comentar as provas produzidas contra si ou a seu favor durante a oitiva das testemunhas e provas técnicas produzidas.

Em momento algum se tira do juiz o direito de interrogar o réu antes ou durante a instrução.’ (fl. 102).

Como se depreende da ata da audiência de 22 de agosto de 2008, quando já em vigor a Lei 11.719⁄2008, o magistrado de primeiro grau insistiu em realizar audiência de interrogatório, apontando que ao juiz é dado estabelecer quando realizará o interrogatório.

Todavia, o contido no art. 196 do Código de Processo Penal, em verdade, conferia ao julgador a possibilidade de reinterrogar o réu, de ofício ou a pedido das partes. Tal somente se justificava, na sistemática anterior, na qual o interrogatório representava meio de prova, empreendido no limiar do procedimento.

Todavia, com as reformas processuais penais de 2008, o texto legal passou a bem sintonizar-se com a Carta Magna, que, a bem do modelo acusatório, consagrou o interrogatório efetivamente como meio de defesa. Portanto, não se me afigura apropriado que o momento do interrogatório possa ficar ao talante do magistrado.

Neste sentido:

‘Somente ao final da instrução, isto é, após as declarações do ofendido, de todas as testemunhas, dos peritos, realizados os reconhecimentos e eventuais acareações, é que se passará ao interrogatório do acusado. É evidente que não se obriga o acusado a se manifestar, mas, para que ele possa verdadeiramente exercer o seu direito à autodefesa, era primordial que houvesse essa modificação legislativa, iniciada na Lei 9.099⁄95, a fim de permitir que ele pudesse dar a sua versão dos fatos ao final.’ (SANTOS, Leandro Galluzi. As reformas no processo penal. Coord. Maria Thereza Rocha de Assis Moura. São Paulo: Ed. RT, 2008, p. 331).

Na jurisprudência desta Corte, a ressonância dos novos ventos reformadores é sensível, verbis:

‘PROCESSUAL PENAL – HABEAS CORPUS – FORMAÇÃO DE QUADRILHA – USO DE SINAL PÚBLICO FALSIFICADO -FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO PÚBLICO – FALSIDADE IDEOLÓGICA – USO DE DOCUMENTO FALSO – USO DEDOCUMENTO ALHEIO – INSERÇÃO DE DADO FALSO EM SISTEMA DE INFORMAÇÕES – CORRUPÇÃO PASSIVA – NULIDADE DO INTERROGATÓRIO – TRIBUNAL A QUO QUE EXAMINOU A HIPÓTESE COM BASE EM LEI REVOGADA – LEI, TODAVIA,VIGENTE NO MOMENTO DA REALIZAÇÃO DO ATO IMPUGNADO – AUSÊNCIA DE MÁCULA – ATO PROCESSUAL REALIZADO SEM A PRESENÇA DO DEFENSOR CONSTITUÍDO – NOMEAÇÃO DE DEFENSOR DATIVO – CAUSÍDICO CONSTITUÍDO QUE POSSUÍA MOTIVAÇÃO IDÔNEA PARA NÃO COMPARECER – COMPROMISSO AGENDADO COM MINISTRO DO STJ NA MESMA ÉPOCA – POSSIBILIDADE DE CONFIRMAÇÃO PELO JUÍZO – OFENSA À GARANTIA CONSTITUCIONAL DA AMPLA DEFESA – NULIDADE DO INTERROGATÓRIO – ATOS POSTERIORES QUE, TODAVIA, DEVEM SER CONVALIDADOS – LEI 11.719⁄2008 QUE COLOCOU O INTERROGATÓRIO COMO ÚLTIMO ATO DA INSTRUÇÃO – REALIZAÇÃO DE NOVO INTERROGATÓRIO NESSAS CONDIÇÕES QUE DISPENSA A ANULAÇÃO DOS ATOS POSTERIORES ÀQUELE NULO – ORDEM PARCIALMENTE CONCEDIDA.

1. ‘A lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior’ (artigo 2º do Código de Processo Penal).

2. Por isso, suscitada a nulidade do interrogatório pela defesa, válida a apreciação pelo Tribunal a quo com base na redação revogada do artigo 265 do Código de Processo Penal, posto que vigente na época em que o ato tipo por nulo foi realizado.

3. Havendo o defensor constituído pelo acusado deixado de comparecer à audiência de interrogatório, porém, manifestando-se com razoável antecedência pela impossibilidade de se fazer presente, tendo em vista o agendamento de compromisso com Ministro deste Superior Tribunal de Justiça na mesma época, o que poderia ser facilmente comprovado pelo Magistrado de 1ª Instância, a continuação da audiência mediante designação de defensor dativo configura nulidade, por afrontar a garantia constitucional da ampla defesa.

4. Todavia, ante a entrada em vigor da Lei 11.719⁄2008, responsável, dentre outras mudanças, pela colocação do interrogatório como último ato da instrução, devem permanecer hígidos os atos posteriores ao interrogatório tido por nulo, cabendo ao Magistrado singular tão-somente proceder a nova inquirição do paciente ao final da instrução.

