Direito Processual Penal. Conhecimento de habeas corpus impetrado contra indeferimento de liminar em noutro writ. Prisão preventiva. Medida excepcional.
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HABEAS CORPUS N.º 91.723 SP
REL.: MIN. MARCO AURÉLIO
EMENTA
IMPETRAÇÕES SUCESSIVAS. PREJUÍZO. INEXISTÊNCIA. O fato de impetrar-se habeas corpus no Supremo não resulta no prejuízo daquele em curso, versando o mesmo pano de fundo e com liminar indeferida, no Superior Tribunal de Justiça.
PRISÃO PREVENTIVA. EXCEPCIONALIDADE. Em virtude do princípio constitucional da não culpabilidade, a custódia acauteladora há de ser tomada como exceção. Cumpre interpretar os preceitos que a regem de forma estrita, reservando-a a situações em que a liberdade do acusado coloque em risco os cidadãos ou a instrução penal.
PRISÃO PREVENTIVA. GRAVIDADE DO CRIME. A gravidade do crime circunscreve-se ao tipo penal não autorizando a prisão preventiva.
PRISÃO PREVENTIVA. PREMISSA. SUPOSIÇÃO. A suposição de que, solto, o agente voltará a delinqüir não respalda tecnicamente, a custódia preventiva.”
(STF/DJe de 24/09/2010)
Decidiu a Segunda turma do Supremo Tribunal Federal, relator o Ministro Marco Aurélio sobre a possibilidade de conhecer-se que habeas corpus impetrado contra indeferimento de liminar em outro writ. E, ainda, que a gravidade do crime circunscreve-se ao tipo penal, não autorizando prisão preventiva.
Decisão por maioria, votando com o relator Ministro Marco Aurélio, o Ministro Dias Toffoli.
Consta do voto do Relator:
O Senhor Ministro Marco Aurélio (Relator) A esta altura, não há o obstáculo revelado pelo Verbete n.º 691 da Súmula do Supremo. É que a Ministra Laurita Vaz acabou por negar seguimento ao Habeas Corpus n.º 85.407/RJ, por entender prematura a impetração.
No mais, reitero o que tive a oportunidade de consignar ao acolher o pedido liminar (folha 181 a 186):
[…]
2. Observem a necessária compatibilização do Verbete n.º 691 da Súmula do Supremo com a Constituição Federal, evitando-se a tomada a ponto de, configurado ato ilícito e existindo órgão capaz de apreciá-lo, vir-se simplesmente a dizer da incompetência deste último. Aliás, ante pronunciamento do tribunal flexibilizando o citado Verbete, urge a revisão. Reitero o que tenho consignado sobre a referida compatibilização:
O habeas corpus, de envergadura constitucional, não sofre qualquer peia. Desafia-o quadro a revelar constrangimento ilegal à liberdade de ir e vir do cidadão. Na pirâmide das normas jurídicas, situa-se a Carta Federal e assim há de ser observada. Conforme tenho proclamado, o Verbete n.º 691 da Súmula desta Corte não pode ser levado às últimas consequências. Nele está contemplada implicitamente a possibilidade, em situação excepcional de se admitir a impetração contra ato que haja resultado no indeferimento de medida acauteladora em idêntica medida agravo regimental no Habeas Corpus n.º 84.014-1/MG, por mim relatado na Primeira Turma e cujo acórdão foi publicado no Diário da Justiça de 25 de junho de 2004. É esse o enfoque que torna o citado verbete compatível com o Diploma Maior, não cabendo extremar o que nele se contém, a ponto de se obstaculizar o próprio acesso ao Judiciário, a órgão que se mostre, dados os patamares do Judiciário, em situação superior e passível de ser alcançado na sequência da prática de atos judiciais para a preservação de certo direito.
Neste caso, há excepcionalidade a reclamar, enquanto vivo o paciente, medida acauteladora. Responde ele, é certo, juntamente com outros réus, a processo em curso na Sexta Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro considerados os crimes dos artigos 288 e 333 do Código Penal quadrilha e corrupção. Em síntese, a denúncia formalizada que se encontra no apenso remete a organização criminosa “voltada à exploração ilegal das atividades de bingos e máquinas caça-níqueis no Estado do Rio de Janeiro, praticando, para tanto, diversos crimes autônomos contra a Administração Pública de forma estável, permanente e reiterada” (folha 7)
A ação penal em tramitação na Sexta Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro resultou do desmembramento, neste Tribunal, de procedimento ainda embrionário, do Inquérito n.º 2.424-4/RJ, da relatoria do Ministro Cezar Peluso, no qual Sua Excelência decretou a prisão temporária dos envolvidos.
