Necessidade de manifestação inequívoca de vontade. Ausência. Ordem concedida.HABEAS CORPUS N.º 93.253-PR

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Rel.: Min. Joaquim Barbosa
EMENTA

1. Mesmo dispensando qualquer formalidade para o seu exercício, a representação, para fins de autorizar o ajuizamento da ação penal pública condicionada, deve conter uma manifestação inequívoca de vontade do ofendido, ou seu representante legal, no sentido de processar criminalmente o acusado, com todas as consequências que daí advém.
2. No caso dos autos, o histórico da relação entre a suposta vítima e o paciente recomendava que o Delegado pedisse esclarecimento sobre quais providências a representante legal da ofendida queria que fossem adotadas, se cíveis ou criminais.
3. Declarações e depoimentos que revelam o interesse da representante legal e da vítima em que o paciente assumisse a paternidade da filha e ajudasse a criá-la, pagando pensão. Não desejavam a prisão ou condenação criminal do paciente, como vieram a esclarecer.
4. Ausente manifestação inequívoca de vontade, não há representação.
5. Ordem concedida para restabelecer o acórdão do Tribunal de Alçada do Estado do Paraná.
(STF/DJU de 24/10/2008)

Trata-se de decisão do Supremo Tribunal Federal por sua 2.ª Turma, relator o Ministro Joaquim Barbosa no sentido de que o ajuizamento da ação penal pública condicionada deve conter uma manifestação inequívoca da vontade do ofendido ou seu representante legal no sentido de processar criminalmente o acusado com todas as consequências. Ausente manifestação inequívoca de vontade, não há representação.
Consta do voto do Relator:

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O Senhor Ministro Joaquim Barbosa -(Relator): A matéria tratada neste writ não diz respeito à discussão quanto à exigência ou não de formalidades para o exercício da representação, na ação penal pública a ela condicionada.
Com efeito, a jurisprudência é tranqüila no sentido de que a representação prescinde de qualquer formalidade, até porque a lei não disciplina a forma do seu exercício. Esta questão, portanto, está fora de debate.

Contudo, mesmo prescindindo de uma forma solene, é necessário que a manifestação de vontade seja inequívoca.

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Eis os precedentes desta Corte:
“HABEAS CORPUS. CRIME DE AMEAÇA. AUSÊNCIA DE REPRESENTAÇÃO. FORMALIDADE SUPRIDA PELA MANIFESTAÇÂO DE VONTADE DA VÍTIMA. ATIPICIDADE. REEXAME DE FATOS E PROVAS. COMPARECIMENTO A AUDIÊNCIA PRELIMINAR SEM ADVOGADO. NULIDADE SANADA. AUSÊNCIA DE PREJUÍZO. 1. A representação a ação penal pública prescinde de formalidade, bastando a manifestação inequívoca da vítima no sentido de processar o ofensor. (…)”
(HC 92.870, rel. min. EROS GRAU)
“HABEAS CORPUS. CRIME DE ESTUPRO. NULIDADE DA AÇÃO PENAL. AUSÊNCIA DE REPRESENTAÇÃO NO PRAZO LEGAL. VIOLAÇÃO A AMPLA DEFESA E AO CONTRADITÓRIAO. ORDEM DENEGADA. A representação é ato que dispensa formalidades. No caso, a ofendida demonstrou inequivocamente, por meio de sua conduta, a vontade de que o paciente respondesse a ação penal. (…)” (HC 88.274, rel. min. JOAQUIM BARBOSA)

No caso dos autos, consta o seguinte (v. apenso): “Tendo chegado ao meu conhecimento, em data de 15/4/96, por volta das 10h, quando compareceu nesta D.P. a senhora Adelina Maria de Jesus Santos, acompanhada de sua filha menor de idade, queixando-se que sua filha estava grávida e que a referida vinha mantendo reações sexuais com o elemento conhecido como GILBERTO FERREIRA DOS SANTOS, residente no acampamento dos sem-terra, determino: I – Autue-se a presente instauração como Inquérito Policial para apuração dos fatos;
( …) ”

Em termo de declarações, a mãe da menor disse o seguinte (v. Apenso): “Que a declarante reside na Fazenda pontal do Tigre, no Acampamento dos AGROVILLAS; Que a declarante sempre notou a presença de um rapaz de nome GILBERTO FERREIRA DOS SANTOS, que esta pessoa sempre ia na casa da declarante, mas a declarante não tinha conhecimento de que ele tinha algum caso com a sua filha; que a declarante foi notando a diferença no corpo de sua filha; (…) foi quando a declarante perguntou, (…) e sua filha confirmou ter um caso com GILBERTO e também que estava grávida; foi quando a declarante procurou esta D.P. para as providências;”

Por sua vez, o termo de declaração da vítima revela o seguinte: “Presta a sua declaração na presença de sua genitora que, no final, vai devidamente assinado; e passou a menor a relatar que: Há muito tempo atrás vem gostando de GILBERTO; Que a declarante chegou a comentar que gostava de GILBERTO; e quando foi no dia 19 de outubro de 1995, a declarante combinou com, GILBERTO para se encontrarem próximo à residência da irmã dele; (…) Que, a partir desta data, a declarante continuou a manter relação sexual com GILBERTO, sempre escondido, nos matos; Que a declarante chegou a comunicar GILBERTO que estava grávida; Que, depois de GILBERTO tomar conhecimento que estava grávida, GILBERTO não quis mais saber da declarante; (…)”

Por fim, o irmão da vítima prestou os seguintes esclarecimentos:
“Que o declarante tinha conhecimento que sua irmã gostava de GILBERTO; Que os dois vinham mantendo uma paquera, Que o declarante chegou a levar uma carta para GILBERTO, a mando da sua irmã; (…)”

Apesar deste histórico, a autoridade policial não indagou da mãe da vítima se ela desejava processar criminalmente o paciente, tendo por consequência a prisão do mesmo. Contentou-se com a afirmação contida no termo de declarações, no sentido de que, quando soube que a filha estava grávida, procurou a Delegacia para as “providências”.

