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O Supremo Tribunal Federal, em decisão recente, abordou a consequência jurídica adequada que deve ser determinada em casos nos quais a decisão de pronúncia contenha excesso de linguagem. Veja-se a ementa:

“HABEAS CORPUS. PENAL. TRIBUNAL DO JÚRI. HOMICÍDIO SIMPLES. MAGISTRADO APOSENTADO. SENTENÇA DE PRONÚCIA. EXCESSO DE LINGUAGEM. NULIDADE ABSOLUTA. VOTO MÉDIO PROFERIDO PELO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. DESENTRANHAMENTO DA SENTENÇA DE PRONÚNCIA: INVIABILIDADE. AFRONTA À SOBERANIA DO JÚRI. ORDEM CONCEDIDA.

1. O Tribunal do Júri tem competência para julgar magistrado aposentado que anteriormente já teria praticado o crime doloso contra a vida objeto do processo a ser julgado. Precedentes.

2. A jurisprudência deste Supremo Tribunal Federal é firme no sentido de que o defeito de fundamentação na sentença de pronúncia gera nulidade absoluta, passível de anulação, sob pena de afronta ao princípio da soberania dos veredictos. Precedentes.

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3.  Depois de formado o Conselho de Sentença e realizada a exortação própria da solene liturgia do Tribunal do Júri, os jurados deverão receber cópias da pronúncia e do relatório do processo; permitindo-se a eles, inclusive, o manuseio dos autos do processo-crime e o pedido ao orador para que indique a folha dos autos onde se encontra a peça por ele lida ou citada.

4. Nos termos do que assentado pelo Supremo Tribunal Federal, os Juízes e Tribunais devem submeter-se, quando pronunciam os réus, à dupla exigência de sobriedade e de comedimento no uso da linguagem, sob pena de ilegítima influência sobre o ânimo e a vontade dos membros integrantes do Conselho de Sentença; excede os limites de sua competência legal, o órgão judiciário que, descaracterizando a natureza da sentença de pronúncia, converte-a, de um mero juízo fundado de suspeita, em um inadmissível juízo de certeza. Precedente.

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5.  A solução apresentada pelo voto médio do Superior Tribunal de Justiça representa não só um constrangimento ilegal imposto ao Paciente, mas também uma dupla afronta à soberania dos veredictos assegurada à instituição do júri, tanto por ofensa ao Código de Processo Penal, conforme se extrai do art. 472, alterado pela Lei n. 11.689/2008, quanto por contrariedade ao art. 5º, inc. XXXVIII, alínea ‘c’, Constituição da República.

6. Ordem concedida para anular a sentença de pronúncia e os consecutivos atos processuais que ocorreram no processo principal.”

(STF – HC 103037/PR – 1ª T. – Rel. Min. Cármen Lúcia – DJe de 31.5.11)

 

            Da leitura da íntegra do acórdão, destacam-se os trechos a seguir, que permitem o conhecimento de alguns detalhes dos debates. Confira-se o voto da Min. Cármen Lúcia:

 

“Três são as questões suscitadas na presente impetração: (…) c) ausência de ‘amparo constitucional, legal e jurisprudencial‘ para o ‘lacre‘ da sentença de pronúncia.”

 

Do voto do Min. Luiz Fux:

“(…) cabe realmente ao jurado conhecer todas as peças dos autos para que ele possa se pronunciar sobre o mérito em causa, sobre a questão de fundo submetida à apreciação judicial. E tanto é assim que o artigo 473 permite que os jurados tenham vista de todas as peças dos autos, entre as quais a sentença de pronúncia, que, por força do artigo 473, deve ser fundamentada, mas limitar-se à indicação de materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria.”

 

O Min. Dias Toffoli:

“Senhora Presidente, em alguns países, diante do apoderamento de setores da sociedade por organizações criminosas, criou-se a figura do juiz sem rosto, para a proteção da magistratura, havendo, de qualquer modo, decisão.

Já se aventou a possibilidade de criação dessa figura no Brasil, mas isso daria azo a um debate enorme, em razão, entre outros, do princípio do juiz natural.

Entretanto, nunca tinha ouvido falar de decisão sem decisão; há a decisão, mas não há o juiz. Realmente, como fiz o Ministro Marco Aurélio, quando pensamos que já vimos de tudo em matéria jurídica, nós nos deparamos com novidades.”

 

Após, o voto do Min. Ricardo Lewandowski:

“Também compartilho com os eminentes Ministros a minha surpresa e até estupefacção pelo fato de poder existir, em nosso ordenamento jurídico, uma peça processual secreta ou sigilosa inclusive para os julgadores, porque, no Júri, que julga são os jurados.”

