Na recente decisão abaixo, o Min. Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, concedeu liminar em reclamação aforada contra suposta violação ao acórdão da APDF 130/DF (DJ de 6.11.09), sob o fundamento de que, como a Lei de Imprensa não foi recepcionada pela Constituição Federal, não poderia ela ter sido aplicada após a publicação de tal acórdão. Veja-se:

continua após a publicidade

Decisão:  Cuida-se de reclamação, com pedido de medida liminar, ajuizada com fundamento no art. 102 , I, alínea “l”, da Carta Magna contra sentença prolatada nos autos da ação penal n. 1070/06, em curso perante a 2ª Vara Criminal da Comarca de Marília-SP, sob alegada violação ao decidido na ADPF 130/DF, Rel. Min. Ayres Britto, Pleno, DJ 6.11.2009.

Em síntese, o reclamante alega que a sentença reclamada, ao aplicar o art. 41 da Lei n. 5.250/1967 para reconhecer a prescrição da pretensão punitiva e decretar a extinção da punibilidade, afrontou a autoridade do Plenário deste Supremo Tribunal Federal, que entendeu, por decisão com efeitos vinculantes não recepcionada pela Constituição Federal de 1988 a integralidade da Lei de Imprensa.

Passo a decidir.

continua após a publicidade

No caso, a sentença reclamada, datada de 19.1.2011, restou  fundamentada nos seguintes termos:

“E, no caso concreto, o exame do mérito da ação penal se encontra prejudicado, porquanto se operou a prescrição da pretensão punitiva estatal.

continua após a publicidade

Com efeito, a demanda foi aforada com base na Lei de Imprensa, imputando-se ao querelado a prática dos crimes de calúnia, injúria e difamação, de modo que o instituto jurídico da prescrição deve ser analisado à luz daquela legislação, a despeito do STF tê-la declarado inconstitucional.

Pois bem.

Dispõe o art. 41 da Lei n. 5.250/67 que ‘A prescrição da ação penal, nos crimes definidos nesta Lei, ocorrerá em 2 (dois) anos após a data da publicação ou transmissão incriminada, e a condenação, no dobro do prazo em que for fixada’.

A prescrição tem natureza penal, o que implica, quanto ao tema, a vedação de analogia, de interpretação extensiva e de retroatividade prejudicial ao acusado.

Desse modo e considerando o princípio da aplicação da lei penal mais favorável ao acusado, tem-se que a declaração de inconstitucionalidade da Lei de Imprensa não afasta a aplicação do prazo prescricional de dois anos nela prevista. Acaso fosse aplicável o prazo prescricional previsto no Código Penal, haveria um agravamento da situação do réu, o que não seria possível.

No presente caso, a matéria jornalística tida como ofensiva foi veiculada em 14/05/2006. A queixa crime foi recebida em 10/04/2007 (fl. 312), interrompendo-se o prazo prescricional a que alude o dispositivo legal supra mencionado.

Não houve nenhuma causa que pudesse interromper a prescrição.

Assim, como de lá para cá já transcorreu prazo superior a 03 (três) anos e 09 (nove) meses, de modo que se mostra inexorável o reconhecimento da prescrição, sendo despiciendo prosseguir na apreciação das demais teses suscitadas.” (fls. 68-69 Documento 4)

Dessa forma, claramente a sentença reclamada aplicou dispositivos da Lei de Imprensa a fatos ocorridos em 2006 apesar da decisão desta Corte no sentido de “declarar como não recepcionada pela Constituição de 1988 todo o conjunto de dispositivos da Lei Federal n. 5.250, de 9 de fevereiro de 1967” (ADPF 130/DF, Rel. Min. Ayres Britto, Pleno, DJ 6.11.2009.

Presente, portanto, o indispensável fumus boni juris.

De outra sorte, verifica-se também a existência do periculum in mora, uma vez que a manutenção da sentença reclamada pode ocasionar a efetiva prescrição da ação penal, considerados também os dispositivos legais do Código Penal.

