Homicídio qualificado e dolo eventual. Caso de compatibilidade

EMENTA

1.São compatíveis, em princípio, o dolo eventual e as qualificadoras do homicídio. É penalmente aceitável que, por motivo torpe, fútil, etc., assuma-se o risco de produzir o resultado.

2.A valoração dos motivos é feita objetivamente; de igual sorte, os meios e os modos. Portanto estão motivos, meios e modos cobertos também pelo dolo eventual.

3.Inexistência, na hipótese, de antinomia entre o dolo eventual e as qualificadoras do motivo torpe e de recurso que dificultou a defesa das vítimas.

4.No caso, entretanto, ausente está, segundo os elementos dos autos, a qualificadora do inciso IV.

5.Intimação pessoal e excesso de linguagem questões suscitadas, mas sem procedência.

6.Habeas corpus deferido em parte, a fim de que se exclua do processo a qualificadora do inciso IV do § 2.º do art. 121 do Cód. Penal.

(STJ/DJU de 25/6/07)

Em sentido contrário de outros julgados do Supremo Tribunal Federal e do próprio Superior Tribunal de Justiça, decidiu a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, Relator o Ministro Nilson Naves que as qualificadoras do motivo torpe e do recurso que dificultou a defesa da vítima podem guardar compatibilidade com o dolo eventual.

Decisão unânime, votando com o Relator os Ministros Hamilton Carvalhido, Paulo Galloti e Maria Thereza de Assis Moura. Ausente, justificadamente, o Ministro Paulo Medina.

Consta do voto do Relator:

O Exmo. Sr. Ministro Nilson Naves (Relator): Sem sentido a alegação de que era necessário se intimasse pessoalmente o réu ainda que o acórdão do recurso em sentido estrito tenha alterado a pronúncia: de um lado, porque a intimação pessoal que se requer é a da sentença de pronúncia do local dos acontecimentos, unicamente, à vista do art. 414 do Cód. de Pr. Penal isso porque assim se abrem oportunidades de recurso a tribunal de segundo grau ; de outro lado, porque o presente habeas corpus está fazendo as vezes de eventual recurso de natureza extraordinária.

Também não me parece de maior fôlego o pretextado excesso de linguagem, a cujo propósito escreveu a Subprocuradora-Geral Delza Curvello:

?11.Demais disso, o impetrante não logrou êxito em comprovar a tese de excesso de linguagem na sentença de pronúncia, podendo-se afirmar, in casu, que a mesma encontra-se suficientemente fundamentada, dada a peculiaridade dos fatos típicos que devem ser levados à apreciação do Conselho de Sentença. Acrescenta-se, ainda, que referidas condutas se desenvolveram em contexto diverso do que habitualmente levaria à consumação de um crime de homicídio simples ou qualificado, motivo que por si só demandaria uma maior atenção do MM. Juiz em demonstrar diligência em seu exercício jurisdicional.

12.Por fim, acrescenta-se que caberia ao impetrante apontar onde estariam as supostas irregularidades na sentença de pronúncia, sendo que tais defeitos não foram sequer cogitados quando da interposição do recurso em sentido estrito por parte da defesa, que se limitou a requerer que…?

Estando eu de acordo com o parecer, não creio, pretendendo o impetrante fazer-nos crer, tenha o acórdão de origem reconhecido o excesso ao assim se expressar o seu Relator nesta passagem:

?Faço aqui uma pausa para ponderar, com a devida vênia, que talvez não devesse a douta Juíza lançar mão no r. decisório de afirmação tão categórica acerca do elemento subjetivo que moveu a conduta do acusado, em se tratando de fase ainda pronuncial, que se volta singelamente, repita-se, para a admissibilidade da tese da acusação. Todavia, eventual excesso de linguagem, ainda que presente, não invalida a r. decisão, na medida em que a conclusão seria, de qualquer modo, a de sujeição do réu ao veredicto popular.?

Tratou-se de simples observação, até porque, como se viu, a questão não fora, tipicamente, suscitada pela defesa, e de observação sem caráter decisório, obviamente. Seja lá como for, a sentença de pronúncia, se se entender que contém algumas palavras a mais, não é nula, pois o mais que ela eventualmente contenha não lhe retira, a meu ver, eficácia e validade, tal como não nos fez ver o parecer ministerial.