5. Ordem parcialmente concedida.’

(HC 120.197⁄PE, Rel. Ministra JANE SILVA (DESEMBARGADORA CONVOCADA DO TJ⁄MG), SEXTA TURMA, julgado em 03⁄02⁄2009,DJe 16⁄02⁄2009)

Cumpre mencionar, por fim, o seguinte excerto do parecer ministerial:

In casu, na data designada para interrogatório dos réus, já se encontrava em vigor a novel legislação, tendo a defesa requerido em momento oportuno a sua aplicação imediata, de sorte a deslocar o ato de auto-defesa para o final da instrução criminal. O deferimento do pedido, ao contrário do que afirmado pela Corte a quo, não representaria a perda de nenhum ato processual já praticado e era, ressalte-se, medida que se impunha, em obediência aos princípios da ampla defesa e da imediatidade da aplicação da lei processual penal.

É certo, por outro lado, que o princípio pas de nullité sans grief, como corolário da natureza instrumental do processo, deve orientar todo o sistema de nulidades processuais, inclusive, sempre que possível, o regime das nulidades absolutas. Conquanto assim seja, não se pode exigir, no caso sub examine, a demonstração do prejuízo, justamente pela dificuldade de sua comprovação.

Ora, é de prova impossível a demonstração de que, caso realizado o interrogatório ao final da instrução probatória, na espécie, teriam os réus exercido de maneira mais satisfatória a sua auto-defesa. Com efeito, deve nos bastar a presunção de que o interrogatório realizado após a produção de todas as demais provas resultantes do contraditório possibilita uma defesa mais ampla, sendo mais benéfico ao réu.

Com isso, é de se reconhecer a nulidade absoluta dos atos processuais praticados com inobservância do rito processual em vigor, notadamente, por ter havido prejuízo à defesa, oportunamente suscitado pelos defensores.

5. Ante o exposto, opina o Ministério Público Federal pela concessão da ordem.’ (fls. 218-219).

Acredito que, na espécie, assegurar-se a realização do interrogatório ao cabo do feito, põe cobro à irregularidade noticiada, não sendo o caso de se promover a anulação do inicial interrogatório, até mesmo porquanto não se divisa qual seria o prejuízo. Segundo a melhor doutrina:

 ‘Afirma-se que as nulidades absolutas não exigem demonstração do prejuízo, porque nelas o mesmo costuma ser evidente. Alguns preferem afirmar que nesses casos haveria uma presunção de prejuízo estabelecida pelo legislador, mas isso não parece correto em todos os casos, pois as presunções levam normalmente à inversão do ônus da prova, o que pode não ocorrer quando a ocorrência do dano não oferece dúvida (…). No entanto, deve-se salientar que, seja o prejuízo evidente ou não, ele deve existir para que a nulidade seja decretada. E, nos casos em que ficar evidenciada a inexistência de prejuízo não se cogita de nulidade, mesmo em se tratando de nulidade absoluta.’ (GRINOVER, Ada Pellegrini, FERNANDES, Antonio Scarance, GOMES FILHO, Antonio Magalhães. As nulidades no processo penal. 9. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Ed. RT, 2006, p. 31).

Ora, anular-se toda a instrução concretizada, na qual se efetivou o contraditório e a ampla defesa, justamente para, repetir-se o interrogatório ao final, soa a desazo. Retoma-se, neste particular, a lição dos mesmos doutrinadores:

 ‘A exigência de que a atividade processual seja realizada segundo modelos legais sofre temperamentos, ditados sobretudo por razões de economia processual; não apenas no processo, mas em todas as atividades, é sempre desejável obter-se o máximo de resultados com o mínimo de esforço. O princípio da instrumentalidade das formas demanda, por sua vez, que a técnica processual – entendida como mecanismos processuais e formalidades do processo – seja colocada a serviço dos objetivos maiores do processo, cuja finalidade é solucionar a crise verificada no plano do direito material. É o princípio da efetividade do processo – entendido como aptidão para a produção concreta dos resultados que dele se esperam -,constituindo a grande preocupação do processualista moderno, permite que a técnica processual seja flexibilizada de maneira a não colocar entraves inúteis ao atingimento da solução da controvérsia. Essa postura, entretanto, jamais pode indicar o sacrifício da defesa, no processo penal, em que as formalidades devem sempre ser observadas,quando tenha dimensão de garantia’ (Op. cit., p. 35-36).

Desta forma, apura-se que o pleito encontra-se em sintonia com a compreensão firmada por esta Corte.

Ante o exposto, acolhido o parecer ministerial e ratificada a liminar, concede-se a ordem, em menor extensão, para assegurar ao paciente e aos demais corréus o direito de serem interrogados ao cabo da ação penal, como determina a sistemática processual estabelecida pela Lei 11.719⁄08.

É como voto.”

  

N o t a s

 

          A Lei nº 11.719/08 inovou os meios de defesa do acusado, com a Resposta do art. 396 e o estabelecimento do interrogatório como último ato da instrução processual, nos termos do art. 400, ambos do CPP. Essas alterações entraram em vigência em 20.8.08, sessenta dias após a data da publicação da referida lei.

