Lesão Corporal Culposa. Serviço médico em Hospital Federal. Competência da Justiça Estadual comum

EMENTA

1. Não demonstrando a denúncia que o delito teria se dado em detrimento da União, não se mostra razoável a interpretação de que o só fato de o réu estar desenvolvendo atividades em hospital federal seria suficiente para atrair a competência da Justiça Federal.

2. Ordem concedida.

(STJ/DJU de 11/09/06)

Decidiu o Superior Tribunal de Justiça, através de sua 6.ª Turma, relator o Ministro Paulo Gallotti, que na hipótese em que o médico presta serviço em Hospital Federal, dando causa a lesão corporal culposa, a competência para o julgamento é da Justiça Estadual Comum, ante a falta de interesse da União.

Consta do voto do Relator:

Senhor Ministro Paulo Gallotti (Relator): A ordem é de ser concedida.

Cuida a hipótese de definir a competência para processar e julgar médico que, exercendo atividade em hospital federal, teria cometido o delito previsto no artigo 121, § 3.º, do Código Penal.

O artigo 109, inciso IV, da Constituição Federal, assim dispõe:

?Aos juízes federais compete processar e julgar:

(…)

IV – os crimes políticos e as infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas publicas, excluídas as contravenções e ressalvada a competência da Justiça Militar e da Justiça Eleitoral?;

Na hipótese, não demonstrando a denúncia que o delito teria se dado em detrimento da União, não se mostra razoável a interpretação de que o só fato de o réu estar desenvolvendo atividades em hospital federal seria suficiente para atrair a competência da Justiça Federal.

O voto exarado pelo Desembargador Luiz Fernando Wowk Penteado, que acabou vencido, elucidou a questão de forma a não deixar, a meu ver, qualquer margem a interpretação diversa, razão pela qual entendo conveniente sua transcrição, no que interessa:

?Pois bem, finalizada a instrução sumária pertinente à via eleita, tenho por inalterados os fundamentos que serviram de lastro à liminar deferida em favor do paciente, porquanto a apuração do pretenso crime de homicídio culposo, praticado pelo mesmo, não se ajusta às hipóteses elencadas no art. 109 da CF/88, que restringem a competência federal, em matéria criminal, nos seguintes termos:

?Aos juízes federais compete processar e julgar:

(…)

IV – os crimes políticos e as infrações penais praticados em detrimento de bens, serviços ou interesses da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas publicas, excluídas as contravenções e ressalvada a competência da Justiça Militar e da Justiça Eleitoral;

V – os crimes previstos em tratado ou convenção internacional, quando, iniciada a execução no País, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente;

VI – os crimes contra a organização do trabalho e, nos casos determinados por lei, contra o sistema financeiro e a ordem econômico-financeira;

IX – os crimes cometidos a bordo de navios ou aeronaves, ressalvada a competência da Justiça Militar;

X – os crimes de ingresso ou permanência irregular de estrangeiro, a execução de carta rogatória, após o exequatur, e de sentença estrangeira após a homologação, as causas referentes à nacionalidade, inclusive a respectiva opção, e à naturalização?.

Por outras palavras, discutindo-se, in casu, a teor da peça acusatória, a lesão perpetrada a particular, coincidente com a morte da nascitura Kevylin Cahuana da Silva, na data de 3/9/2000, em face da eventual imperícia, negligência e/ou imprudência do paciente quanto aos procedimentos médicos que adotou, em 28/7/1999, por ocasião do parto realizado em Leonilda de Fátima da Silva, resta, à evidência, afastado eventual enquadramento no elenco que prevê a competência da Justiça Federal em matéria penal.

Gize-se, ademais, especificamente quanto à previsão contida no inciso IV supra, que o interesse dos aludidos entes públicos capaz de atrair a competência federal deve ser específico e direto, de modo que se, a contrario sensu. este for genérico, remoto, não imediato, a competência será da Justiça Estadual.

Nessa esteira, mostra-se irrelevante para a solução do caso em exame ser de natureza federal o vínculo mantido pela entidade hospitalar à época dos fatos sob investigação se deles não resultou prejuízo direto à União, ao que se acresce a qualidade de servidor estadual do paciente, junto ao referido nosocômio, por ocasião do alegado erro médico (fl. 21).

Em suma, tal como ocorre nos casos onde – em face da cobrança de honorários médicos de segurados do INSS para a realização de procedimentos que estariam cobertos pelo SUS – tem-se por afastada a competência federal pela ausência de prejuízo direto à Autarquia ou a qualquer outro interesse imediato da União, aqui também resta imperativo idêntico tratamento, na medida em que o bem atingido com a conduta delitiva praticada, em tese, pelo paciente não transborda à esfera particular. Assim, não se encontra a presente demanda afeta à Justiça Federal, devendo ser remetido o feito à Justiça do Estado.

Sobre a referida cobrança de honorários médicos a pacientes do SUS, o e. Superior Tribunal de Justiça já se manifestou, por meio da sua 3.ª Seção, conforme segue:

?CRIMINAL. CONFLITO DE COMPETÊNCIA. COBRANÇA, POR MÉDICO, DE VALOR REFERENTE A PROCEDIMENTO CIRÚRGICO. COBERTO PELO SUS. POSICIONAMENTO DA 3.ª SEÇÃO NO SENTIDO DA AUSÊNCIA DE PREJUÍZO A BENS, SERVIÇOS OU INTERESSES DA UNIÃO. RESSALVA DO PONTO DE VISTA PESSOAL. COMPETÊNCIA JUSTIÇA ESTADUAL.