Esta manifestação de vontade, a meu sentir, não revela o inequívoco interesse no oferecimento da ação penal. Ao contrário, o que se conclui das declarações é que a mãe da vítima procurou a Delegacia, não porque a filha manteve relações sexuais com o paciente, mas apenas porque descobriu que ela estava grávida. Por isto, queria providências, para que o paciente assumisse a paternidade ou pagasse pensão. É o que se colhe do seu depoimento em juízo, em que a mãe da vítima afirmou, categoricamente, que “não queria que o réu fosse preso”, salientando (fls. 35 do apenso):

(…) que a vítima, quando tinha doze anos, já menstruava e possuía seios; (…) que quando a vítima possuía apenas oito anos de idade e o réu tinha uns 15 anos, ambos haviam tido contato de amizade e ficavam juntos por algum tempo, todavia não sabe o que pode ter acontecido; que quando o réu possuía uns 15 anos disse que a depoente iria ser sogra do mesmo; (…) que deseja que o réu assuma a criança e pague pensão, porém esta deveria ficar sob a guarda de sua filha e da depoente”.

A vítima também declarou, em juízo, que (fls. 33 do Apenso): “não deseja que o réu seja condenado criminalmente, apenas quer que o mesmo a ajude a cuidar e manter a criança; (…) que os fatos ocorridos com o réu não atrapalharam em nada a vida da declarante, continuando a mesma coisa; (…) que concorda que a criança seja registrada em nome do réu; que a declarante ainda gosta do réu, dizendo que ainda resta um pouco de amor pelo mesmo (…)”

OU seja, embora o fato seja grave (envolvimento sexual com uma menina de 12 anos), não é possível, pelo ordenamento jurídico vigente, dar início à ação penal sem a inequívoca manifestação de vontade da vítima ou, no caso em análise, de sua representante legal. É uma exigência do Código Penal.

No caso, ao contrário, a ofendida e sua representante legal queriam apenas uma providência cível, e não a persecução criminal, que tem conseqüências muito sérias e muito graves na vida do acusado, não desejadas pelas titulares do jus persequendi.

Neste sentido, entendo assistir razão ao Tribunal de Alçada Criminal do Estado do Paraná, que assim se manifestou no julgamento do Recurso de Apelação interposto pela defesa, verbis (v. apenso):

“Segundo se infere do presente caderno processual, verifica-se que existe nulidade absoluta a ser declarada de ofício, qual seja, ausência de representação dos representantes legais da vítima em ação penal condicionada, ocasionando a decadência do direito de punir do Estado.

(…) em momento algum houve formalização de representação.

Apenas a colheita do depoimento da mãe da menor (fls. 07) na polícia e em juízo (fls. 39); todavia, sem que esta manifestasse o inequívoco interesse em ver o réu submetido à ação penal.

Então, por ser ação penal pública condicionada àquela, não se poderia processar criminalmente o acusado sem a devida autorização por parte dos representantes da vítima para legitimar a “persecutio” pelo ilustre agente ministerial.

(…) Em face do acima exposto e por tudo o mais que dos autos consta, não conheço do recurso e, de ofício, decreto a nulidade do processo, face à ilegitimidade ativa do Ministério Público, em virtude da ausência de representação, julgando extinta a punibilidade do réu, eis que operada a decadência ( …)”.

Com efeito, no caso dos autos, percebe-se que a vontade da ofendida e de sua representante legal não foi manifestada de modo inequívoco, no sentido de processar criminalmente o paciente.

O mero fato de a mãe da ofendida ter se dirigido ela à delegacia de polícia não é, por si só, revelador dessa vontade de processar criminalmente o paciente. Isto porque, infelizmente, nos rincões mais pobres do país – como é o caso do acampamento onde moravam o paciente e a ofendida -, o único órgão estatal acessível aos cidadãos é a delegacia de polícia, muitas vezes procurada para resolver problemas cíveis, como todos sabemos.

Do exposto, considero que não foi atendida a condição de procedibilidade prevista em lei (representação), razão pela qual concedo a ordem, para restabelecer o acórdão proferido pelo Tribunal de Alçada do Estado do Paraná.
De todo modo, considero que o órgão da Defensoria Pública em atuação nestes autos deve se comunicar com o membro que tenha atuação da Comarca de Querência do Norte/PR, para que haja o devido amparo à ofendida em eventual ação de alimentos ou de investigação de paternidade, pois estes foram os interesses revelados pela vítima e por sua representante legal na Delegacia de Polícia daquela localidade. É como voto. Decisão unânime, votando com o Relator os Ministros Cezar Peluso e Eros Grau.

Ronaldo Botelho é advogado e professor da Escola da Magistratura.