Habeas corpus. Tráfico de entorpecentes. Prisão em flagrante. Revogação da liberdade provisória pelo Tribunal. Necessidade de fundamentação.

HABEAS CORPUS N.º 23.425 – SC

REL.: MIN. JOSÉ ARNALDO DA FONSECA

EMENTA – Não basta para a decretação da custódia cautelar a simples qualificação do delito como hediondo, devendo ser atendidos os requisitos do art. 312, do CPP, fundamentado a Ordem concedida.”

(STJ/DJU de 4/11/02, pág. 225)

As instâncias ordinárias continuam em descompasso com a orientação do Superior Tribunal de Justiça no tocante à liberdade provisória nos chamados crimes hediondos, pois persistem entendendo que, existindo o flagrante, para o indeferimento da liberdade provisória, basta ao juiz invocar o art. 2.º, inciso II, da Lei n.º 8.972/90.

Pois bem. A Corte Superior, em reiteradas decisões, tanto da Quinta, como da Sexta Turma, vem proclamando que a prisão em flagrante (prisão captura) somente pode ser convertida em prisão custódia (prisão preventiva) se estiverem presentes os requisitos de necessidade do art. 312 do C.P. Penal (garantia da ordem pública, conveniência da instrução criminal e asseguramento da aplicação da lei penal), não sendo suficiente, pois, em caso de pedido de liberdade provisória, a simples invocação do art. 2.º, inciso II, da lei dos crimes hediondos, havendo sempre a necessidade de fundamentação concreta a justificar a medida constritiva excepcional.

E, assim, deve ocorrer também em relação ao Juízo de 2.º Grau quando dá provimento ao recurso da acusação para cassar a liberdade provisória, ou indefere pleito de “habeas corpus” para obtê-la. Tudo conforme consta da presente decisão da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, relator o ministro José Arnaldo da Fonseca, com o seguinte voto condutor:

O Exmo. Senhor Ministro José Arnaldo da Fonseca

(relator):

A ordem comporta concessão.

Adoto, como razões de decidir, as judiciosas considerações do subprocurador-geral da República, dr. Eduardo Antônio Dantas Nobre, verbis (fls. 60/3):

“Da leitura do v. acórdão vergastado, verifica-se que não houve, em nenhum momento, o exame de qualquer fato concreto a justificar a decretação da medida constritiva excepcional, com base na garantia da ordem pública, para a aplicação da lei penal, ou por conveniência da instrução criminal. A motivação de restringiu ao fato de o crime ser equiparado a hediondo e, diante da vedação inscrita no artigo 2.º, II, da Lei dos Crimes Hediondos, ser insuscetível de liberdade provisória.

Tal argumentação é insubsistente pois a determinação da custódia cautelar deve ser precedida de convincente fundamentação, baseada em fatos concretos que indiquem que a prisão se faz necessária, atendendo aos termos do artigo 312 do Código de Processo Penal e da jurisprudência pátria, não bastando o fato de se tratar de crime hediondo.

A corroborar tal entendimento, os precedentes desse Egrégio Superior Tribunal de Justiça:

“Penal. Processual. Tráfico ilícito de entorpecentes. Prisão em flagrante. Manutenção. Fundamentação. “Habeas corpus”.

1. A Constituição Federal, em seu art. 93, IX, exige a motivação de todas as decisões judiciais, sob pena de nulidade.

2. A mera referência ao caráter hediondo do crime em tese praticado, por si só, não justifica a manutenção da prisão, que exige sejam atendidos os pressupostos inscritos no CPP, art. 312.

3. “Habeas corpus” conhecido; pedido deferido, sem prejuízo de que nova custódia venha a ser decretada, desde que devidamente fundamentada.”(HC n.º 16.651/MG, rel. min. Edson Vidigal, DJ 13/8/2001).

“Criminal. HC. Homicídio qualificado. Prisão preventiva. Ausência de concreta fundamentação. Necessidade da medida não-demonstrada. Ordem concedida.

Exige-se concreta motivação do decreto de prisão preventiva, com base em fatos que efetivamente justifiquem a excepcionalidade da medida, atendendo-se aos termos do art. 312 do CPP e da jurisprudência dominante.

Precedentes.

O simples fato de se tratar de crime hediondo não basta para que seja determinada a segregação.

Não demonstrada a necessidade da medida, deve ser revogada a custódia processual.

Ordem concedida para revogar a prisão cautelar efetivada contra Paulo Araújo Marques, determinando-se a imediata expedição de alvará de soltura em seu favor, se por outro motivo não estiver preso, mediante condições a serem estabelecidas pelo julgador de 1.º grau, sem prejuízo de que venha a ser decretada novamente a custódia, com base em fundamentação concreta.”(HC n.º 18.320/SP, rel. min. Gilson Dipp, DJ 4/2/2002).

