Habeas corpus. Ação penal…

Habeas corpus. Ação penal. Tentativa de furto qualificado. Subtração de bem de valor ínfimo. Conduta de mínima ofensividade para o Direito Penal. Atipicidade material. Condições pessoais desfavoráveis. Irrelevância. Princípio da insignificância. Aplicação. Trancamento. Ordem concedida.

HABEAS CORPUS N.º 166.227 – SP
Rel.: Min. Jorge Mussi
EMENTA

1. Segundo a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, o princípio da insignificância tem como vetores a mínima ofensividade da conduta do agente, a nenhuma periculosidade social da ação, o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e a inexpressividade da lesão jurídica provocada.

2. Hipótese de furto de uma bicicleta, avaliada em R$ 100,00 (cem reais) e integralmente restituída à vitima, que não logrou prejuízo algum, seja com a conduta do acusado, seja com a conseqüência dela, mostrando-se desproporcional a imposição de sanção penal no caso, pois o resultado jurídico, ou seja, a lesão produzida, mostra-se absolutamente irrelevante.

3. Embora a conduta do paciente -furto qualificado tentado se amolde à tipicidade formal e subjetiva, ausente no caso a tipicidade material, que consiste na relevância penal da conduta e do resultado típicos em face da significância da lesão produzida no bem jurídico tutelado pelo Estado.

4. A existência de circunstâncias de caráter pessoal desfavoráveis, tais como o registro de processos criminais em andamento, a existência de antecedentes criminais ou mesmo eventual reincidência não são óbices, por si só, ao reconhecimento do princípio da insignificância. Precedentes deste STJ.

5. Ordem concedida para, aplicando-se o princípio da insignificância, absolver o paciente com fulcro no artigo 386, inciso III, do Código de Processo Penal.
(STJ/DJe de 20/09/2010)

Decidiu a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, Relator o Ministro Jorge Mussi que embora a conduta do paciente se amolde à tipicidade formal e subjetiva, carece de relevância penal a conduta e o resultado típico em face da insignificância da lesão produzida.

Decisão unânime, votando com o Relator Ministro Jorge Mussi, os Ministros Honildo Amaral de Mello Castro (Des. Conv. Do TJ/AP), Felix Fischer, Laurita Vaz e Napoleão Nunes Maia Filho.

O Senhor Ministro Jorge Mussi (Relator):

Consta dos autos que o paciente foi denunciado como incurso nas sanções do art. 155, § 4 .º, inciso I, c/c art. 14, inciso II, ambos do Código Penal, em razão dos fatos assim narrados na peça acusatória:

Consta do incluso inquérito policial que no dia 10 de janeiro de 2009, por volta das 10 horas e 20 minutos, na Praça Dom Epaminondas, Centro, nesta cidade e comarca, FERNANDO RIBEIRO DE MORAES , RG n. 30.708.053, qualificado a fls. 16, tentou subtrair, para si, mediante rompimento de obstáculo, uma bicicleta, melhor descrita no auto de exibição e apreensão de fls. 09, avaliados em R$ 100,00, em detrimento de Fernando Guimarães Cassiano, não consumando o delito por circunstâncias alheias a sua vontade.

Segundo o apurado, na aludida data, munido de instrumento contundente (chave de boca), o denunciado danificou o cadeado e corrente predispostos para impedir a subtração do referido veículo estacionado em via pública.

Surpreendido pela vítima em meio à execução do delito, iniciada perseguição durante frustrada tentativa de fuga na condução do veículo, sobreveio prisão em flagrante, razão pela qual não mantida a livre disponibilidade. (fls. 11/12)

Após regular instrução do feito, o paciente restou condenado à pena de 1 ano e 4 meses de reclusão, em regime aberto, além de 6 dias-multa, substituída por duas restritivas de direitos, tendo o Tribunal de origem dado parcial provimento à apelação defensiva, para afastar uma das penas de prestação de serviços à comunidade, não reconhecendo, no entanto, o crime de bagatela.

Agora, por meio deste habeas corpus, pretende o douto defensor que seja aplicado ao caso o princípio da insignificância, sob a alegação de que os bens subtraídos possuíam valor ínfimo, levando à atipicidade da conduta narrada na exordial.

A aplicação do princípio da insignificância, ou a admissão da ocorrência de um crime de bagatela, reflete o entendimento de que o Direito Penal deve intervir somente nos casos em que a conduta ocasionar lesão jurídica de certa gravidade, devendo ser reconhecida a atipicidade material de perturbações jurídicas mínimas ou leves, estas consideradas não só no seu sentido econômico, mas também em função do grau de afetação da ordem social que ocasionem.

Veja-se, sobre o tema, a lição de CEZAR ROBERTO BITENCOURT:

O princípio da insignificância foi cunhado pela primeira vez por Claus Roxin, em 1964, que voltou a repeti-lo em sua obra Política Criminal y Sistema del Derecho Penal, partindo do velho adágio latino minima non curat praetor.

