Habeas corpus. Processual penal. Crime de roubo circunstanciado. Absolvição em primeiro grau. Acórdão condenatório, amparado em provas produzidas exclusivamente na fase inquisitorial. Impossibilidade. Violação aos princípios do contraditório e da ampla defesa.

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HABEAS CORPUS N.º 112.577 – MG
Rel.: Ministra Laurita Vaz
EMENTA

1. O inquérito policial é procedimento meramente informativo, que não se submete ao crivo do contraditório e no qual não se garante ao indiciado o exercício da ampla defesa, afigurando-se, portanto, nulo o decreto condenatório que não produz, ao longo da instrução criminal, qualquer outra prova hábil para fundamentá-lo. Precedentes desta Corte.

2. O Tribunal de origem, ao dar provimento ao apelo ministerial para condenar os Pacientes, amparou-se no auto de prisão em flagrante, auto de apreensão, depoimento da vítima colhido na fase inquisitorial, bem como na confissão extrajudicial de um dos acusados, que não restou ratificada em juízo.

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Não houve, assim, qualquer prova desfavorável produzida na fase judicial, evidenciado, com isso, flagrante constrangimento ilegal na condenação imposta.

3. Ordem concedida para, cassando o acórdão atacado, restabelecer a sentença de primeiro grau que absolveu os ora Pacientes.
(STJ/DJe de 3/8/2009)

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Por decisão de sua Quinta Turma, Relatora a Ministra Laurita Vaz, por unanimidade de votos, decidiu o Superior Tribunal de Justiça que é nulo o acórdão que não produz, ao longo da instrução criminal qualquer outra prova hábil limitando-se aos elementos colhidos no flagrante no inquérito policial.

Votaram com a Relatora Ministra Laurita Vaz, os Ministros Arnaldo Esteves Lima e Jorge Mussi.

Consta do voto da Relatora:

Exma. Sra. Ministra Laurita Vaz (Relatora):

Alega o Impetrante, em suma, no presente writ, que a condenação dos ora Pacientes restou amparada tão-somente em elementos probatórios colhidos na fase inquisitorial, sem a observância da ampla defesa e do contraditório.

Pelos elementos que instruem os autos, vê-se que os Pacientes foram absolvidos em primeiro grau, da suposta prática do crime de roubo circunstanciado, nos termos da sentença a seguir transcrita:

“DA AUTORIA

Examinando o caderno processual, verifico que a pretensão absolutória requerida pela Douta defesa merece guarida, com relação aos acusados, eis que não há prova segura de que os acusados tenham praticado o furto narrado na denúncia, devendo-se observar, na dúvida, o princípio do in dubio pro reo.

Os acusados negaram em juízo a autoria delitiva.

Em juízo não foram colhidos os depoimentos das testemunhas arroladas na denúncia.

O conjunto probatório produzido na fase inquisitorial não é suficiente para ensejar um decreto condenatório.

Diante das provas carreadas, forçoso concluir que os autos apresentam-se, realmente, a mingua de um contingente probatório suficiente a lastrear uma condenação. O fato imputado aos réus pode ter ocorrido ou não. Emergindo dúvidas, outra solução não resta senão invocar a máxima que favorece o agente em situações tais.

Dito isto, acolho a tese da defesa para absolver os acusados em razão da insuficiência de provas capaz de ensejar em um decreto condenatório.” (fls. 20/21)

O Tribunal a quo, por sua vez, deu provimento ao apelo ministerial para condená-los como incursos no art. 157, § 2.º, II, do Código Penal, sendo o réu Daniel à pena de 05 anos e 08 meses de reclusão, em regime semi-aberto, e 17 dias-multa, e o réu Adriano à pena de 06 anos, 02 meses e 20 dias de reclusão, em regime fechado, além do pagamento de 20 dias-multa. Utilizou, para tanto, os seguintes fundamentos:

“[…]

Data venia, o inconformismo ministerial procede, pois a condenação dos apelados, nos termos da exordial, é de rigor.

Materialidade positivada pelo auto de prisão em flagrante, f. 06/13, BO de f. 15/17, auto de apreensão, f. 20, termo de restituição, f. 24, em sintonia com a prova oral colhida na fase inquisitiva.

