Inqu

Ato penalmente relevante. Lesividade teórica. Indeferimento. Inexistência de fatos capazes de justificar o registro. Constrangimento ilegal caracterizado.

HABEAS CORPUS N.º 85.541-5-GO
Rel.: Min. Cezar Peluso
EMENTA

Não havendo elementos que o justifiquem, constitui constrangimento ilegal o ato de indiciamento em inquérito policial.
(STF/DJU de 22/8/08)

O Supremo Tribunal Federal decidiu pela sua Segunda Turma, Relator o Ministro Cézar Peluso, que o indiciamento em inquérito policial, indevidamente, constitui constrangimento ilegal. Deferiu, então, “habeas corpus”, para suspender o indiciamento, sem prejuízo do prosseguimento das investigações.

Consta do Voto do Relator:

O Senhor Ministro Cezar Peluso – (Relator): 1. Cuida- se de writ impetrado contra ato do Min. Relatar da Ação Penal n.º 431, que não apreciou o pedido de exclusão da paciente da condição de indiciada nos autos do inquérito.
Deferi o pedido liminar sob os seguintes fundamentos:
“(…)
2. É caso de liminar.
As informações de fls. 219 dão conta de que a paciente não foi formalmente indiciada.
Às fls. 220, o Min. Francisco Falcão afirma que aguarda manifestação do Min. Fernando Gonçalves acerca de possível prevenção, para decidir a respeito do pedido de exclusão, ao nome da paciente, da qualidade de indiciada.
Neste pontoo, assiste razão à impetrante.

Sylvia Helena F. Steiner observa que: ‘o indiciamento fomal tem conseqüências que vão muito além do eventual abalo moral que pudessem vir a sofrer os investigados, eis que estes terão o registro do indiciamento nos Institutos de Identificação, tornando assim público o ato de investigação. Sempre com a devida vênia, não nos parece que a inserção de ocorrências nas folhas de antecedentes comumente solicitadas para a prática dos mais diversos atos da vida civil seja fato irrelevante. E o chamado abalo moral diz, à evidência, com o ferimento à dignidade daquele que, a partir do indiciamento, está sujeito à publicidade do ato’.

Que da qualidade de indiciada podem advir prejuízos à paciente, isso colhe-se ao que vem considerando esta Corte mesma:
‘PACIENTE CONDENADO PELA PRÁTICA DE CRIME DE ESTELIONATO. PENA-BASE FIXADA ACIMA DO MÍNIIMO LEGAL. CUMPRIMENTO DO REGIME SEMI-ABERTO. Incensurável a dosimetria da pena, tendo em vista tratar- se de paciente com antecedentes desabonadores, consistentes em indiciamento em outro inquérito policial instaurado para apuração de crime da mesma natureza (contra o patrimônio). Assentada, no Supremo Tribunal Federal, orientação segundo a qual a inexistência de estabelecimento adequado, por não configurar nenhuma das hipóteses taxativamente previstas no art. 117 da LEP, não justifica a concessão de prisão-albergue domiciliar (RTJ 142/164 – Ministro Celso de Mello), Habeas corpus indeferido’ (HC n.º 72.463, Rel. Min. ILMAR GALVÃO. Grifei)

‘Nem todo envolvido em inquérito policial é indiciado’, ensina MARTA SAAD, ‘visto que esta é a pessoa sobre quem se reuniram indícios, que são meios de prova: “indício é todo rastro, vestígio, sinal e, em geral, todo fato conhecido devidamente provido, suscetível de conduzir ao conhecimento de um fato desconhecido, a ele relacionado, por meio de um raciocínio indutivo-dedutivo’.

