Estelionato

Rel.: Min. Marco Aurélio

Ementa

O crime consubstanciado na concessão de aposentadoria a partir de dados falsos é instantâneo, não o transmudando em permanente o fato de terceiro haver sido beneficiado com a fraude de forma projetada no tempo. A óptica afasta a contagem do prazo prescricional a partir da cessação dos efeitos – artigo 111, inciso III, do Código Penal. Precedentes: Habeas Corpus n.ºs 75.053-2/SP, 79.744-0/SP e 84.998-9/RS e Recurso Ordinário em Habeas Corpus n.º 83.446-9/RS, por mim relatados perante a Segunda Turma – os dois primeiros – e a Primeira Turma – os dois últimos -, cujos acórdãos foram publicados no Diário da Justiça de 30 de abril de 1998, 12 de abril de 2002, 16 de setembro de 2005 e 28 de novembro de 2003, respectivamente.

(STF/DJU de 22/6/07)

Por decisão plenária e unânime, o Supremo Tribunal Federal, pondo termo à questão controversa sobre ser o crime de estelionato formal ou permanente, proclamou que se trata de crime instantâneo, o estelionato consubstanciado na concessão de aposentadoria mediante dados falsos, ainda que a fraude para beneficiar terceiros, com o recebimento de prestações periódicas. A prescrição, então, corre a partir da consumação do crime, que se opera com a fraude.

Há alguns aspectos desse julgamento que precisam ser ressaltados. O primeiro deles diz respeito com a competência, pois o processo iniciou o julgamento na Primeira Turma. Após proferido o voto do Relator, Ministro Marco Aurélio, concedendo a ordem, por proposta do Ministro Carlos Brito a Turma decidiu remeter o ?habeas corpus? a julgamento do Tribunal Pleno, onde foi julgado em 27/3/2007, e concedida a ordem por unanimidade.

Relator o Ministro Marco Aurélio, acompanhado pelos Ministros Sepúlveda Pertence, Gilmar Mendes, Cezar Peluso, Carlos Brito, Joaquim Barbosa, Eros Grau, Ricardo Lewandowski e Carmem Lúcia. Ausentes, justificadamente, os Ministros Celso de Mello e Ellen Gracie.

Consta do voto do Relator:

O senhor Ministro Marco Aurélio (Relator) Nas razões da impetração, não se insiste na subida do ordinário, mesmo porque se fere o tema de fundo. De qualquer maneira, conforme fez ver o presidente do Superior Tribunal de Justiça, o ordinário pressupõe decisão de Tribunal Superior formalizada por colegiado. A tanto equivale a referência, na alínea ?a? do inciso II do artigo 102 da Constituição Federal, a julgamento em única instância quando denegada a ordem. No caso, contra o ato individual do relator indeferindo a ordem cabível era o agravo para o colegiado (folha 16 a 21).

Quanto à prescrição, observem que o ora paciente foi condenado tendo em conta a circunstância de, mediante fraude e na qualidade de servidor do instituto, haver viabilizado o reconhecimento do benefício. Então, forçoso é concluir que o crime se mostrou instantâneo, pouco importando a repercussão no tempo. Aliás, surge verdadeiro paradoxo. Relativamente ao crime de corrupção passiva artigo 317 do Código Penal -, foi reconhecida a prescrição da pretensão punitiva pela pena concretizada também de um ano e oito meses de reclusão. O mesmo não aconteceu no tocante ao estelionato, confundido-se institutos o crime instantâneo de efeitos permanentes e o permanente. Potencializou-se a mais não poder, o fato de o beneficiário da fraude perpetrada pelo paciente haver logrado parcelas mensais que somente cessaram em dezembro de 1995 (folhas 134 e 135). Valho-me do que consignei do Habeas corpus n.º 80.349-1/SC, um dos precedentes citados na inicial.

É fato incontroverso, porquanto constante da sentença de folha 22 à 27 e do acórdão de folha 28 a 30, haver sido o paciente condenado como incurso no artigo 171 do Código Penal, pela fraude referente à data de nascimento da segurada Francelina Pereira Dias que, assim, veio a alcançar o benefício da aposentadoria pelo implemento dos sessenta e cinco anos. Conforme consta de ambos os pronunciamentos judiciais, o fato ocorreu no Município de Campos Novos, Estado de Santa Catarina, em 9 de abril de 1981. A pena foi fixada em um ano e quatro meses de reclusão e dez dias-multa (folha 29), datando o recebimento da denúncia de 10 de fevereiro de 1995 (folha 22) e a sentença de 6 de fevereiro de 1997. Indaga-se, na espécie, sobre o preceito de regência. Até aqui, prevalece a óptica da configuração, no caso, de crime permanente, e a projeção no tempo estaria estampada na percepção não pelo paciente, mas pela segurada, do benefício da aposentadoria. Há de se distinguir a hipótese. O paciente foi condenado pela fraude perpetrada e, portanto, em face do tipo do artigo 171 do Código Penal:

Art. 171. Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento.

Ter-se-ia, na espécie, a promessa de voto pela segurada. Ora, a fraude verificada, com a adulteração da certidão de nascimento da segurada, mostrou-se crime instantâneo, muito embora vindo a repercutir no tempo, no que logrou ela o benefício da aposentadoria e a satisfação de prestações periódicas. O paciente respondeu unicamente pela fraude, e aí não se pode deixar de enquadrar o caso no disposto no inciso I do artigo 111 do Código Penal. Começa a correr a prescrição do dia em que o crime se consumou. A hipótese, dadas tais premissas, não é nova, já havendo a Turma decidido sobre a matéria, em acórdão assim sintetizado:

PRESCRIÇÃO PRAZO CONTAGEM -CRIME INSTANTÂNEO DE RESULTADOS PERMANENTES X CRIME PERMANENTE CERTIDÃO FALSA. O crime consubstanciado na confecção de certidão falsa é instantâneo, não o transmudando em permanente o fato de terceiro havê-la utilizado de forma projetada no tempo. A hipótese, quanto aos atos da falsidade, configura crime instantâneo de repercussão permanente, deixando de atrair a regra da contagem do prazo prescricional a partir da cessação dos efeitos – artigo 111, inciso III, do Código Penal. (Habeas Corpus n.º 75.053/SP, por mim relatado perante a Segunda Turma, publicado no Diário da Justiça de 30 de abril de 1998).

Por tais razões, tomando de empréstimo a pena que acabou por prevalecer, ou seja, a fixada pelo Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, de um ano e quatro meses de reclusão, e o recebimento da denúncia apenas em 10 de fevereiro de 1995, ou seja, cerca de catorze anos após o procedimento criminoso, concluo pela prescrição da pretensão punitiva do Estado, julgando extinto o Processo 94.7000515-5, que correu na Justiça catarinense.

Concedo a ordem para fulminar, ante a prescrição retroativa, a pretensão punitiva. Conforme consignado à folha 134, o crime ocorreu em 4 de outubro de 1994 e a denúncia somente foi recebida em 23 de novembro de 1999, passados, portanto, mais de quatro anos, prazo prescricional previsto no inciso V do artigo 109 do Código Penal, tendo em conta que a pena ficou aquém dos dois anos.

Ronaldo Botelho é advogado e professor da Escola da Magistratura.