Processual penal. Prisão em flagrante. Tráfico de entorpecentes. Liberdade provisória. Ausentes re-quisitos da prisão preventiva.

1 – O fato de tratar-se de crime hediondo, isoladamente, não é impeditivo da liberdade provisória, haja vista princípios constitucionais regentes da matéria (liberdade provisória, presunção de inocência, etc.). Faz-se mister, então, que, ao lado da configuração idealizada pela Lei n.º 8.072/90, seja demonstrada também a necessidade da prisão.

2 – A manutenção da prisão em flagrante só se justifica quando presentes os requisitos ensejadores da prisão preventiva, nos moldes do art. 310 parágrafo único do CPP. O fundamento único da configuração de crime hediondo ou afim, sem qualquer outra demonstração de real necessidade, nem tampouco da presença dos requisitos autorizadores da prisão preventiva, não justifica a manutenção da prisão em flagrante.

3 – Recurso não conhecido.”(REsp n.º 243893/SP, rel. min. Fernando Gonçalves, DJ 11/9/2002).

Com estas considerações, manifesto opinamento favorável à concessão da ordem, para revogar a prisão cautelar, efetivada contra o paciente, se por outro motivo não estiver preso, sem prejuízo de ulterior decretação da custódia, devidamente fundamentada.”

A jurisprudência desta Corte tem-se inclinado no sentido de que não basta ser o delito enquadrado como hediondo para justificar a necessidade da custódia cautelar, devendo estar presentes os pressupostos autorizadores previstos no art. 312, do Código de Processo Penal, o que, in casu, não foi demonstrado.

De fato, não existem fatos concretos que indiquem a necessidade da prisão cautelar, mormente tratado-se de réu primário, de bons antecedentes e com residência e ocupação fixas. Desse modo, não está devidamente fundamentada a decisão que revogou o benefício da liberdade provisória.

Ante o exposto, concedo a ordem determinando que o paciente aguarde em liberdade o desfecho do processo, sem prejuízo de que nova custódia venha a ser decretada, desde que devidamente fundamentada.

Decisão unânime, votando com o relator os ministros Félix Fischer, Gilson Dipp e Jorge Scartezzini.

Processual penal. Réu que responde o processo em liberdade. Direito de apelar sem necessidade de recolher-se à prisão.

“RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS N.º 13.239 – PR

REL.: MIN. VICENTE LEAL

EMENTA – À luz da nova ordem constitucional, que consagrou o princípio da presunção de inocência (CF, art. 5.º, LVII), a faculdade de recorrer em liberdade objetivando a reforma da sentença penal condenatória é a regra, somente se impondo o recolhimento provisório do réu à prisão nas hipóteses que ensejam a prisão preventiva, na forma inscrita no art. 312, do CPP.

– A regra do art. 594, do CPP, deve hoje ser concebida de forma branda, em razão do aludido princípio constitucional, não se admitindo a sua incidência na hipótese em que o réu permaneceu em liberdade durante a instrução e não se demonstrou no dispositivo da sentença a necessidade da medida constritiva.

– Não constituem fundamentos suficientes para se negar o direito de apelar em liberdade referências à gravidade do delito praticado ou às informações prestadas, em sede de habeas corpus, pelo juiz de primeiro grau, relativas à fuga do réu em relação a outro processo, argumento este, ademais, não utilizado na sentença condenatória quando da negativa de tal direito.

– A circunstância de que o paciente somente foi posto em liberdade em razão de excesso de prazo na instrução não autoriza nem justifica a decretação de custódia cautelar, diante da não apresentação, na sentença condenatória, de elementos concretos que justificassem a decretação de tal medida excepcional.

– Recurso ordinário provido. Habeas corpus concedido.”

(STJ/DJU de 4/11/02)

A orientação do presente julgado da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, relator o ministro Vicente Leal

, já está mais do que consolidada na jurisprudência da Corte Superior. Todavia, nunca é demais dar-lhe destaque, pois vez por outra ainda há os que teimam contra o entendimento pretoriano.

Consta do voto do relator.

O exmo. sr. ministro Vicente Leal (relator): Examinando-se o contexto dos autos, tem-se que merece prosperar o presente recurso ordinário.

Destaque-se, por primeiro, que o ilustre magistrado de primeiro grau, quando da prolação da sentença condenatória, após afirmar ser o réu reincidente, limitou-se a afirmar, no tocante ao disposto no artigo 594 do CPP, que, “Embora se encontre em liberdade, em razão das circunstâncias judiciais já expostas e os seus antecedentes serem-lhe desfavoráveis, nego-lhe o direito de recorrer em liberdade, não sendo, pois, de bom senso assegurar-lhe esse benefício pela gravidade e violência exagerada da ação perpetrada” (fl. 41).