Sendo o ato pelo qual o suspeito passa à categoria jurídica, deve ocorrer tão logo se reúnam os indícios, ou outros elementos de convicção, que incriminem o suspeito como praticante de ato ilícito e típico”, “o indiciamento deve ser visto como um marco, a partir do qual uma série de deveres e direitos pode, e deve, ser exercida. Tal como explica Fábio Konder Comparato, ao tratar das comissões parlamentares de inquérito, o indiciamento exerce função de garantia das liberdades individuais, uma vês que, por meio dele, o antigo suspeito toma conhecimento oficial teor do inquérito, além do que as medidas assecuratórias, tais como o seqüestro de bens adquiridos como produto da infração, exigem, para sua decretação, prévio indiciamento em suma, o Poder Judiciário e, com maioria de razão, a autoridade policial não podem exercer nenhuma coerção, para efeito de investigação ou prova, antes do formal indiciamento ou da aceitação de denúncia ou queixa crime contra pessoa determinada. Um constrangimento dessa natureza representaria, daramente, violência ou abuso de poder, contra o qual o paciente teria habeas corpus’.

Daí, atribuí-se ao indiciamento importância fundamental como condição para o exercício do direito de defesa na fase investigatória: ‘À vista do que já foi dito, tem-se no indiciamento o momento procedimental ideal a partir do qual se deve, necessariamente, garantir a oportunidade ou ensejo ao exercício do direito de defesa, dado que o juízo que encerra é o de ser o sujeito o provável autor do delito, O indiciado tem interesse em demonstrar que não deve ser denunciado em juízo’.
Em artigo de leitura obrigatória, o saudoso SÉRGIO MARCOS DE MORAES PITOMBO assevera:

‘Mais que pressupõe, o indiciamento necessita, em conseqüência, de suporte fático positivo da culpa penal, lato sensu. Contém uma proposição, no sentido de guardar função declarativa de autoria provável. Suscetível, é certo, de avaliar-se, depois, como verdadeira, ou logicamente falsa. Consiste, pois, em rascunho de eventual acusação; do mesmo modo que as denúncias e queixas também se manifestam quais esboços da sentença penal’.

Nesse mesmo sentido, veja-se a decisão do Min. CELSO DE MELLO, no INQ n.º 2.041: ‘O indiciamento de alguém, por suposta prática delituosa, somente se justificará, se e quando houver indícios mínimos, que, apoiados em base empírica idônea, possibilitem atribuir-se, ao n1ero suspeito, a autoria do fato criminoso. Se é inquestionável que o ato de indiciamento não pressupõe a necessária existência de um juízo de certeza quanto à autoria do fato delituoso, não é menos exato que esse ato formal, de competência exclusiva da autoridade policial, há de resultar, para legitimar-se, de um mínimo probatório que tome possível reconhecer que determinada pessoa teria praticado o ilícito penal. O indiciamento não pode, nem deve, constituir um ato de arbítrio do Estado, especialmente se se considerarem as graves implicações morais e jurídicas que derivam da formal adoção, no âmbito da investigação penal, dessa medida de Polícia Judiciária, qualquer que seja a condição social ou funcional do suspeito. Doutrina. Jurisprudência’ (DJU de 6/10/2003, Informativo n.º 323).

3. Isto posto, defiro a liminar, determinando que a paciente não conste como indiciada nos autos do Inquérito n.º 431 do Superior Tribunal de Justiça, até que sobrevenha, eventualmente, seu formal indiciamento.” (fls. 222-225) Manifestou-se com acerto, quanto ao pedido de exclusão da paciente como indiciada nos autos da AP n.º 431, a PGR, nestes termos:
“[…] A ordem comporta parcial deferimento.

A paciente, juíza federal aposentada e advogada, está sendo investigada perante o Col. Superior Tribunal de Justiça nos autos do Inquérito n.º 431, formados a partir de cópias de interceptações de conversas telefônicas autorizadas pelo Juízo Federal da 5.ª Vara da Seção Judiciária de Goiás, que visa apurar o envolvimento de membros do Poder Judiciário na venda de decisões judiciais a traficantes internacionais.

De fato, conforme informação da autoridade coatora, a paciente não foi formalmente indiciada nos autos do inquérito acima citado, inexistindo razões para que seu nome figure na qualidade de indiciada.

Quanto aos demais pedidos, foi pela indeferimento: “[…] No tocante ao pleito de trancamento de inquérito policial, segundo a jurisprudência dominante da Cone Superior de Justiça, o seu acolhimento em sede de habeas corpus, somente se viabiliza quando se constatar de pronto, sem um exame detalhado da prova, a atipicidade da conduta, bem como a existência de alguma causa extintiva da punibilidade, ou a inexistência de indícios de autoria.