A 3.ª Seção desta Corte afirmou o posicionamento pela competência da Justiça Estadual para a apuração dos delitos de cobrança de valor referente a procedimento cirúrgico, coberto pelo SUS.

Não se cuida de crime afeto à Justiça Federal, porquanto o delito objeto da investigação envolve obtenção de vantagem indevida por parte do agente, em prejuízo do respectivo paciente, sem nenhuma violação aos interesses da Autarquia Previdenciária. Ressalva do ponto de vista pessoal.

Conflito conhecido para declarar a competência do Juízo de Direito de Palestina/SP, o suscitado?.

(CC n. 33.023/SP, Rel. Min. Gilson Dipp, DJU de 23/9/2002, p. 221)

?PENAL. CONFLITO DE COMPETÊNCIA POSITIVO. CONCUSSÃO. MÉDICO CONVENIADO AO SUS. AUSÊNCIA. PREJUÍZO. UNIÃO. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ESTADUAL.

A prática do crime de concussão, mediante a cobrança indevida de honorários médicos a pacientes do SUS, não acarreta prejuízos a bens, serviços e interesses da União, competindo à Justiça Estadual, consoante entendimento predominante nesta Corte, processar e julgar o feito.

Conflito conhecido para declarar a competência do Juízo de Direito de Seberi/RS, o suscitado?.

(CC n. 31.167/RS, ReI. Min. Fernando Gonçalves, DJU de 29/4/2002, p. 159)

No mesmo sentido, os julgados das Turmas Criminais desta Corte:

?PROCESSUAL PENAL. CONCUSSÃO, ART. 316 DO CP. MÉDICO CREDENCIADO PELO SUS. COBRANÇA DE HONORÁRIOS. INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. PROCESSO ANULADO. DECLINADA A COMPETÊNCIA PARA A JUSTIÇA ESTADUAL.

I. Se considerarmos, em tese, que efetivamente ocorreu a solicitação de valores indevidos por parte do réu, o prejuízo daí decorrente afetou, unicamente, o paciente atendido pelo sistema único de saúde, já que o pagamento perpetrado pelo SUS foi perfeitamente lícito.

2. Em não havendo lesão a bens, serviços ou interesse da União, mas tão-somente a interesse particular, deve ser afastada a COMPETÊNCIA da Justiça Federal, nos termos do artigo 109, IV, da Constituição Federal.

3. Competência da Justiça Estadual. Precedentes da 4.ª Seção deste TRF e do E. STJ.

4. Processo anulado. Declinada a COMPETÊNCIA para a Justiça Estadual da Comarca de Montenegro/RS?.

(ACR n.º 2001.04.01.047440-0/RS, 7.ª Turma, Rel. Des. Federal Fábio Rosa, DJU de 28/8/2002, p. 841)

?QUESTÃO DE ORDEM CRIME DE CONCUSSÃO. COBRANÇA DE HONORÁRIOS MÉDICOS. SUS. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ESTADUAL. ANULAÇÃO AB INITIO DO PROCESSO. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE PELA PRESCRIÇÃO. RECONHECIMENTO.

1. Na esteira do recente entendimento firmado por esta Corte, pelo STJ e STF, a prática do crime de concussão, mediante exigência indevida de honorários médicos a pacientes do SUS, não acarreta prejuízos a bens, serviços ou interesse da União, competindo à Justiça Estadual processar e julgar o feito, que em tese (face à inexistência da condição de funcionário público) configura o crime de estelionato (art. 171 do CP).

2. Por economia processual, e considerando ser a prescrição matéria de ordem pública, podendo ser reconhecida em qualquer fase do processo (art. 61/CPP) declara-se extinta a punibilidade de Luís Antônio Parisotto, em face da prescrição in abstracto da pretensão punitiva estatal, nos termos do artigo 109, III c/c 107, IV, ambos do Código Penal?.

(Questão de Ordem na ACR n. 2001.04.01.064400-7/SC, 8.ª Turma, Rel. Des. Federal Élcio Pinheiro de Castro, DJU de 9/10/2002, p. 949)?.

No caso concreto, vê-se que a denúncia originária foi recebida e iniciada a instrução no Juízo Federal que, posteriormente, também recepcionou o aditamento da peça acusatória.

Acerca do tema, o Código de Processo Penal, em seu art. 567, prescreve o seguinte:

?Art. 567. A incompetência do juízo anula somente os atos decisórios, devendo o processo, quando for declarada a nulidade, ser remetido ao juiz competente?.

Assim, concluo pela competência da Justiça Estadual desta Comarca de Porto Alegre para, observados os critérios de distribuição, na forma do respectivo regimento, processar e julgar a Ação Penal n. 2000.71.00001070-8.? (fls. 32/35)

Assim, como exposto acima, não restando comprovado que o delito fora praticado em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, não vejo como deixar de reconhecer a competência da Justiça Estadual para o julgamento da ação penal de que aqui se cuida.

Diante do exposto, concedo a ordem para que o feito seja remetido à Justiça Estadual, anulando-se apenas os atos decisórios até então proferidos na Justiça Federal.

É como voto.

Decisão unânime, votando com o Relator os Ministros Quaglia Barbosa, Nilson Naves e Hamilton Carvalhido.

Ronaldo Botelho é advogado e professor da Escola da Magistratura.