A tipicidade penal exige uma ofensa de alguma gravidade a bens jurídicos protegidos, pois nem sempre qualquer ofensa a esses bens ou interesses é suficiente para configurar o injusto típico. Segundo esse princípio, que Klaus Tiedemann chamou de princípio de bagatela, é imperativa uma efetiva proporcionalidade entre a gravidade da conduta que se pretende punir e a drasticidade da intervenção estatal. Amiúde, condutas que se amoldam a determinado tipo penal, sob o ponto de vista formal, não apresentam nenhuma relevância material. Nessas circunstâncias, pode-se afastar liminarmente a tipicidade penal porque em verdade o bem jurídico não chegou a ser lesado.

[…].

De qualquer modo, a restrição típica decorrente da aplicação do princípio da insignificância não deve operar com total falta de critérios, ou derivar de interpretação meramente subjetiva do julgador, mas ao contrário há de ser resultado de uma análise acurada do caso em exame, com o emprego de um ou mais vetores – v. g., valoração sócio-econômica média existente em determinada sociedade – tidos como necessários à determinação do conteúdo da insignificância. Isso do modo mais coerente e equitativo possível, com intuito de afastar eventual lesão ao princípio da segurança jurídica. (Curso de Direito Penal Brasileiro, Volume 1 – Parte Geral – Arts. 1.º a 120 7.ª ed., RT:SP, 2007, p. 154 e 155)

A orientação do Supremo Tribunal Federal mostra-se no sentido de que, para a verificação da lesividade mínima da conduta, apta a torná-la atípica, deve levar-se em consideração os seguintes vetores: a) a mínima ofensividade da conduta do agente; b) a nenhuma periculosidade social da ação; c) o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento; e d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada, salientando que o Direito Penal não deve se ocupar de condutas que, diante do desvalor do resultado produzido, não representem prejuízo relevante, seja ao titular do bem jurídico tutelado, seja à integridade da própria ordem social.

Nesse sentido, da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal:

“PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA -IDENTIFICAÇÃO DOS VETORES CUJA PRESENÇA LEGITIMA O RECONHECIMENTO DESSE POSTULADO DE POLÍTICA CRIMINAL CONSEQUENTE DESCARACTERIZAÇÃO DA TIPICIDADE PENAL EM SEU ASPECTO MATERIAL – ATO INFRACIONAL EQUIVALENTE AO DELITO DE FURTO – ‘RES FURTIVA’ NO VALOR DE R$ 110, 00 (EQUIVALENTE A 26,5% DO SALÁRIO MÍNIMO ATUALMENTE EM VIGOR) – DOUTRINA – CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA JURISPRUDÊNCIA DO STF – PEDIDO DEFERIDO. O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA QUALIFICA-SE COMO FATOR DE DESCARACTERIZAÇÃO MATERIAL DA TIPICIDADE PENAL.

“- O princípio da insignificância – que deve ser analisado em conexão com os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima do Estado em matéria penal – tem o sentido de excluir ou de afastar a própria tipicidade penal, examinada na perspectiva de seu caráter material. Doutrina. Tal postulado – que considera necessária, na aferição do relevo material da tipicidade penal, a presença de certos vetores, tais como (a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada – apoiou-se, em seu processo de formulação teórica, no reconhecimento de que o caráter subsidiário do sistema penal reclama e impõe, em função dos próprios objetivos por ele visados, a intervenção mínima do Poder Público.

“O POSTULADO DA INSIGNIFICÂNCIA E A FUNÇÃO DO DIREITO PENAL: ‘DE MINIMIS, NON CURAT PRAETOR’.

“- O sistema jurídico há de considerar a relevantíssima circunstância de que a privação da liberdade e a restrição de direitos do indivíduo somente se justificam quando estritamente necessárias à própria proteção das pessoas, da sociedade e de outros bens jurídicos que lhes sejam essenciais, notadamente naqueles casos em que os valores penalmente tutelados se exponham a dano, efetivo ou potencial, impregnado de significativa lesividade. ‘O direito penal não se deve ocupar de condutas que produzam resultado, cujo desvalor – por não importar em lesão significativa a bens jurídicos relevantes – não represente, por isso mesmo, prejuízo importante, seja ao titular do bem jurídico tutelado, seja à integridade da própria ordem social’ (HC n.º 94.505/RS, Rel. Ministro CELSO DE MELLO, j. em 16-9-2008).

Assim, a aplicação do princípio da insignificância, causa excludente de tipicidade material, admitida pela doutrina e pela jurisprudência em observância aos postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima do Direito Penal, demanda o exame do preenchimento de certos requisitos objetivos e subjetivos exigidos para o seu reconhecimento, traduzidos no reduzido valor do bem tutelado e na favorabilidade das circunstâncias em que foi cometido o fato criminoso e de suas conseqüências jurídicas e sociais, pressupostos que, no caso, se encontram preenchidos.