O fundamento de maior fôlego diz respeito às qualificadoras, em resumo, de acordo com o impetrante:

?A incompatibilidade científica da coexistência do dolo eventual com as qualificadoras, já proclamada pelo Supremo Tribunal Federal, faz com que a decisão do TJDF seja considerada nula de pleno direito, ferindo direitos inalienáveis do paciente, que não pode ser pronunciado e submetido ao júri por qualificadora carente de tipicidade.

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No caso em comento discute-se a presença de duas qualificadoras, o recurso que dificultou ou impossibilitou a defesa da vítima e a torpeza. Entende o impetrante que as qualificadoras são totalmente incompatíveis com o dolo eventual.?

Com efeito, foram imputadas ao denunciado ora paciente duas qualificadoras, tendo o Promotor, em sua denúncia, escrito o seguinte neste excerto:

?Suas condutas evidenciam que ele, por causa do fim pretendido a vantagem financeira, o lucro incondicional e desproporcional às lesões provocadas aos bens supremos de suas pacientes, a cupidez em resumo não apenas se conformou com o risco da realização do tipo penal do homicídio, mas concordou com a ocorrência desse evento em vez de ter renunciado à prática de atos médicos fatais de cirurgia plástica. Tudo isso, sem que as vítimas pudessem exercer a mínima defesa contra sua torpeza e sua selvageria cirúrgica porque não tinham ordinariamente como descobrir o rastro de luto e de dor que Marcelo Caron deixou em Goiânia.?

Acolhendo as reflexões ministeriais, eis o que, no Tribunal de Justiça, escreveu o Relator Smaniotto nestas passagens de seu voto:

?Em qualquer caso, no embate jurídico da tipicidade, tenho que procede a irresignação ministerial, na medida em que as ditas qualificadoras, ao contrário do que concluiu a nobre sentenciante, não são incompatíveis com o dolo eventual, cabendo ao Júri decidir se, no caso concreto, poderiam ser acolhidas.

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Verifica-se, assim, que o dolo eventual e o motivo torpe são figuras penais diversas, porém compatíveis e que não se excluem, eis que um é elemento subjetivo do tipo e o outro é circunstância que se relaciona com a ação nuclear de ?matar alguém?, estabelecendo o tipo qualificador do homicídio.

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Com efeito, admitindo-se o dolo eventual, em tese, ou seja, admitindo-se que o réu assumiu conscientemente o risco de tirar a vida de suas pacientes, colocando acima desse bem (vida alheia) o proveito financeiro almejado a título de remuneração, tem-se que esse interesse se transforma em ignóbil, vil.

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Diante das particularidades do caso concreto, e considerando a possibilidade teórica de que o réu tenha apagado de seu carimbo do CRM a sigla GO, com o fim de impossibilitar às pacientes descobrirem seu passado como alega o Parquet não posso subtrair do Júri o exame dessa qualificadora.

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No tocante a recurso que dificulte ou torne impossível a defesa da vítima (inciso IV), o STJ já teve oportunidade de enfrentar a questão, decidindo que também pode coexistir com o dolo eventual. Confira-se:?

Os registros de nossa jurisprudência encontrados por mim são deste teor: (I) ?não há, no crime de homicídio, incompatibilidade entre dolo eventual e motivo fútil. É possível, por motivo fútil, alguém assumir o risco de produzir o resultado. Afastado, assim, o óbice de tal incompatibilidade, cabe ao Tribunal a quo examinar, em conseqüência, a existência da qualificadora referente ao motivo fútil? (REsp-365, Ministro Edson Vidigal, DJ de 10/10/89); (II) ?o dolo eventual pode coexistir com a forma pela qual o crime é executado. Assim, nada impede que o agente, embora prevendo o resultado morte, o aceite e pratique o ato usando de meio que surpreenda a vítima, dificultando ou impossibilitando a defesa, tal o quadro que entremostra nos autos? (REsp-57.586, Ministro Costa Lima, DJ de 25/9/95); (III) ?detectada a dificuldade, em face do material cognitivo, na realização da distinção concreta entre dolo eventual e preterdolo, a acusação tem que ser considerada admissível? (REsp-192.049, Ministro Felix Fischer, DJ de 1.º/3/99); (IV) ?o fato de o agente assumir o risco de produzir o resultado, aspecto caracterizador do dolo eventual, não exclui a possibilidade de o crime ser praticado mediante o emprego de recursos que dificultem ou impossibilitem a defesa da vítima. Precedentes? (HC-36.714, Ministro Gilson Dipp, DJ de 1.º/7/05).

