O acórdão abaixo ementado discute a interessante questão da independência das esferas administrativa e judicial:
“RECURSO ESPECIAL. ADMINISTRATIVO E PROCESSO CIVIL. FUNDAMENTAÇÃO DEFICIENTE. APLICAÇÃO DA SÚMULA 284⁄STF. SERVIDOR PÚBLICO ESTADUAL. DEMISSÃO. SUPERVENIÊNCIA DE SENTENÇA PENAL ABSOLUTÓRIA, TRANSITADA EM JULGADO, FUNDADA NA PRESENÇA DE CAUSA EXCLUDENTE DE ILICITUDE (ESTADO DE NECESSIDADE). REPERCUSSÃO NA ESFERA ADMINISTRATIVA. EXECUÇÃO PROVISÓRIA. CABIMENTO. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. ART. 20, § 4º, DO CPC. APRECIAÇÃO EQÜITATIVA DO JUIZ. SÚMULA 7⁄STJ.
1. Se nas razões do recurso especial a parte, apesar de apontar violação de legislação federal infraconstitucional, deixa de demonstrar no que consistiu a alegada ofensa, aplica-se, por analogia, o disposto na Súmula 284 do Excelso Pretório.
2. A sentença penal absolutória que reconhece a ocorrência de causa excludente de ilicitude (estado de necessidade) faz coisa julgada no âmbito administrativo, sendo incabível a manutenção de pena de demissão baseada exclusivamente em fato que se reconheceu, em decisão transitada em julgado, como lícito.
3. É possível a execução provisória contra a Fazenda Pública nos casos de reintegração de servidor, pois a sentença não tem por objeto a liberação de recurso, inclusão em folha de pagamento, reclassificação, equiparação, concessão de aumento ou extensão de vantagens. Precedentes.
4. Estabelecida a verba honorária com base na eqüidade, em atenção ao disposto nas alíneas ‘a’, ‘b’ e ‘c’ do § 3º do artigo 20 do CPC, não cabe a este Tribunal reapreciar o valor ou percentual fixado a título de honorários advocatícios, sob pena de ofensa ao disposto na Súmula nº 7 desta colenda Corte.
5. No tocante à suposta ofensa ao art. 538, par. único, do Código de Processo Civil, nota-se, in casu, que os embargos de declaração tiveram a pretensão de rediscutir matéria já debatida nos autos, tratando-se de hipótese clara de recurso manifestamente protelatório, que não deve ser admitido sob argumento de possibilitar o prequestionamento. Desse modo, necessária se faz a manutenção da multa aplicada pelo Tribunal de origem com base no supracitado dispositivo legal.
6. Recurso especial improvido.”
(STJ – REsp 1090425/AL – 6ª T. – Rel. Min. Maria Thereza Rocha de Assis Moura – DJe de 19.9.11)
O voto da eminente Min. relatora conta com o seguintes fundamentos, em resumo:
“VOTO
MINISTRA MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA (Relatora):
(…)
No mérito, cinge-se a controvérsia à possibilidade de extensão dos efeitos, na esfera administrativa, de sentença penal absolutória fundada na existência de causa excludente de ilicitude (estado de necessidade). No que concerne à repercussão da decisão penal absolutória na responsabilidade administrativa, pacificou-se na doutrina e na jurisprudência o entendimento segundo o qual as esferas criminal e administrativa são independentes, ressalvadas nas hipóteses de absolvição criminal por inexistência do fato criminoso ou provada a não autoria. A esse respeito, Celso Antônio Bandeira de Mello ressalta que ‘as responsabilidades disciplinar, civil e penal são independentes entre si e as sanções correspondentes podem se cumular (art. 125); entretanto, a absolvição criminal, que negue a existência do fato ou de sua autoria, afasta a responsabilidade administrativa (art. 126)‘ (Curso de Direito Administrativo, 17ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 300). Do mesmo sentir é o escólio de Hely Lopes Meirelles, para quem ‘a absolvição criminal só afasta a responsabilidade administrativa e civil quando ficar decidida a inexistência do fato ou a não autoria imputada ao servidor, dada a independência das três jurisdições. A absolvição na ação penal, por falta de provas ou ausência de dolo, não exclui a culpa administrativa e civil do servidor público, que pode, assim, ser punido administrativamente e responsabilizado civilmente.’ (Direito Administrativo Brasileiro, 25ª ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 453⁄454).