Autoria extreme de dúvidas, encontrando-se consubstanciada na confissão extrajudicial do apelado Daniel da Silva, que narrou os fatos com riqueza de detalhes.

‘…O DECLARANTE ESTAVA EM COMPANHIA DE ADRIANO FRANCISCO DO NASCIMENTO, VULTO ‘CATATAU’, QUANDO VIRAM A VÍTIMA CONDUZINDO UM VEÍCULO DE PROPULSÃO HUMANA PELA VIA PÚBLICA; QUE, NESSE MOMENTO RESOLVERAM ASSALTA-LO, APROXIMANDO DA VÍTIMA, E ANUNCIANDO O ASSALTO; QUE, DO BOLSO DA VÍTIMA O DECLARANTE PEGOU (…) QUE, EM ATO CONTÍNUO, O DECLARANTE E O CONDUZIDO ADRIANO FRANCISCO DO NASCIMENTO PEGARAM A BICICLETA DA VÍTIMA E EVADIRAM DO LOCAL…’ (f. 11/13)
A respeito da confissão extrajudicial, a jurisprudência já consagrou que:

‘A confissão, já chamada rainha das provas, é peça valiosa na formação do convencimento judicial. Toda vez que surgir de maneira espontânea, traduzindo a assunção da responsabilidade e afastada a mais remota hipótese de auto-imputação falsa, constitui elemento valioso para justificar a condenação’ (RJDTACRIM 40/221).

‘Prova criminal. Confissão extrajudicial. Validade, ainda que retratada em juízo. Harmonia com a prova colhida na instrução. Recurso não provido. Tem valor probante a confissão extrajudicial devidamente testemunhada se não contrariada por outras provas’ TJSP (JTJ 169/312)

Embora o apelado Daniel tenha se retratado em juízo, afirmando ter agido sozinho, tal evasiva não encontra suporte na prova oral colhida.

Com efeito, perante a autoridade policial, a vítima, além de reconhecer os réus como os autores do delito, esclareceu sobremaneira o modus operandi empregado:
‘…CONDUZIA SEU VEÍCULO DE PROPULSÃO HUMANA PELA VIA PÚBLICA, QUANDO FOI ABORDADO POR DOIS ELEMENTOS, OS QUAIS TOMA CONHECIMENTO NESSE MOMENTO TRATAR-SE DE DANIEL DA SILVA E ADRIANO FRANCISCO NASCIMENTO; QUE, NA ABORDAGEM, JOGARAM O DECLARANTE NO ASFALTO, E DISSERAM ‘DA SUA CARTEIRA AI, É UM ASSALTO’; (…) QUE AMBOS OS ELEMENTOS COMEÇARAM A VASCULHAR OS BOLSOS DO DECLARANTE…’ (Marinho Costa Ribeiro, f. 07/08).

Não é só. Os apelados foram presos na posse da res furtiva, vindo a talho o seguinte julgado:

‘PENAL – FURTO – AUTORIA – APREENSÃO DA RES FURTIVA EM POSSE DO ACUSADO CORROBORADA POR FORTES INDÍCIOS – SENTENÇA CONFIRMADA. A autoria do crime de furto resulta inquestionável quando, além de existirem nos autos fortes indícios da responsabilidade do acusado, ele é preso em flagrante na posse da res furtiva e não se desincumbe do ônus de comprovar a sua inocência. Recurso improvido.’ (TJMG, 5.ª Câmara Criminal, Ap. 2.0000.00.510720-2/000, Rel. Des. Hélcio Valentim, j. 19.08.2005, p. 3/9/2005).

Assim, a meu ver, não obstante a ausência de prova jurisdicionalizada, os indícios múltiplos, concatenados e impregnados de elementos positivos de credibilidade existentes nos autos são suficientes para fundamentar a condenação, máxime porque excluem qualquer hipótese favorável aos apelados e não foram invalidados por contra-indícios ou outras provas.” (fls. 41/43)

Conforme se extrai do excerto acima transcrito, o Tribunal de origem utilizou-se, para o reconhecimento da culpabilidade dos ora Pacientes, do auto de prisão em flagrante, do auto de apreensão, do depoimento da vítima colhido na fase inquisitorial, bem como da confissão extrajudicial de um dos acusados.

