Júri. Ampla defesa. Teses contraditórias. Admissibilidade.

“HABEAS CORPUS N.º 20.801-SC

REL.: MIN. VICENTE LEAL

EMENTA – Em sede de Tribunal do Júri, em que tem relevo o primado da ampla defesa (CF, art. 50, XXXVIII), a) ao defensor é assegurada a faculdade de apresentar as teses, que entenda mais favoráveis ao réu mesmo que incompatíveis entre si.

– Embora expressivo o rol de atribuições conferidas ao presidente do Tribunal do Júri, nos termos do art. 497, do Código de Processo Penal, não lhe cabe manifestar opinião acerca de eventual incompatibilidade de teses defensivas, sob pena de ocorrer indevida influência na decisão a ser tomada pelos jurados.

– Nos termos do art. 479, do CPP, a explicação do significado legal dos quesitos deverá ser efetuada na presença do público, antes de ingresso na sala secreta, podendo, todavia, ser aí feita alguma explicação jurídica.

Habeas-corpus concedido.”

(STJ/DJU de 02/12/02, pág. 372)

Durante o julgamento pelo júri, a defesa argüiu as teses da excludente da legítima defesa e do homicídio culposo. Quando o defensor falava sobre o homicídio culposo, veio a ser aparteado pelo juiz presidente que lhe solicitou explicações sobre essa tese e afirmou que não iria formular quesitos a seu respeito porque contraditaria com a tese da legítima defesa.

Considerou o Superior Tribunal de Justiça, através de sua Sexta Turma, relator o ministro Vicente Leal, que a intervenção do doutor juiz foi indevida e pode ter exercido influência na decisão tomada pelos jurados, além do que, em sede de Tribunal do Júri, onde tem relevo o primado da ampla defesa, pode o defensor apresentar as teses que entender convenientes, ainda que incompatíveis entre si.

Consta do voto do relator:

O Exm.º Sr. Ministro VICENTE LEAL (Relator):

Auscultando-se o contexto da pretensão deduzida à luz dos julgamentos impugnados, é de se reconhecer que a impetração merece ser deferida.

Ressalte-se, por primeiro, que em sede do Tribunal do Júri, em que tem relevo o primado da ampla defesa (CF, art. 5.º, XXXVIII, a), ao defensor é assegurada a faculdade de apresentar as teses que entenda mais favoráveis ao réu, mesmo que incompatíveis entre si.

A propósito, veja-se o que bem afirma Júlio Fabbrini Mirabete em seu Código de Processo Penal Interpretado, verbis:

“… fundada a defesa em duas teses distintas, de caráter alternativo, no chamado princípio da eventualidade, ainda que inconciliáveis ou discutíveis, deve o conselho de sentença ser questionado sobre ambas e, se repelida a primeira, indagar-se sobre a segunda. (…)” (Mirabete, Julio Fabbrini. Código de Processo Penal Interpretado, São Paulo, Atlas, 2001, p. 1038)

Ainda naquela obra, o ilustre doutrinador apresenta julgados acerca do exercício da ampla defesa no Tribunal do Júri, mesmo que mediante a utilização de testes contraditórias pelo defensor, senão vejamos, verbis:

“(…) TJSP: `Permite-se a defesa contraditória perante o júri, como as teses antagônicas de negativa de autoria e legítima defesa putativa, desde que formuladas alternativamente, pede aplicação do princípio da liberdade de ampla defesa’ (RT 618/295). TJRS: `Júri. Quesitos. Embora contraditórias as teses da defesa, negativa de autoria, legítima defesa própria e desclassificação para lesão corporal seguida de morte, é possível tal conduta diante da ampla defesa. Condenado o réu pela não aceitação da legítima defesa, é nulo o julgamento por não ter votado a tese desclassificatória da lesão corporal seguida de morte’ (RJTJERGS 150/231-2)…” (…) (Mirabete, Julio Fabbrini. Código de Processo Penal Interpretado, São Paulo, Atlas, 2001, p. 1039)

Ademais, apesar das atribuições que lhe confere o artigo 497 do Código de Processo Penal, não cabe ao juiz presidente do Tribunal do Júri manifestar opinião acerca de eventual incompatibilidade entre as teses apresentadas pelo defensor, sob pena de, assim agindo, exercer indevida influência na decisão a ser tomada pelos jurados.