Trata-se de diferenciação estabelecida pela doutrina e pela jurisprudência que, com base numa interpretação consentânea com a previsão do artigo 935 do Código Civil atual (‘A responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal’), correspondente ao artigo 1525 do CC⁄16, firmaram a tese segundo a qual, a princípio, apenas nos casos de inexistência do fato ou negativa de autoria afastar-se-á a responsabilidade administrativa.
Referido entendimento, contudo, deve se estendido às hipóteses de absolvição penal por excludente de ilicitude, sendo incabível a manutenção de pena de demissão baseada exclusivamente em um fato que se reconheceu, por sentença penal transitada em julgado, como lícito. Nesse sentido, aliás, estabelece o artigo 65 do Código de Processo Penal que, que também deve ser aplicável na esfera administrativa, que ‘faz coisa julgada no cível a sentença penal que reconhecer ter sido o ato praticado em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito.’ A matéria há muito já foi apreciada pelas colendas Quinta e Sexta Turmas deste Sodalício, que concluíram pela extensão, no âmbito administrativo, dos efeitos da sentença penal absolutória baseada na presença da causa excludente de antijuridicidade consubstanciada na legítima defesa: (…)
Em assim sendo, considerando que, na hipótese, a sentença penal absolutória transitada em julgado concluiu ter o autor agido em estado de necessidade, é de rigor seja julgado procedente o pedido de sua reintegração ao serviço público, pois demitido pelo mesmo fato apurado na ação penal. Por outro lado, acolhida a tese segundo a qual faz coisa julgada no âmbito administrativo a sentença penal absolutória por exclusão de ilicitude, fica prejudicado o exame de eventual ofensa ao princípio da proporcionalidade na aplicação da penalidade de demissão, bem como da caracterização do crime de peculato.
(…)
Ante o exposto, nego provimento ao recurso especial.
É como voto.” (destacamos)
N o t a s
Trata-se de uma exigência lógica: não podem coexistir duas sentenças substancialmente contraditórias a respeito do mesmo fato – independentemente de serem prolatadas por Juízes de áreas diferentes ou, até mesmo, por autoridades públicas de órgãos distintos. Hoje, essa razão prevalece em relação à decisão criminal que nega a autoria do fato ou a sua existência: essas mesmas conclusões deverão ser acatadas pelo juiz que oficia no cível. No entanto, há outras formas de incongruência de decisões que nem sempre seguem a mesma sorte.
O caso ora comentado é um exemplo. O cidadão sofreu uma grave penalidade no âmbito administrativo. Após, no curso do processo criminal a que respondia pelo mesmo fato, sobreveio sentença absolutória fundamentado em estado de necessidade. Isto é: o Estado afirmou que o sujeito não praticou crime algum, eis que sua conduta não foi motivada por intenção de infringir a lei ou por culpa, mas pela impossibilidade de, naquele momento, agir de forma diferente. Essa circunstância é uma causa de exclusão da ilicitude.
Pergunta-se: pode um fato ser lícito e ilícito ao mesmo tempo? A menos que se aceite a existência simultânea de duas ordens jurídicas conflitantes, não. Foi exatamente por isso que o STJ houve por bem cancelar a pena anteriormente aplicada pelo Estado na seara extrajudicial. Essa decisão abre o caminho para que outros tipos de divergências entre órgãos públicos sejam sanadas em decisões acerca do mesmo fato: os mínimos detalhes sobre ele devem ser sempre declarados e reconhecidos da mesma forma pelo Estado – sendo irrelevante o enfoque jurídico pelo qual se lhe examine.