No caso dos autos, não há elementos que permitam aferir de plano a atipicidade da conduta. Ao contrário, os elementos informativos demonstram a existência de fato supostamente criminoso que encontra subsunção típica no Código Penal, consistente no envolvimento da paciente e diversas autoridades no esquema de venda de pronunciamentos jurisdicionais favoráveis a integrantes da organização criminosa chefiada pelo narcotraficante Leonardo Dias Mendonça.

Não se tratando de hipótese de atipicidade da conduta, perceptível primo ictu oculi, o juízo sobre ausência de justa causa exige revolvimento e valoração fática, incomportável na via estreita do habeas corpus.

Outrossim, em referência à imprestabilidade da prova produzida com a quebra de sigilo telefônico, determinada por juiz que, posteriormente, que declarou incompetente para o feito, sem razão, de igual modo, o impetrante.

Como é cediço, a eventual declinação de competência realizada em um momento processual não tem o condão de por si só invalidar a prova colhida.

A questão, aliás, alinha-se ao decidido, mutais mutandis, por esse Egrégio Pretório em caso similar, consoante se verifica da ementa a seguir transcrita:

I. PRISÃO PREVENTIVA: ALEGAÇÃO DE INCOMPETÊNCIA DO JUIZ: SUPERAÇÃO.
(…)
lI. QUADRILHA: DENÚNCIA IDÔNEA
(…)
III. DENÚNCIA: INÉPCIA
(…)
IV. INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA: EXIGÊNCIA DE AUTORIZAÇÃ DO JUIZ COMPETENTE DA AÇÃO PRINCIPAL (1.9296/96, ART. 1.º): INTELIGÊNCIA

1. Se se cuida de obter a autorização para a interceptação telefônica no curso de processo penal, não suscita dúvidas a regra de competência do art. 1.º da L. 9296/96: só ao juiz da ação penal condenatória – e que dirige toda a instrução -, caberá deferir a medida cautelar incidente.

2. Quando, no entanto, a interceptação telefônica constituir medida cautelar preventiva, ainda no curso das investigações criminais, a mesma norma de competência há de ser entendida e aplicada com temperamentos, para não resultar em absurdos patentes: aí, o ponto de partida à determinação da competência para a ordem judicial de interceptação – não podendo ser o fato imputado, que só a denúncia, eventual e futura, precisará -, haverá de ser o fato suspeitado, objeto dos procedimentos investigatórios em curso.

3. Não induz à ilicitude da prova resultante da interceptação telefônica que a autorização provenha de Juiz Federal -aparentemente competente, à vista do objeto das investigações policiais em curso, ao tempo da decisão – que, posteriormente, se haja declarado incompetente, à vista do andamento delas.’ (HC 81260/ES, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Tribunal Pleno, DJU 19/4/2002, pp- 00048)

Ademais, a quebra do sigilo telefônico foi realizada no aparelho pertencente a Igor Santos Silveira que não detinha foro privativo em razão da função por ele exercida. Assim, o fato de, em determinado momento da investigação, os autos terem sido remetidos ao Supremo Tribunal Federal, em razão da prerrogativa de foro de pessoas nela envolvidas, não retira a competência da autoridade judiciária de primeiro grau do Estado de Goiás para a autorização da medida em questão, não havendo que se falar em ilicitude da prova determinada e colhida na fase pré processual.
Ante o exposto, opinamos pelo deferimento do mandamus apenas para excluir, por ora, o nome da paciente como indiciada no inquérito policial n.º 431.” (fls. 246-249).
2. Assim, concedo, parcialmente, a ordem, para determinar a exclusão da paciente da condição de indiciada nos autos da AP n.º 431.
Expeçam-se as comunicações necessárias.
Decisão unânime, votando com o Relator os Ministros Joaquim Barbosa e Eros Grau.

Ronaldo Botelho é advogado e professor da Escola da Magistratura.