Fundamentação idônea como garantia de imparcialidade

            Existe iterativa jurisprudência difundindo os marcos técnico-jurídicos para que se possa decretar uma prisão preventiva válida. A ementa abaixo é mais um exemplo. Porém, com uma pequena inovação. Veja-se:

 

“PROCESSO PENAL CONSTITUCIONAL. PRISÃO CAUTELAR, NA MODALIDADE PREVENTIVA. FUNDAMENTAÇÃO JUDICIAL INSUFICIENTE PARA PREENCHER O CONTEÚDO MÍNIMO DA GARANTIA QUE SE LÊ NO INCISO IX DO ART. 93 DA CF. FUNDAMENTOS VAGOS, RETÓRICOS E REFUGADOS PELA AMPLA JURISPRUDÊNCIA DO STF. ORDEM CONCEDIDA.

1.  A garantia da fundamentação dos julgamentos importa o dever judicante da real ou efetiva demonstração de que o aprisionamento de alguém atende a pelo menos um dos requisitos do art. 312 do Código de Processo Penal. Sem o que se dá a inversão da lógica elementar da Constituição, segundo a qual a presunção de não-culpabilidade é de prevalecer até o momento do trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Até porque, no julgamento do HC 84.078, o Supremo Tribunal Federal, por maioria de votos, entendeu inconstitucional a execução provisória da pena. Na oportunidade, assentou-se que o cumprimento antecipado da sanção penal ofende o direito constitucional à presunção de não culpabilidade. Direito subjetivo do indivíduo que tem a sua força quebrantada numa única passagem da Constituição Federal. Leia-se: “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei” (inciso LXI do art. 5º).

2. Enquanto a incolumidade das pessoas e do patrimônio alheio é a própria razão de ser da criminalização das condutas a ela contrárias, a ordem pública é algo também socialmente valioso – e por isso juridicamente protegido -, não se confundindo mesmo com tal incolumidade. Cuida-se de bem jurídico a preservar por efeito, justamente, do modo personalizado ou das especialíssimas circunstâncias subjetivas em que se deu a concreta violação da integridade das pessoas e do patrimônio de outrem, como também da saúde pública. Pelo que ela, ordem pública, se revela como bem jurídico distinto daquela incolumidade em si, mas que pode resultar mais ou menos fragilizado pelo próprio modo ou em decorrência das circunstâncias em que penalmente violada a esfera de integridade das pessoas ou do patrimônio de terceiros. Daí a sua categorização jurídico-positiva, não como descrição de delito ou cominação de pena, mas como pressuposto de prisão cautelar; ou seja, como imperiosa necessidade de acautelar o meio social contra fatores de perturbação que já se localizam na mencionada gravidade incomum na execução de certos crimes. Não da incomum gravidade desse ou daquele delito, entenda-se. Mas da incomum gravidade da protagonização em si do crime e de suas circunstâncias, levando à consistente ilação de que, solto, o agente reincidirá no delito, ou, então, atuará de modo a facilitar o respectivo acobertamento. Donde o prefalado vínculo operacional entre necessidade de preservação da ordem pública e acautelamento do meio social. Conceito de ordem pública que se desvincula do conceito de incolumidade das pessoas e do patrimônio alheio, mas que se enlaça umbilicalmente ao conceito de acautelamento do meio social.