Há, entre nós, então, precedentes, uns mais antigos, outros modernos, no sentido da compatibilidade entre dolo eventual e qualificadoras do homicídio, por exemplo, segundo os indicados precedentes, em casos de qualificação pelos motivos fútil e pelos modos surpresa. No precedente da relatoria do saudoso Costa Lima, lá se tomou, também, o parecer do então Procurador e hoje Ministro Felix Fischer, e desse longo parecer estou recolhendo estes tópicos:

?Se o modelo de conduta proibida admite, pela sua estrutura, o dolo eventual, então qualquer pretensa incompatibilidade só poderá ser reconhecida no plano concreto, pela própria forma de execução do tipo e nunca por conflito interno, apriorístico. Este suposto conflito interno, data venia, não existe.

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Ora, se o colendo STJ declinou que inexiste qualquer incompatibilidade entre dolo eventual e motivo fútil (circunstância subjetiva), como se pode sustentar o raciocínio de que, a priori, o dolo eventual é incompatível com a qualificadora da surpresa (que tem caráter objetivo)?

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Em se tratando, bem se vê, de elementos tão diversos – o dolo de caráter nitidamente psíquico e a surpresa pertinente ao meio de execução -, impõe-se concluir que não há a mínima incompatibilidade entre ambos.?

Vasculhei a doutrina, pouco encontrei, bem pouco, especificamente, talvez até porque não a tenha bem vasculhado, mas encontrei, verbi gratia, nas ?Lições? de Heleno Fragoso (parte especial, 1877, pág. 69), estes tópicos:

?As circunstâncias que qualificam o homicídio estão, evidentemente, cobertas pelo dolo. A qualificação através dos motivos não apresenta dificuldades, pois são hipóteses de maior reprovabilidade, através de componentes subjetivos do comportamento. O mesmo se diga da qualificação ligada ao fim de agir (art. 121, § 2.º, V).

Não se exige que o agente tenha consciência de que o motivo que o levou a atuar é fútil ou torpe. A valoração dos motivos não depende do réu, fazendo-se objetivamente, segundo os padrões éticos dominantes no meio e no lugar onde o fato ocorreu.

Os meios e modos de execução que qualificam o delito, referem-se à exacerbação do ilícito, integrando a figura típica. Assim sendo, são elementos que devem estar cobertos pelo dolo (bastando o dolo eventual), sendo, pois, excluídos pelo erro.?

Vejam: (I) ?a valoração dos motivos não depende do réu, fazendo-se objetivamente?; (II) quanto aos meios (inciso III) e modos (inciso IV), ?são elementos que devem estar cobertos pelo dolo (bastando o dolo eventual)?.

E mais: se dolo é, ao mesmo tempo, representação e vontade vontade dirigida ao resultado, também a vontade de quem assume o risco de produzir o resultado, lá dolo direto, cá dolo eventual, conforme, entre outros, Hungria (vol. I, tomo II, págs. 114 e segs.) , então confiramos esta conclusão de acórdão estadual (constante do parecer nos autos do REsp-365, de 1989, citado):

?Ora, se dolo é vontade e representação não se vê porque aquele que, apesar da previsão do resultado, persiste em seu comportamento não possa fazê-lo por motivo fútil. A futilidade do motivo, vale dizer o móvel que impele o comportamento do agente ativo, tanto pode ocorrer no dolo direto, como no eventual. No denominado dolo eventual o agente tem consciência da ilicitude de seu comportamento e vontade de praticar o ato. O resultado não é representado como certo, mas como possível. Mas o agente prefere que ele ocorra, a desistir do seu ato…?