Tenho, na espécie, que merece ser prestigiado o voto dissidente do ilustre desembargador Maurílio Moreira Leite, do qual destaco o seguinte excerto, verbis:

“Dissenti da maioria por entender que, no caso sub studio, há considerável carga de razão no apelo da defesa que, de seu turno, requereu a anulação do julgamento, em função de ter ocorrido interferências, por parte do magistrado presidente, quando da exposição das teses defensivas em plenário, bem como explicações dadas aos jurados acerca das modalidades de culpa, quando da aplicação dos quesitos.

As decisões do Tribunal do Júri são soberanas e, por mais que o magistrado não concorde com a tese defensiva, por absurda, não poderá ele, por nenhuma forma, tentar direcionar a visão dos votantes. Ainda que não houvesse o menor cabimento da tese de homicídio culposo, a defesa tem direito, se assim lhe aprouver, de sustentá-la.” (fls. 22)

É o que bem ressalta o ilustre subprocurador-geral da República em seu parecer, verbis:

“Os dois vícios, apresentados na impetração, direcionam no sentido de anulação do julgamento pelo Tribunal do Júri.

Está registrado, na ata de sessão de julgamento do Tribunal Popular, que a defesa pediu para consignar dois protestos.

O primeiro se deu por ocasião da sustentação oral, no plenário, porque o presidente do Tribunal do Júri interrompeu a defesa, para que explicasse a tese de homicídio culposo, eis que estava sendo argüida legítima defesa, sob pena de não formular quesitação.

Podia assim proceder o Juízo? Tenho para mim que não.

No momento em que a defesa está a expor a tese ou as teses da defensoria, não é aceitável que o juiz-presidente do Tribunal Popular interfira, para dizer que a tese deveria ser explicitada.

Evicente que essa intromissão é indevida, inoportuna e cerceadora do direito de defesa.

A defesa, no júri popular, se dirige a julgadores leigos, que decidirão muito menos com a norma, muito mais, com suas próprias consciências e experiências vividas ou sentidas.

O mesmo se diga da segunda nulidade.

Diante de manifestação do juiz togado, por ocasião da sustentação oral da defesa, é óbvio que sua intromissão foi, também, inoportuna e ilegítima, na sala secreta.

O magistrado já houvera manifestado sua discordância com a possibilidade de simultaneidade das teses do homicídio culposo e legítima defesa.

A ata da sessão do julgamento registra:

“Pelo juiz resta consignado que a tese só foi alegada, em plenário e necessitou explicar aos jurados, através de exemplos, o que estavam votando. Justificou ainda o juiz perante os jurados e o defensor que não entendeu a defesa da tese do homicídio culposo, que é contraditória com a legítima defesa, sendo que a quesitação ocorreu por forças da disposição legal e interpretação jurisprudencial’ (fls. 18).

Está claro, pois, que o juiz-presidente externou seu entendimento pessoal, prejudicando a defesa, ao entender incompatibilidade entre a tese da legítima defesa e a de homicídio culposo.

Claro que esse posicionamento atingiu a livre manifestação do corpo de jurados, formado de pessoas desprovidas deconhecimento jurídico.

O artigo 497, do CPP, explicita as atribuições do presidente do Tribunal do Júri e, aí, não se vislumbra qualquer uma que lhe permita interferir, pessoalmente, nas teses defensivas.” (fls. 67/68)

Quanto ao alegado desrespeito ao art. 479, do CPP, porque a explicação dos quesitos ocorreu na sala secreta, tenho que, a despeito do citado preceito, que prevê a realização deste ano perante o público, tem-se admitido que se faça explicação aos jurados na sala secreta.

Tenho, de qualquer modo, que o julgamento em tela restou viciado, com grave prejuízo para a defesa.

Isto posto, concedo o habeas-corpus para, cassando o acórdão proferido pelo Tribunal a quo, reconhecer a nulidade do julgamento efetuado pelo júri, determinando seja o réu submetido a novo julgamento pelo Conselho de Sentença.

É o voto.

Decisão unânime, votando com o relator os ministros Fernando Gonçalves, Hamilton Carvalhido e Fontes de Alencar.

 

Civil. Seguro saúde. Tratamento de Aids. Cláusula de exclusão. Nulidade.

“RECURSO ESPECIAL N.º 333.169-SP

REL.: MIN. ALDIR PASSARINHO JÚNIOR.

EMENTA: I. No âmbito do Superior Tribunal de Justiça está firmado o entendimento de que a cláusula de exclusão de tratamento de Aids é nula, por abusiva, e mais ainda quando sequer atendeu ao requisito no art. 54, parágrafo 4.º, do CDC, de ser redigida com destaque, de modo a permitir ao segurado a sua devida compreensão.

