A decisão abaixo transcrita lida com aspectos atuais do foro criminal econômico. Leia-se a ementa:
“PENAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. FALSIDADE IDEOLÓGICA. EXTINÇÃO DA AÇÃO PENAL. CRIME-MEIO PARA O DESCAMINHO. AÇÃO PENAL EXTINTA QUANTO A ESTE DELITO POR AUSÊNCIA DE PRÉVIA CONSTITUIÇÃO DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO NA ESFERA ADMINISTRATIVA. ABSORÇÃO DO FALSUM PELO CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. DENÚNCIA QUE NARRA A FALSIDADE COMO INSTRUMENTO PARA A SUPRESSÃO DE TRIBUTOS. ABSORÇÃO. FORMAÇÃO DE QUADRILHA OU BANDO. NÃO CARACTERIZAÇÃO DE SEUS ELEMENTOS. RECURSO ORDINÁRIO A QUE SE DÁ PROVIMENTO.
1. O princípio da consunção resolve o conflito aparente de normas penais quando um crime menos grave é meio necessário ou normal fase de preparação ou de execução de outro mais nocivo. Em casos que tais, o agente só será responsabilizado pelo último. Para tanto, é imprescindível a constatação de nexo de dependência das condutas a fim de que ocorra a absorção daquela menos grave pela mais danosa.
2. Narra a denúncia que a falsidade teria sido praticada mediante desígnios autônomos, não podendo, por conseguinte, ser considerada crime meio para o descaminho. Todavia, a mesma denúncia também consignou que o falsum – ocultação do nome da empresa AGIS EQUIPAMENTOS E SERVIÇOS DE INFORMÁTICA LTDA – fora praticado com o fito de resguardar a empresa da atuação da Receita Federal, tendo em vista que as operações de importação tidas como fraudulentas seriam feitas por meio de pessoa jurídica interposta.
3. No caso, a acusação relativa ao crime de falsidade ideológica está indissociavelmente ligada à descrição do crime contra a ordem tributária, cuja apuração se apresentou carente de justa causa dada a ausência de constituição definitiva do crédito tributário na esfera administrativa. A conduta descrita no art. 299 do Código Penal, se realmente foi praticada, o foi com o propósito deliberado de iludir o Fisco, não podendo, na espécie, ser tratado como delito autônomo. As Declarações de Importação tidas como ideologicamente falsas somente poderiam ser utilizadas para iludir o pagamento dos tributos, ou seja, a potencialidade lesiva de tais documentos, por assim dizer, se esgotaria em tal conduta.
4. Relativamente ao crime do art. 288 do Código Penal, a denúncia não expõe, quanto aos recorrentes, a finalidade específica da associação. A inicial apenas indicou que os acusados ‘todos previamente acordados e conscientes da ilicitude de suas condutas, associaram-se para o cometimento de crimes’. Não há, na formação de sociedade empresária, ao menos em princípio, o desígnio de cometer crimes.
5. Recurso provido a fim de extinguir a Ação Penal nº 2007.70.00.016026-7 – Terceira Vara Federal Criminal de Curitiba.”
(STJ – RHC 29028/PR – 6ª T. – Rel. Des. Conv. do TJSP Celso Limongi – DJe de 28.9.11. Destacamos)
Do corpo do voto do Min. relator, sobressaem relevantes fundamentos:
“O EXMO. SR. MINISTRO CELSO LIMONGI (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ⁄SP) (Relator):
O princípio da consunção resolve o conflito aparente de normas penais quando um crime menos grave é meio necessário ou normal fase de preparação ou de execução de outro mais nocivo. Em casos que tais, o agente só será responsabilizado pelo último. Para tanto, é imprescindível a constatação de nexo de dependência das condutas a fim de que ocorra a absorção daquela menos grave pela mais danosa.
(…)
Na situação concreta, sustentam os recorrentes que houve relação de subordinação entre a falsidade ideológica e o descaminho – o uso de empresa interposta nas Declarações de Importação se deu apenas para que os acusados conseguissem levar a cabo o crime do art. 334, § 3º, do Código Penal. Dou-lhes razão. Como vimos do relatório, narra a denúncia que a falsidade teria sido praticada mediante desígnios autônomos, não podendo, por conseguinte, ser considerada crime meio para o descaminho. Todavia, a mesma denúncia também consignou que o falsum – ocultação do nome da empresa AGIS EQUIPAMENTOS E SERVIÇOS DE INFORMÁTICA LTDA – fora praticado com o fito de resguardar a empresa da atuação da Receita Federal, tendo em vista que as operações de importação tidas como fraudulentas seriam feitas por meio de pessoa jurídica interposta.