 

E, por fim, o Min. Marco Aurélio:

“Ressalto que o processo não corre em segredo de justiça, mesmo porque, se corresse, não seria para os julgadores. E decisão interlocutória não é simples certidão, há de ter fundamentação. Concedo a ordem para declarar a insubsistência da sentença de pronúncia, a fim de que outra venha à balha nos moldes, na linguagem própria.”

 

N o t a s

 

Embora não tenha constado da ementa, o que se discutia, na realidade, era a possibilidade de “lacrar” ou de se “envelopar” a decisão de pronúncia, tornando-a inacessível aos jurados, como forma de se tentar impedi-los de conhecer o excesso de linguagem do magistrado pronunciante. Tal perspectiva corresponde à violação da publicidade dos atos processuais (CF, art. 5º, LX), que, segundo ferrajoli, é uma garantia de segundo grau ou garantia de garantias (Ferrajoli, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: RT, 2002, p. 492). A publicidade é fonte de legitimidade e mecanismo de controle, pelas partes e pela sociedade, das decisões judiciais, daí porque, segundo o texto constitucional, a lei só poderá restringi-la quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem (Mendes, Gilmar. Curso de Direito constitucional. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 503).

O “lacre” ou o “envelopamento” da pronúncia como consequência do reconhecimento de vício insanável não se encontra entre essas exceções à publicidade. No Estado Democrático de Direito, a publicidade é a regra e o sigilo a exceção (Mendes, Gilmar. Curso de Direito constitucional. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 504). Seria verdadeira subversão a utilização de uma garantia fundamental declarada em favor do acusado e da sociedade para relativizar manifesto error in procedendo cometido pelo magistrado pronunciante, além de prejudicar o interesse público à informação e o controle das decisões judiciais (CF, art. 93, IX).

Ainda sob o enfoque constitucional, percebe-se que a medida utilitarista de “lacrar” a decisão ilegal melindrou igualmente o princípio-garantia do devido processo legal (CF, art. 5º, LIV), pois o prosseguimento do processo sem uma peça fundamental – que, aliás, baliza a acusação no Júri, nos termos do art. 476, do CPP – impede que os jurisdicionados fiscalizem a autuação do Judiciário, sob a perspectiva da fidelidade às limitações e permissões impostas na lei. O “lacre” da pronúncia é indevido, ainda, sob a perspectiva da lei ordinária. Ao se obstaculizar a leitura pelos jurados da decisão, nega-se vigência concomitante ao art. 472, parágrafo único; e ao art. 480, §§ 2º e 3º, ambos do CPP, que dispõem justamente acerca dessa faculdade do Juiz leigo.

Enfim, não há como compatibilizar o preceito constitucional da publicidade dos atos processuais com o sigilo em relação ao acesso dos jurados a uma peça fundamental do processo. Em sentido complementar, as violações à lei de regência revelam ofensa direta ao devido processo legal.

A consequência do “lacre”, e, igualmente, do desentranhamento, importam, também, violação ao art. 573, caput, e § 1º, do CPP. É imposição legal a renovação de ato cuja nulidade não tenha sido sanada. Por outro lado, se o ato nulo, uma vez declarado, estende seus efeitos aos demais que dele dependam ou sejam consequentes (§1º), não será o “envelopamento” da pronúncia que evitará a contaminação por excesso de linguagem dos atos subsequentes, especialmente porque a pronúncia – repita-se – baliza a acusação (CPP, art. 476).

A verdade é que o reconhecimento de nulidade absoluta impossibilita qualquer tentativa de aproveitamento do ato viciado. Ainda que se pudesse articular com a necessidade de demonstração de prejuízo, este seria evidente não só pela inovação judicial – em prejuízo do acusado – quanto a uma consequência jurídica não prevista na lei, mas, também, pelo fato de que uma decisão nula deflagrará a segunda fase do Júri, tornando o princípio do devido processo legal verdadeira ficção jurídica.

O prejuízo pode ser deduzido também do óbice criado à produção de eventuais efeitos benéficos ao acusado que de uma pronúncia prolatada com linguagem controlada poderiam ser extraídos, já que a acusação, após a instrução, é feita com base estrita nos limites traçados pela decisão de pronúncia. Para efeito do exercício da ampla defesa e do contraditório, é melhor a renovação do ato judicial segundo os parâmetros legais do que o seu descarte.

A posição dos Tribunais acerca da consequência adotada em hipóteses nas quais se reconhece o excesso de linguagem na pronúncia corresponde à anulação da decisão, mesmo após o advento da Lei nº 11.689/08. Permanece, ainda, o interesse de agir na alegação de nulidade por excesso de linguagem diante da possibilidade dos jurados lerem a pronúncia, se assim quiserem (CPP, art. 472, parágrafo único, e art. 480, §§ 2º e 3º; vide: STJ – REsp 946.289/PE – Rel. Min. ARNALDO ESTEVES LIMA – QUINTA TURMA – DJ 16/03/2009.)