          Houve, assim, a alteração da natureza jurídica do interrogatório. Se, na vigência da lei antiga, o interrogatório era somente um meio de prova, na atual redação ele é um meio de defesa. Sobre isso, pacelli de oliveira destaca que “o fundamental, em uma concepção de processo via da qual o acusado seja um sujeito de direitos, e no contexto de um modelo acusatório, tal como instaurado pelo sistema constitucional das garantias individuais, o interrogatório do acusado encontra-se inserido fundamentalmente no princípio da ampla defesa. Trata-se, efetivamente, de mais uma oportunidade de defesa que se abre ao acusado, de modo a permitir que ele apresente a sua versão dos fatos, sem se ver, porém, constrangido ou obrigado a fazê-lo” (pacelli de oliveira, Eugenio. Curso de Processo Penal. 10. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 326-327).

          É certo que os atos processuais anteriores à vigência da nova lei são, de regra, válidos (caberá à parte demonstrar o contrário). Porém, considerando-se a aplicabilidade imediata da norma no curso do processo, não há dúvidas acerca da indispensabilidade do reinterrogatório, sob pena de violação à ampla defesa e ao contraditório. É que a nova ordem processual penal privilegia o referido ato como um direito fundamental do réu, uma oportunidade otimizada de explicar sua versão dos fatos, ciente, desta feita, de todas as provas que já terão sido produzidas pela acusação. Considerando-se que o interrogatório do art. 400, CPP, é ato inerente ao direito de defesa e, sem dúvidas, uma formalidade (ou melhor, uma garantia) essencial ao processo penal, sua inobservância, por si só, gera nulidade absoluta, em atenção aos arts. 564, III, e, CPP, e 5º, LV, CF.

            Quanto à exigência de se provar o prejuízo, ela não cabe nessa hipótese. Primeiro, porque, como já decidiu o STF, a ofensa aos princípios do contraditório e da ampla defesa causam danos inquestionáveis ao acusado (STF – HC 87926/SP – Pleno – Rel. Min. Cezar Peluso – DJe de 25.4.2008); segundo, porque a oportunidade do réu de se explicar após toda a prova que já foi produzida privilegia, à evidência, as possibilidades de defesa e o contraditório, de modo que a impossibilidade de fazê-lo causa-lhe prejuízo; terceiro, porque, se a defesa postula em segundo grau a realização de reinterrogatório, o réu provavelmente já foi condenado e, nesse caso, a condenação criminal em processo formalmente viciado indica, presumidamente, o dano sofrido, cuja prova é dispensada.

            O Supremo Tribunal Federal já julgou de forma semelhante à decisão em destaque, quando entendeu pela prevalência do novo interrogatório do art. 400, CPP (ao final do processo), sobre o interrogatório previsto no art. 7º da Lei nº 8.038/90 (que, assim como o ato previsto na antiga redação do CPP, é realizado no início do processo). Na decisão, o Ministro relator, Ricardo Lewandowski, dissertou sobre as diferentes naturezas dos atos, enfatizando que o interrogatório ao final da instrução é “mais benéfico à defesa“: “parece-me relevante constatar que, se a nova redação do art. 400 do CPP possibilita ao réu exercer de modo mais eficaz a sua defesa, tal dispositivo legal deve suplantar o estatuído no art. 7º da Lei 8.038/90, em homenagem aos princípios constitucionais aplicáveis à espécie. Ora, possibilitar que o réu seja interrogado ao final da instrução, depois de ouvidas as testemunhas arroladas, bem como após a produção de outras provas, como eventuais perícias, a meu juízo, mostra-se mais benéfico à defesa, na medida em que, no mínimo, conferirá ao acusado a oportunidade para esclarecer divergências e incongruências que, não raramente, afloraram durante a edificação do conjunto probatório. Assim, caso entenda-se que a nova redação do art. 400 do CPP propicia maior eficácia à defesa, penso que deve ser afastado o previsto no art. 7º da Lei 8038/90, no concernente à designação do interrogatório” (STF – 1ª T. – AP 528/DF – Rel. Min. Ricardo Lewandowski – Ainda não publicado, veiculado em notícia de 25.3.11 no site do STF).

            No mesmo sentido, outro julgado, do Superior Tribunal de Justiça: “ante a entrada em vigor da Lei 11.719/2008, responsável, dentre outras mudanças, pela colocação do interrogatório como último ato da instrução, devem permanecer hígidos os atos posteriores ao interrogatório tido por nulo, cabendo ao Magistrado singular tão-somente proceder a nova inquirição do paciente ao final da instrução” (STJ – 6ª T. – HC 120197/PE – Rel. Des. Conv. do TJMG Jane Silva – DJ de 16.2.09. Itálicos nossos). Por fim, vale noticiar que o Tribunal de Justiça do Paraná admite “a realização de novo interrogatório dos réus com o fito de amoldar o rito processual às determinações da Lei nº 11.719/08” (TJPR – HC 05348450-4 – Rel. Des. Ronald Juarez Moro – 4ª C.Crim. – DJ de 23.3.09). 

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