Com efeito, na hipótese em exame, embora a conduta do paciente – tentativa de furto qualificado – se amolde à tipicidade formal, que é a perfeita subsunção da conduta à norma incriminadora, e à tipicidade subjetiva, pois comprovado o dolo do agente, não há como, na hipótese, reconhecer presente a tipicidade material, que consiste na relevância penal da conduta e do resultado típicos em face da significância da lesão produzida no bem jurídico tutelado pelo Estado, já que o bem furtado – uma bicicleta – foi infimamente avaliada – R$ 100,00 (cem reais) – não havendo qualquer notícia de que a vítima tenha logrado prejuízo, seja com a conduta do acusado, seja com a consequência dela, mostrando-se carente de justa causa a deflagração de ação penal no caso, pois o resultado jurídico, ou seja, a lesão produzida, mostra-se absolutamente irrelevante.

Nesse diapasão, desta Quinta Turma:

“HABEAS CORPUS. ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. ATO INFRACIONAL EQUIPARADO AO CRIME DE FURTO QUALIFICADO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA.
INCIDÊNCIA. AUSÊNCIA DE TIPICIDADE MATERIAL. TEORIA CONSTITUCIONALISTA DO DELITO. INEXPRESSIVA LESÃO AO BEM JURÍDICO TUTELADO. ORDEM CONCEDIDA.

“1. O princípio da insignificância surge como instrumento de interpretação restritiva do tipo penal que, de acordo com a dogmática moderna, não deve ser considerado apenas em seu aspecto formal, de subsunção do fato à norma, mas, primordialmente, em seu conteúdo material, de cunho valorativo, no sentido da sua efetiva lesividade ao bem jurídico tutelado pela norma penal, consagrando os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima.

“2. Indiscutível a sua relevância, na medida em que exclui da incidência da norma penal aquelas condutas cujo desvalor da ação e/ou do resultado (dependendo do tipo de injusto a ser considerado) impliquem uma ínfima afetação ao bem jurídico.

“3. A subtração de um par de chinelos, um frasco de shampoo e um frasco de VEJA, avaliados em R$ 19,00 (dezenove reais), por seis adolescentes, embora se amolde à definição jurídica do crime de furto, não ultrapassa o exame da tipicidade material, mostrando-se desproporcional a sanção penal, uma vez que a ofensividade das condutas se mostrou mínima; não houve nenhuma periculosidade social da ação; a reprovabilidade dos comportamentos foram de grau reduzidíssimo e a lesão ao bem jurídico se revelou inexpressiva.

“4. Ordem concedida para determinar o restabelecimento da sentença” (HC n.º 67.905/SP, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, j. em 7-8-2008).
“HABEAS CORPUS. TENTATIVA DE FURTO DE 09 LÂMINAS DE ALUMÍNIO AVALIADAS EM 20 REAIS. LESÃO MÍNIMA. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. APLICABILIDADE. ORDEM CONCEDIDA.

“1. O princípio da insignificância, que está diretamente ligado aos postulados da fragmentariedade e intervenção mínima do Estado em matéria penal, tem sido acolhido pelo magistério doutrinário e jurisprudencial tanto desta Corte, quanto do colendo Supremo Tribunal Federal, como causa supra-legal de exclusão de tipicidade.

Vale dizer, uma conduta que se subsuma perfeitamente ao modelo abstrato previsto na legislação penal pode vir a ser considerada atípica por força deste postulado.

“2. Entretanto, é imprescindível que a aplicação do referido princípio se dê de forma prudente e criteriosa, razão pela qual é necessária a presença de certos elementos, tais como (I) a mínima ofensividade da conduta do agente; (II) a ausência total de periculosidade social da ação; (III) o ínfimo grau de reprovabilidade do comportamento e (IV) a inexpressividade da lesão jurídica ocasionada, consoante já assentado pelo colendo Pretório Excelso (HC 84.412/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO, DJU 19.04.04).

“3. No caso em apreço, aplicável o postulado permissivo, eis a mínima reprovabilidade e ofensividade da conduta. Precedentes.

“4. Ordem concedida, para, aplicando o princípio da insignificância, absolver o ora paciente, com fulcro no art. 386, inciso III do Código de Processo Penal, apesar do parecer ministerial em sentido contrário” (HC n.º 99.990/SP, rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, j. em 18-9-2008).

Vale destacar, por outro lado, a existência de corrente jurisprudencial no sentido de que a presença de circunstâncias de caráter pessoal desfavoráveis, tais como o registro de processos criminais em andamento, de antecedentes criminais ou mesmo eventual reincidência não seriam impeditivas do reconhecimento da atipicidade material da conduta pela incidência do princípio da insignificância, “pois este está diretamente ligado ao bem jurídico tutelado, que na espécie, devido ao seu pequeno valor econômico, está excluído do campo de incidência do direito penal” (HC 108.615/SP, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, QUINTA TURMA, julgado em 27/11/2008, DJe 16/02/2009).
[…]

Diante do exposto, evidenciada a ausência de ofensa ao artigo 155, § 4.º, inciso I, c/c art. 14, inciso II, ambos do Estatuto Repressivo, já que o fato denunciado é penalmente irrelevante e, por isso, atípico, concede-se a ordem para absolver o paciente, com fulcro no artigo 386, inciso III, do Código de Processo Penal.

É o voto.

Ronaldo Botelho é advogado e professor da Escola da Magistratura.