Cumpre reproduzir precedentes (um do STF e outro do STJ) proferidos após a reforma processual penal, que, ao reconhecerem o defeito da pronúncia, determinaram sua renovação:

“PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS, ART. 408 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. PRONÚNCIA. ELOQUÊNCIA ACUSATÓRIA. AFIRMATIVA DE AUTORIA. PRONUNCIAMENTO SOBRE OS ASPECTOS SUBJETIVOS DA CONDUTA DO ACUSADO. AFASTAMNENTO DE POSSÏVEL TESE DEFENSIVA. PEÇA QUE PODE INFLUIR INDEVIDAMENTE NO CONVENCIMENTO DOS JURADOS. PRINCÍPIO DA SOBERANIA DOS VEREDICTOS DO JURI. OFENSA CARACTERIZADA. ORDEM CONCEDIDA. I – Fere o princípio da soberania dos veredictos a afirmação peremptória do magistrado, na sentença de pronúncia, que se diz convencido da autoria do delito. II – A decisão de pronúncia deve guardar correlação, moderação e comedimento com a fase de mera admissibilidade e encaminhamento da ação penal ao Tribunal do Júri. III – Ordem concedida.” (STF – HC 93299 – 1a T. – Rel. Min. Ricardo Lewandowski – DJe de 24.10.08)

 “HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO DOLOSO. PRONÚNCIA. EXCESSO DE LINGUAGEM. JUÍZO DE CERTEZA DA AUTORIA E AFASTAMENTO PEREMPTÓRIO DE TESES DEFENSIVAS. INDEVIDA INVASÃO NA COMPETÊNCIA DOS JURADOS. CONSTRANGIMENTO ILEGAL. INOVAÇÕES TRAZIDAS PELA LEI Nº 11.689/08. RESTRIÇÃO À LEITURA DE PEÇAS. PREJUDICIALIDADE DO PEDIDO. INOCORRÊNCIA. ENTREGA DA PRONÚNCIA AOS JURADOS. POSSIBILIDADE DE INDEVIDA INFLUÊNCIA CARACTERIZADA.

1. Configura-se excesso de linguagem quando o Magistrado, ao proferir decisão de pronúncia, avança indevidamente na matéria de competência constitucional do Tribunal do Júri.

2. No caso, o Magistrado afirmou categoricamente a autoria do crime atribuído ao paciente, além de afastar qualquer possibilidade de acolhimento da tese defensiva segundo a qual a morte da vítima decorreria do mau atendimento médico.

3. Embora a Lei nº 11.689/08 tenha restringido a possibilidade de leitura de peças em Plenário, não há falar em prejudicialidade do pedido, uma vez que o art. 472, parágrafo único, do CPP, prevê que os jurados receberão cópia da pronúncia ou das decisões posteriores que julgaram admissível a acusação (por exemplo, o acórdão do recurso em sentido estrito).

4. Além disso, o art. 480, § 3º, do CPP, dispõe que os jurados terão acesso aos autos, o que evidencia a possibilidade de indevida influência.

5. Ordem concedida, para anular a decisão de pronúncia, determinando seu desentranhamento dos autos, bem como assegurar que outra seja proferida, em observância aos preceitos legais.” (STJ – HC 85591/GO – 6a T. – Rel. Min. Og Fernandes – DJe de 8.6.09)

 

Finalmente, ilustra-se a explanação com as seguintes indagações:

a) As outras peças processuais que citam trechos da pronúncia ilegal, como os votos de magistrados em recursos, pareceres do MP e outros, também não deveriam ser desentranhados ou “lacrados”? E isso seria possível?

b) Caso essas cópias da decisão ilegal anteriormente extraídas sejam divulgadas pela imprensa, como censurá-la?

 “Envelopar”, “lacrar” ou desentranhar a decisão de pronúncia, como o suposto efeito jurídico para o reconhecimento de nulidade insanável, é ato ilegal, quer porque essas consequências estão desgarradas da sistemática técnico-processual, quer porque não está presente nenhuma hipótese justificadora do afastamento da regra da publicidade dos atos processuais (que só poderia ser excepcionado para fins de preservação do direito à intimidade ou de interesse público maior, e jamais para esconder pronunciamento judicial manifestamente nulo – CF, art. 93, IX). A declaração da nulidade absoluta, assim, é a única medida jurídica cabível, tal como decidido pelo STF.