(…)
Ora, no caso, a acusação relativa ao crime de falsidade ideológica está indissociavelmente ligada à descrição do crime contra a ordem tributária, cuja apuração, como vimos do relatório, se apresentou carente de justa causa dada a ausência de constituição definitiva do crédito tributário na esfera administrativa. Em meu sentir, a conduta descrita no art. 299 do Código Penal, se realmente foi praticada, o foi com o propósito deliberado de iludir o Fisco, não podendo, na espécie, ser tratado como delito autônomo. Repare-se que as Declarações de Importação tidas como ideologicamente falsas somente poderiam ser utilizadas para iludir o pagamento dos tributos, ou seja, a potencialidade lesiva de tais documentos, por assim dizer, se esgotaria em tal conduta. Dito em outras palavras, em meu sentir, estamos diante de ação cuja relevância penal está irremediavelmente vinculada a um fim específico, qual seja, resguardar a empresa AGIS da atuação da Receita Federal.
(…)
Foi indicado, ainda, o crime de quadrilha ou bando, supondo-se, conforme a definição, que se associaram as pessoas para o fim de cometer crimes, porém a denúncia não expõe, quanto aos recorrentes, a finalidade específica da associação. Como se vê das transcrições acima, a inicial apenas indicou que os acusados ‘todos previamente acordados e conscientes da ilicitude de suas condutas, associaram-se para o cometimento de crimes’. Não há, na formação de sociedade empresária, ao menos em princípio, o desígnio de cometer crimes. Sabemos que seu objetivo essencial é o exercício de uma atividade econômica. Segundo penso, ainda que exista naqueles que constituem a sociedade empresária o intuito de praticar crime contra a ordem tributária, isso não é suficiente para deixar de admitir que tal prática é sempre secundária. Ademais, quem constitui sociedade empresária, ainda que tenha a intenção de suprimir tributos, ou de praticar outros crimes contra a ordem tributária, não comete o delito de quadrilha ou bando. A configuração do tipo descrito no art. 288 do Código Penal pressupõe o fim ilícito como fim principal, se não o fim único da associação. A conclusão a que estou chegando é a de que não é razoável admitir que alguém pratique uma atividade econômica somente com o intuito de suprimir ou de reduzir o pagamento de tributos. A denúncia pode, em certas ocasiões, ser resumida, não pode, porém, cair no vazio, pecar por omissão ou imprecisão. No caso, a impressão que tenho é a de que, relativamente ao crime de quadrilha, carece a denúncia de aptidão formal.
(…)
Tais as circunstâncias, dou provimento ao recurso a fim de extinguir a Ação Penal nº 2007.70.00.016026-7 – Terceira Vara Federal Criminal de Curitiba.
É como voto.” (destacamos)
N o t a s
A solução com o método da consunção nunca dispensa o cuidado com as especificidades do caso concreto: é um exame individualizado que, no caso em questão, tem por referência primordial a versão da própria acusação, delimitada na denúncia. Nota-se, das informações do voto já transcrito, que foi a própria petição inicial do Ministério Público, em sua narrativa fática, que indicou a falsidade ideológica não como um crime autônomo, mas como um meio regular (isto é, normal) para a suposta sonegação fiscal.
O relator apurou que, de acordo com a acusação, a alegada falsidade nas Declarações de Importação somente produziriam resultado lesivo no âmbito tributário, de forma que a conduta dos acusados visaria não o falso em si, mas apenas a redução da carga tributária. Tal conclusão é inevitável quando analisada, p.ex., a redação típica do artigo 1º da Lei 8.137/90, em que se visualiza a fraude (substrato material do falso) como meio para a supressão e redução de tributo. Quanto ao descaminho, é certo que também o verbo “iludir” engloba o falso os subterfúgios a ele inerentes, cfe. Noronha: “é também com a liberação que se consuma o descaminho: a fraude ou o expediente surtiu efeito, iludiu as autoridades alfandegárias, entrando o destinatário na posse da coisa sem pagar os tributos ou direitos respectivos” (NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal. 4. v. São Paulo: Saraiva, 1962, p. 445. Destacamos).
Quanto ao crime de quadrilha, são louváveis as ponderações constantes do voto. Isso porque existe, hoje, um movimento vilanizador do empresário que é acusado de crime – como se a sua atividade profissional, da noite para o dia, fosse transmutada em atividade delituosa por força da simples existência de um processo criminal contra si. O que se registrou foi que, em princípio, toda sociedade comercial exerce atividade lícita – ainda que se localize, p.ex., a prática de sonegação fiscal na empresa. O que se deve averiguar, antes de se proceder a conclusões ofensivas, é qual era a finalidade da atividade do empresário no momento em que constituiu a empresa. Ver-se-á que, na grande maioria das vezes, vigia a boa-fé. E ela não é incompatível com eventuais irregularidades que possam configurar crimes. Ou, nas palavras do Min. Celso Limongi: “a conclusão a que estou chegando é a de que não é razoável admitir que alguém pratique uma atividade econômica somente com o intuito de suprimir ou de reduzir o pagamento de tributos” (destacamos).