Não houve, assim, qualquer prova desfavorável aos ora Pacientes que tivesse sido produzida na fase judicial, tanto que na sentença absolutória restou consignado não ter havido a oitiva de qualquer testemunha da acusação. Acresce-se a isso, ainda, o fato do corréu Daniel ter se retratado da confissão prestada perante a autoridade policial.

Nesse contexto, como o inquérito policial é procedimento meramente informativo, que não se submete ao crivo do contraditório e no qual não se garante ao indiciado o exercício da ampla defesa, afigura-se, portanto, nulo o decreto condenatório, já que não produzido, ao longo da instrução criminal, qualquer outra prova hábil para fundamentá-lo.

No mesmo sentido, aliás, é o parecer ministerial:

“[…]

Resta evidente, pois, tanto pelos fundamentos da sentença absolutória como pelos extraídos do v. acórdão atacado, que as provas utilizadas para dar motivação à decisão condenatória foram produzidas tão-somente na esfera do inquérito policial, sem a produção de outras em Juízo e sob o crivo do contraditório, o que as torna imprestáveis para dar suporte a um decreto condenatório, restando configurada a nulidade desta decisão, tendo em vista a ocorrência de ofensa aos princípio da ampla defesa e do devido processo legal.

Verificando que a decisão condenatória se baseou em provas não produzidas em Juízo, fora do alcance do contraditório, a nulidade do acórdão se impõe, com a manutenção da decisão de primeiro grau que absolveu os Pacientes.” (fl. 59)

Confiram-se, ainda, sobre o assunto, os seguintes precedentes desta Corte:

“HABEAS CORPUS. DIREITO PENAL. FURTO QUALIFICADO. SENTENÇA. ABSOLVIÇÃO. ACÓRDÃO CONDENAÇÃO COM BASE NA PROVA PRODUZIDA NA FASE INQUISITORIAL. INCABIMENTO.

1. Fundada a condenação, na prova produzida no inquérito policial, é de rigor a sua desconstituição, por violado o due process of law.

2. Ordem concedida.” (HC 24.950/MG, Rel. Ministro HAMILTON CARVALHIDO, SEXTA TURMA, julgado em 31/10/2007, DJe 4/8/2008)

“PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. ROUBO. CONCURSO DE PESSOAS. CONDENAÇÃO AMPARADA, EXCLUSIVAMENTE, NAS DECLARAÇÕES PRESTADAS PELOS ACUSADOS NA FASE INQUISITORIAL. AUSÊNCIA DE OUTRAS PROVAS PRODUZIDAS COM OBSERVÂNCIA DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA. ABSOLVIÇÃO COMO ÚNICA SOLUÇÃO. ORDEM CONCEDIDA.

1. O fato de os acusados terem afirmado, na fase inquisitorial, que o paciente emprestou a arma, mediante o pagamento de R$ 100,00, para que fosse praticado o delito narrado na denúncia, não se mostra suficiente para sustentar o decreto condenatório, principalmente quando, em Juízo, houve a retratação dessas declarações, além de não ter sido produzida, ao longo da instrução criminal, nenhuma outra prova que pudesse firmar a conduta delitiva denunciada.

2. O inquérito policial é procedimento meramente informativo, que não se submete ao crivo do contraditório e no qual não se garante aos indiciados o exercício da ampla defesa, razão pela qual se impõe, na hipótese, a absolvição do paciente.

3. Ordem concedida para restabelecer a sentença absolutória.” (HC 56.176/SP, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, QUINTA TURMA, julgado em 28/11/2006, DJ 18/12/2006 p. 421)

“HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. NULIDADE. AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO. DECISÃO PROFERIDA EXCLUSIVAMENTE EM INQUÉRITO POLICIAL. IMPOSSIBILIDADE.

1. Nulidade do acórdão que fundamentou a condenação do paciente;

2. Ordem concedida para, anulando o acórdão impugnado, restabelecer a sentença absolutória.” (HC 44.158/ES, Rel. Ministro HÉLIO QUAGLIA BARBOSA, SEXTA TURMA, julgado em 3/11/2005, DJ 16/10/2006 p. 432)

Ante o exposto, CONCEDO A ORDEM para, cassando o acórdão atacado, restabelecer a sentença de primeiro grau que absolveu os ora Pacientes.

É o voto.

Ministra Laurita Vaz

Relatora

Ronaldo Botelho é advogado e professor da Escola da Magistratura.