Ante o exposto, defiro o pedido liminar para cassar a sentença prolatada nos autos da ação penal n. 1070/06, em curso perante a 2.ª Vara Criminal da Comarca de Marília-SP, para que outra seja proferida em seu lugar, sem a aplicação de quaisquer dispositivos da Lei 5.250/1967. 

Solicitem-se informações ao Juízo da 2.ª Vara Criminal da Comarca de Marília-SP.

Após, abra-se vista ao Procurador-Geral da República.

Comunique-se com urgência.

Publique-se.

Brasília, 3 de março de 2011.

 Ministro Gilmar Mendes

Relator

Documento assinado digitalmente

(STF – Rcl 11305 – Rel. Min. Gilmar Mendes – Decisão monocrática – DJe de 10.3.11. No mesmo sentido: STF – Rcl 11376 – Rel. Min. Gilmar Mendes – Decisão monocrática – DJe de 10.3.11

Mas será adequado o entendimento segundo o qual a declaração de inconstitucionalidade da Lei n.º 5.250/67 tem efeitos retroativos (ex tunc)? Se é certo que, juridicamente, a Lei de Imprensa não foi recepcionada pela Constituição de 1988, não menos correto é que, no mundo dos fatos e do Direito ela surtiu efeitos enquanto vigente, porque pessoas foram processadas, condenadas e cumpriram pena segundo os preceitos penais por ela estabelecidos (tempus regit actum). Os supostos efeitos retroativos oriundos da declaração de inconstitucionalidade pelo STF não modificam o passado ou o estado das coisas pertinentes à realidade concreta, daí porque, tendo-se presente que, por determinado período, o diploma efetivamente vigeu e que a conduta em questão teria sido perpetrada neste interregno, não parece justo que uma decisão judicial posterior afete o réu para prejudicá-lo. A insegurança jurídica é de ser considerada, caso contrário, milhares de pessoas que foram condenadas com base na Lei de Imprensa, em ações de natureza civil ou criminal, sentir-se-ão prejudicadas e no direito de receber indenizações por penas cumpridas e determinadas pela aplicação de lei inconstitucional. Isso geraria um desgaste institucional ao Poder Judiciário e grande prejuízo ao Estado.

No momento em que teria sido praticado o fato punível em tese, a ordem jurídica era uma e reprovava o comportamento com determinada intensidade. Se, depois, a ordem jurídica foi modificada (por decisão judicial), não poderia retroagir para punir ainda mais o jurisdicionado, sob pena de violência à fórmula imperativa e incondicional consagrada no art. 5.º, XL, CF, e no art. 2.º, CP. Que se admita a excepcionalidade ou temporariedade da Lei de Imprensa; mas que não se negue os reflexos dela na realidade concreta, mesmo após a Constituição de 1988. Ou seja, ela deve ser considerada ultrativa no ponto em que favorecer o réu que for julgado por fato praticado em sua vigência.

A ultratividade da lei mais benéfica tem o objetivo de vê-la aplicada ao caso concreto, como se ainda estivesse vigendo. O primeiro artigo da Carta Política Federal proclama que a República Federativa do Brasil “constitui-se em Estado Democrático de Direito“, o que pressupõe um modo humano e sistemático de pensar o ordenamento. O ato anterior praticado, supostamente lesivo de um bem ou de um valor tutelado juridicamente na Lei de Imprensa – vigente na época do suposto fato – não pode vir a ser considerado merecedor de apenamento maior por aplicação do Código Penal em decorrência da alteração da ordem jurídica, porque a ação não merecia, àquele tempo, a proteção penal que hoje se quer ver presente. A lei que vigia na época do fato é a lei válida, máxime quando suas disposições são mais favoráveis ao réu do que as do Código Penal. O STJ, nos autos do RHC 3337/SP, Rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, 6.ªT., DJ de 31.10.1994, já decidiu algo semelhante.

 

Gustavo Britta Scandelari é advogado, mestre em Direito do Estado pela UFPR.

gustavo@dotti.adv.br