Ademais, em sede de embargos declaratórios, não aduziu fatos acerca de tal ponto, ressaltando, apenas, que não se concede o direito de apelar em liberdade ao condenado reincidente que comete crime grave, e que não há contradição com o seu estado anterior de liberdade, inexistindo ofensa ao princípio do estado de inocência.

O egrégio Tribunal a quo, por sua vez, ao apreciar o habeas corpus ali impetrado, apenas ressaltou que o ilustre juiz sentenciante “não reconheceu bons resultados do paciente e primariedade, vez que é o mesmo reincidente específico”(fl. 86), baseando-se, ainda, nas informações prestadas pelo magistrado de primeira instância e referindo-se à Súmula 9/STJ para denegar a ordem, conforme restou consignado no voto condutor do julgamento daquele writ verbis:

“Insere-se nos presentes autos, mais precisamente à luz das informações às fls. 50 do douto magistrado, que o paciente requereu apelar em liberdade, entretanto teve o pedido negado, por se tratar de sentenciado reincidente específico, além do que encontra-se foragido.

Considerando que na sentença condenatória o douto magistrado não reconheceu bons antecedentes do paciente e primariedade, vez que é o mesmo reincidente específico.

É entendimento do STJ:

“A Súmula 09 do STJ, dispõe claramente que a prisão provisória não ofende o princípio constitucional do estado de inocência (CF, art. 5.º, LVII)”.

Ademais, ante as circunstâncias destacou o magistrado às fls. 51:

`… inconcebível, à luz da segurança da coletividade e da ordem pública como um todo, salvo melhor juízo, que um elemento reincidente específico (que não é mais primário), que não possui vida pregressa regular e que pratique crimes de extrema gravidade, frustrando, ainda, a aplicação da lei penal em processo que já se encontra com sentença irrecorrível, possa apelar em liberdade'” (fls. 86).

Ora, tenho proclamado, com o apoio unânime dos meus ilustres pares que, à luz da nova ordem constitucional, que consagrou o princípio da presunção de inocência (CF, art. 5.º, LVII), a faculdade de recorrer em liberdade objetivando a reforma da sentença penal condenatória é a regra, somente se impondo o recolhimento provisório do réu à prisão nas hipóteses que ensejam a prisão preventiva, na forma inscrita no art. 312, do CPP. E, nesse caso, deve o juiz fundamentar substancialmente a decisão, indicando de modo objetivo as razões determinantes de tal providência, de caráter excepcional.

Tem-se, portanto, nessa linha de compreensão, proclamado que a regra do art. 594, do CPP, deve hoje ser concebida de forma branda, atendendo-se ao novo conceito constitucional, não se admitindo a sua incidência na hipótese em que o réu permaneceu em liberdade durante a instrução e não se demonstrou no dispositivo da sentença a necessidade da medida constritiva.

No presente caso, conforme se pôde observar, o magistrado de primeiro grau, para negar o direito ao réu de apelar em liberdade, afirmou apenas tratar-se de réu reincidente, que, destarte, não é primário e possui maus antecedentes, e, ainda, ser o crime grave, praticado com violência exagerada.

Por sua vez, limitou-se o tribunal a quo, para denegar o habeas corpus, a referir-se à inexistência de primariedade e de bons antecedentes, por ser o réu reincidente, e a trechos das informações prestadas no writ pelo magistrado sentenciante, nos quais destacou a gravidade do delito e o fato de estar o paciente frustrando a aplicação da lei penal, por encontrar-se foragido do processo que originou sua reincidência.

Ocorre que os argumentos apresentados não constituem fundamentação adequada para a decretação de custódia cautelar, que exige a demonstração concreta de elementos que justifiquem, no processo, a necessidade de tal medida excepcional, não sendo suficientes as preferências à gravidade do delito praticado ou às informações prestadas, em sede de habeas corpus, pelo juiz de primeiro grau, relativas à fuga do réu em relação a outro processo, argumento este, ademais, não utilizado na sentença condenatória quando da negativa ao paciente do direito de recorrer em liberdade.

Com efeito, a negativa do direito de apelar em liberdade deve, em todos os casos, fundar-se em motivos claros e concretos, tendo o juiz de apresentar adequadamente as razões de sua decisão.

Ressalte-se, ainda, que a circunstância de que o paciente foi posto em liberdade em razão de excesso de prazo na instrução não autoriza nem justifica a decretação de custódia cautelar, diante da não apresentação, na sentença condenatória, de elementos concretos que justificassem a decretação de tal medida excepcional.

Isto posto, dou provimento ao recurso e concedo a ordem de habeas corpus para assegurar ao paciente o direito de aguardar o julgamento do recurso de apelação em liberdade.

É o voto.

Decisão unânime, votando com o relator os ministros Fernando Gonçalves, Hamilton Carvalhido, Paulo Gallotti e Fontes de Alencar.

Ronaldo Botelho é advogado e professor da Escola de Magistratura.