II. Recurso especial não conhecido.”

(STJ/DJU de 25/11/02, pág. 238)

Após alguma controvérsia, pacificou-se no Superior Tribunal de Justiça o entendimento de que a inserção no contrato de seguro saúde de cláusula restritiva à cobertura de Aids é nula, por abusividade. Cláusula, outrossim, não redigida com o destaque exigido pelo art. 54, parágrafo 4.º do CDC.

É o que se vê do presente acórdão da Quarta Turma, relator o ministro Aldir Passarinho Júnior, com o seguinte voto condutor:

Exmo. sr. ministro Aldir Passarinho Júnior (relator): – Trata-se de recurso especial, aviado pela letra “a” do autorizador constitucional, em que é apontada violação aos artigos 535, II, e 333, I, do CPC, bem como negativa de vigência aos artigos 1.432, 1.434 e 1.460, do Código Civil, ao argumento de que há omissão quanto ao ônus da prova e que era legítima a limitação de cobertura prevista na apólice de seguro, no caso, em relação à Sindrome de Imuno-Deficiência Adquirida (Aids), de sorte que não poderia ser imputado à companhia seguradora recorrente o ônus da indenização correspondente ao tratamento.

Os pressupostos recursais se acham configurados.

Preliminarmente, não conheço do recurso quanto à assertiva de omissão do acórdão estadual. O tribunal de origem dirimiu a controvérsia respondendo a todos os tópicos suscitados, e com base nas provas carreadas pelas partes, sendo incabível a oposição de embargos declaratórios para rediscussão meritória. Neste sentido: REsp n.º 184.914-SC, rel. min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, unânime, DJ de 24.04.2000.

Quanto ao mérito, não assiste razão à recorrente.

Após alguma controvérsia, pacificou-se no STJ o entendimento de que a inserção de cláusula restritiva à cobertura de Aids se revela nula, por abusividade, além do que teria de ser redigida com destaque, de modo a deixar absolutamente expressa a vedação e devidamente esclarecido o consumidor a respeito, nos termos do art. 54, parágrafo 4.º do CDC, o que na espécie não foi observado, como assinala o acórdão estadual à fl. 341.

Nesse sentido são os seguintes precedentes, litteris:

“Seguro saúde. Cláusula limitativa. Art. 54, §§ 3.º e 4.º, do Código de Defesa do Consumidor.

1. Nos contratos de adesão as “cláusulas que implicarem limitação de direito do consumidor deverão ser redigidas com destaque, permitindo sua imediata e fácil compreensão”. Se assim não está redigida a cláusula limitativa, não tem força para alcançar o consumidor, presente flagrante violação, que merece reconhecida.

2. Recurso especial conhecido e provido.”

(3.ª Turma, REsp n.º 255.064/SP, rel. min. Carlos Alberto Menezes Direito, unânime, DJU de 04.06.2001).

“Processual Civil. Recurso adesivo. Plano de saúde. Cláusula de exclusão. Portador do vírus da Aids. Aplicação da Súmula 182 desta Corte.

I – Interposto o recurso autônomo, tido por deserto, descabe o recurso adesivo. Precedentes.

II – A cláusula de contrato de seguro-saúde excludente de tratamento de doenças infecto-contagiosas, caso da Aids, não tem qualquer validade porque abusiva.

III – Agravo regimental não conhecido.”

(3.ª Turma, REsp. 251.722/SP, rel. min. Antônio de Pádua Ribeiro, unânime, DJU de 04.06.2001).

Ao apreciar a matéria, no julgamento do RESp n.º 258.007/SP, assim me pronunciei:

“Civil e processual. Recurso especial. Preparo. Insuficiência. Complementação. Possibilidade. Deserção afastada. Seguro saúde. Tratamento de Aids. Cláusula restritiva. Abusividade. Falta de destaque. CDC, art. 54, § 4.º.

1. Não se configura a deserção do recurso se as custas foram recolhidas em parte, possível a sua complementação a posteriori.

Precedentes.

II. No âmbito do Superior Tribunal de Justiça está firmado o entendimento de que a cláusula de exclusão de tratamento de Aids é nula, por abusiva, e mais ainda quando sequer atendeu ao requisito no art. 54, parágrafo 4.º, do CDC, de ser redigida com destaque, de modo a permitir ao segurado a sua devida compreensão.

III. Recurso especial não conhecido.”

(Unânime, julgado em 17.09.2002.)

Ante o exposto, não conheço do recurso especial.

É como voto.

Decisão unânime, votando com o relator os ministros César Asfor Rocha e Ruy Rosado de Aguiar.

Ronaldo Botelho

é advogado criminalista e professor da Escola da Magistratura.