3. É certo que, para condenar penalmente alguém, o órgão julgador tem que olhar para trás e ver em que medida os fatos delituosos e suas circunstâncias dão conta da culpabilidade do acusado. Já no que toca à decretação da prisão preventiva, se também é certo que o juiz valora esses mesmos fatos e circunstâncias, ele o faz na perspectiva da aferição da periculosidade do agente. Não propriamente da respectiva culpabilidade. Pelo que o quantum da pena está para a culpabilidade do agente assim como o decreto de prisão preventiva está para a periculosidade, pois é tal periculosidade que pode colocar em risco o meio social quanto à possibilidade de reiteração delitiva (cuidando-se, claro, de prisão preventiva com fundamento na garantia da ordem pública). Donde a firme jurisprudência do Supremo Tribunal Federal no sentido de que a simples alusão à gravidade do delito ou a expressões de mero apelo retórico não valida a ordem de prisão cautelar. Isso porque a ameaça que o agente representaria à ordem pública só é de ser aferida com a própria tessitura dos fatos. É dizer: o juízo de que determinada pessoa encarna verdadeiro risco à coletividade só é de ser feito com base no quadro fático da causa e, nele, fundamentado o respectivo decreto de prisão cautelar. Sem o que não se demonstra o necessário vínculo operacional entre a necessidade da prisão cautelar do acusado e o efetivo acautelamento do meio social.

4. No caso, não se encontra no decreto de prisão o conteúdo mínimo da garantia da fundamentação real das decisões judiciais. Garantia constitucional que se lê na segunda parte do inciso LXI do art. 5º e na parte inicial do inciso IX do art. 93 da Constituição Federal e sem a qual não se viabiliza a ampla defesa nem se afere o dever do juiz de se manter eqüidistante das partes processuais em litígio. Noutro falar: garantia processual que junge o magistrado a coordenadas objetivas de imparcialidade e propicia às partes conhecer os motivos que levaram o julgador a decidir neste ou naquele sentido.

5. Ordem concedida para cassar o desfundamentado decreto de prisão cautelar; ressalvada a possibilidade de expedição de novo título prisional, embasado na concretude da causa.”

(STF – HC 105879/PE – 2ª T. – Rel. Min. Ayres Britto – DJe de 24.8.11. Destaques não originais)

 

            No corpo do acórdão, constam os seguintes fundamentos:

 

“O SENHOR MINISTRO AYRES BRITTO (RELATOR)

Feito o relatório, passo ao voto. Ao fazê-lo, anoto que o tema central deste habeas corpus consiste em saber se o decreto de prisão preventiva de Luciano da Silva Arimatéa ou Luciano da Silva Arimatéia está, ou não, devidamente fundamentado. Mais: saber se essa fundamentação encontra lastro factual idôneo a justificar o confinamento cautelar do paciente.

(…)

19. Assim postas as coisas, tenho por desatendida a necessidade de fundamentação das decisões judiciais. Isso porque a mera referência vernacular à garantia da ordem pública não tem a força de corresponder à teleologia do art. 312 do CPP. Até porque, no julgamento do HC 84.078, o Supremo Tribunal Federal, por maioria de votos, entendeu inconstitucional a execução provisória da pena. Na oportunidade, assentou-se que o cumprimento antecipado da sanção penal ofende o direito constitucional à presunção de não culpabilidade. Direito subjetivo do indivíduo que tem a sua força quebrantada numa única passagem da Constituição Federal. Leia-se: ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei’ (inciso LXI do art. 5º).

20. Nessa contextura, a garantia da fundamentação importa o dever judicante da real ou efetiva demonstração de que a segregação atende a pelo menos um dos requisitos do art. 312 do Código de Processo Penal. Sem o que se dá a inversão da lógica elementar da Constituição, segundo

a qual a presunção de não-culpabilidade é de prevalecer até o momento do trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Donde a firme jurisprudência do Supremo Tribunal Federal no sentido de que a simples alusão à gravidade do delito ou a expressões de mero apelo retórico não

valida a ordem de prisão cautelar. Isso porque a ameaça que o agente representaria à ordem pública só é de ser aferida com a própria tessitura dos fatos. É dizer: o juízo de que determinada pessoa encarna verdadeiro

risco à coletividade só é de ser feito com base no quadro fático da causa e, nele, fundamentado o respectivo decreto de prisão cautelar. Sem o que não se demonstra o necessário vínculo operacional entre a necessidade da prisão cautelar do acusado e o efetivo acautelamento do meio social.