Escreveu Dotti (?Enciclopédia Saraiva do Direito?, São Paulo, 1977, vol. 53, pág. 320):

?Cumpre, porém, não confundir o motivo com o dolo. Aquele pode ser classificado como social ou anti-social (que perante a ética se designarão como moral ou imoral, nobre e ignóbil) e no campo legal é tratado como jurídico e anti-jurídico, legítimo e ilegítimo, escusável e não-escusável, conforme a doutrina de Ferri.?

Há, portanto, precedentes nossos tanto em relação aos motivos (incisos I e II) quanto em referência aos modos (inciso IV). De igual maneira, há boa se não excelente doutrina. Isto é, há conceitos de ordem jurisprudencial e de caráter doutrinal segundo os quais não são antinômicos dolo eventual e qualificadoras do homicídio. Torno, pois, ao parecer de Fischer, no precedente de 1995: ?… inexiste qualquer incompatibilidade entre dolo eventual e motivo fútil (circunstância subjetiva), como se pode sustentar o raciocínio de que, a priori, o dolo eventual é incompatível com a qualificadora da surpresa (que tem caráter objetivo)?? Confiram, ainda, Toledo no REsp-365, de 1989: ?Alguém, por motivo fútil, pode assumir o risco de produzir o resultado. Por essas razões, afasto a alegada incompatibilidade entre o motivo fútil e o dolo eventual.?

Diante dos conceitos a cujo propósito fui refletindo à medida que aqui os resumia, estou assumindo posição a favor da compatibilidade entre dolo eventual e qualificadoras, contudo, no caso sob nosso exame, não creio penalmente existente, valendo-me da denúncia e do acórdão, a qualificadora do inciso IV, ei-la segundo as respectivas descrições:

?Para assegurar essa ocultação nos documentos por si assinados, Marcelo Caron omitiu no seu carimbo de uso obrigatório as iniciais do Estado de Goiás que deveriam constar após o tradicional CRM; em vez de CRM-GO 7856, Marcelo Caron usava CRM 7856.?

?Diante das particularidades do caso concreto, e considerando a possibilidade teórica de que o réu tenha apagado de seu carimbo do CRM a sigla GO, com o fim de impossibilitar às pacientes descobrirem seu passado – como alega o Parquet – não posso subtrair do Júri o exame dessa qualificadora.?

Noutras palavras, teve-se, como se viu, por evidente a qualificadora ?… mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido? pelo fato, só e só, de ter o médico Caron omitido, no seu carimbo (?de uso obrigatório?, expôs a denúncia), as iniciais do Estado de Goiás. Mas as pessoas, sabemos todos, identificam-se, tornam-se conhecidas, antes, bem antes de outras circunstâncias, pelo nome; o nome não é a palavra com que se designam as pessoas, também os animais e as coisas, é claro? Não é, pois, a sigla de ente da Federação letras usadas como abreviatura que servirá, por si, de identificação; auxilia, é verdade, porém não é a nota preponderante. No caso sob exame, não creio, admitindo a omissão, ou a proposital supressão das iniciais do Estado, tenha tal circunstância criado dificuldades às vítimas para o conhecimento, ou o reconhecimento, se necessário, do paciente deste habeas corpus. Vejam que o recurso a que se refere a lei penal é o recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido. Penalmente, a meu ver, à indicada omissão, admitindo-a, faltaria, no campo lógico e compreensível das coisas, suficiente aptidão, porque não teria aptidão para dificultar ou tornar impossível a defesa. O médico era conhecido por seu nome, obviamente. É por isso que, no particular, na denúncia e, conseqüentemente, na pronúncia, há de ser riscada a qualificadora do apontado inciso IV.

Voto pela concessão, em parte, da ordem com o intuito, por conseguinte, de excluir das peças processuais a qualificadora relativa ao inciso IV do § 2.º do art. 121.

Explico-me mais: a exclusão de uma das qualificadoras a do inciso IV não implica a nulidade do processo. Não o estou anulando; nada e nada. Estejam onde estiverem os autos (momento processual, grau de jurisdição, etc.), a ação penal há de ter seqüência prosseguimento normal, só que, onde hoje se lê algo relativo à qualificadora do inciso IV, doravante nada se lerá, a saber, simplesmente ela não será exposta aos jurados, nem, obviamente, sobre ela os jurados serão perguntados. Só e só, ponto final.

Ronaldo Botelho é advogado e professor da Escola da Magistratura.