21. Nesse mesmo rumo de idéias, não vejo como validar a ordem prisional quanto aos demais fundamentos lançados pelo Juízo processante (garantia da instrução criminal e da aplicação da lei penal). É

que, da mesma forma, não encontro no decreto de prisão o conteúdo mínimo da garantia da fundamentação real das decisões judiciais. Garantia constitucional que se lê na segunda parte do inciso LXI do art. 5º e na parte inicial do inciso IX do art. 93 da Constituição Federal e sem a qual não se viabiliza a ampla defesa nem se afere o dever do juiz de se manter eqüidistante das partes processuais em litígio. Noutro falar: garantia processual que junge o magistrado a coordenadas objetivas de imparcialidade e propicia às partes conhecer os motivos que levaram o julgador a decidir neste ou naquele sentido. E assim o digo porque não se preocupou o magistrado em fundamentar o receio de a liberdade do acusado obstruir o regular andamento da instrução criminal. É dizer: não há no decreto de prisão um link entre a liberdade do acusado e eventual dificuldade na coleta dos elementos de convicção necessários ao alcance da verdade processual, notadamente quanto à indevida influência à prova testemunhal.

22. Já me encaminhando para o final deste voto, consigno que a aplicação da lei penal, na concreta situação dos autos, também não se presta para justificar a manutenção do paciente no cárcere. Isso porque, nesse ponto específico, se limita a afirmar que, na delegacia policial, o paciente forneceu endereço incompleto.

23. Sucede que, bem vistas as coisas, essa premissa da ordem prisional não se sustenta. Tanto que a leitura do termo de declarações que instrui a inicial dá conta de que ele, paciente, não só forneceu seu endereço residencial, como indicou local de trabalho (com pontos de referências) e telefones.

24. Esse o quadro, concedo a ordem. O que faço para cassar o desfundamentado decreto prisional; ressalvada a possibilidade de expedição de novo título prisional, embasado na concretude da causa.

25. É como voto.” (destaques não originais)

 

N o t a s

 

            Sempre que se vincula em um acórdão, expressamente, o defeito de fundamentação de determinada decisão com a necessidade de obediência ao art. 93, IX, da Constituição Federal, a Democracia brasileira amadurece mais. E é frequente o vício de motivação.

Em que pese o brilhantismo da decisão acima, ela ainda representa orientação minoritária. É que há vigorosa jurisprudência que se prende a uma série de obstáculos formais para não ter de endereçar o grave problema da (des)fundamentação das decisões judiciais.

Decisões em recursos especiais e extraordinários, por exemplo, normalmente veiculam o entendimento de que o juiz não é obrigado a responder a todas as teses das partes, podendo, inclusive, “negar implicitamente” os argumentos. Em habeas corpus, é firme a posição de que não se pode avaliar a adequação ou não da motivação da decisão, pois, para tanto, seria necessário o reexame dos fatos e provas, o que é vedado na ação constitucional.

Decisões como a ora comentada somente não são mais raras porque tratam de prisão, o que tende a chamar mais a atenção do julgador. Mas o fato é que o problema é sempre preocupante, independentemente do ramo do Direito e do fato em discussão. E é nesse sentido que interessa, aqui, o ponto levantado pelo STJ: o da parcialidade do magistrado.

Efetivamente, o problema da ausência ou da insuficiência de fundamentos a sustentar a conclusão do juiz pode esconder o vício da parcialidade, na medida em que sonega, das partes e da sociedade, o direito de saber quais as (verdadeiras) razões que o levaram a decidir de determinada forma. Se as razões reais não são ditas, decerto é porque não podem sê-lo. Por isso, a decisão é iníqua. É aí que se não pode, em nenhuma hipótese, criar embaraços ao conhecimento e ao reparo do vício de fundamentação: a decisão de um juiz suspeito é sempre nula, seja em caso de prisão ou não.

 

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