Pois bem, o que ocorreu ante o citado desmembramento? A prisão temporária dos que permaneceram no inquérito em andamento no Supremo foi relaxada, enquanto a daqueles que passaram a ter procedimento em curso no Juízo referido veio a ser transformada em preventiva. Presente o princípio isonômico, o quadro é gerador de perplexidade, pouco importando haver, em relação a estes, ação penal já formalizada. O fato, por si só, não respalda o ato de constrangimento extremo que é a prisão preventiva. Os acusados, com denúncia recebida, é certo, de integrar quadrilha e de cometer o crime de corrupção na forma passiva, encontram-se em liberdade presente ato do Supremo. Indaga-se, então: não tivesse havido o desmembramento, qual seria a situação jurídica de todos os envolvidos nos lamentáveis acontecimentos? A presunção do ordinário e não do excepcional, do extravagante, bem sinaliza a ocorrência do afastamento linear, puro e simples, da prisão temporária.
Há mais. As premissas constantes do ato do Juízo não guardam sintonia com o disposto no artigo 312 do Código de Processo penal, no que o preceito nele inserido deve ser tomado como a consubstanciar exceção, isso considerado o princípio constitucional da não-culpabilidade.
Analisem o que nele consignado. Em primeiro lugar, fez-se histórico a revelar práticas criminosas. A seguir, asseverou-se a gravidade dos crimes narrados (folha 89 do apenso):
Os veementes indícios de participação nos graves crimes narrados, bem assim a mecânica dos acontecimentos permitem afirmar que, ao que tudo indica, os acusados, além de terem a personalidade voltada para a prática de crimes, pautam sua atuação na crença de impunidade em relação aos seus atos.
Adiante se discorreu novamente sobre “os graves crimes noticiados”.
Essa fundamentação parte de óptica que diz respeito às imputações em si. Graves ou não os crimes, o enquadramento realizado antes da prova, antes da culpa formada, não é conducente à prisão preventiva.
Quando a entender-se os envolvidos como detentores de personalidade voltada para a prática de crimes, a ordem natural das coisas mostra-se como obstáculo à preventiva. A própria prisão decretada afasta a possibilidade de eles terem contra si condenações passíveis de serem acionadas visando ao cumprimento da pena, sendo que a existência de inquéritos e processos em curso não respalda a conclusão a que se chegou, sob pena de permitir-se a culpa.
Apontou-se como mais razoável presumir que, soltos, os acusados poderão voltar a delinqüir. Eis o trecho da decisão (fls 89 e 90 do apenso):
Deveras, os graves crimes noticiados, por tudo o que foi apurado até o momento, eram praticados de forma repetida pelos acusados durante razoável espaço de tempo a investigação em torno do grupo durou pelo menos um ano e meio e há fortes indícios de que o esquema vem de muito antes. Logo, é mais do que razoável afirmar que os mesmos, caso soltos, virão a reiterar a prática criminosa.
Essa suposição é ainda mais robustecida quando se vê que os denunciados, mesmo após o fechamento das casas de bingo, procuravam burlar decisões judiciais através da utilização de federações desportivas e empresas fictícias, que conseguiriam, novamente medidas liminares, fazer voltar a funcionar maquinário pertencente a casas de bingo fechadas pelo próprio judiciário.
Reiterados são os pronunciamentos desta Corte no sentido de se exigirem, para a configuração da periculosidade, dados robustos. A tanto não equivale, no campo de que trata a espécie de jogos ilícitos -, a afirmação de vir-se atuando há muito tempo. O problema deságua em conclusão sobre a deficiência do poder de polícia, valendo notar que, ante a operação realizada, ante a persecução criminal, estarão os acusados sob o crivo do Judiciário e, aí sim, caso cheguem a intentar prática condenáveis, existirá base para a custódia excepcional. O que se distancia da ordem jurídica é considerar-se o que teria acontecido até aqui, o que, se de fato procedente, apenas evidencia a falha do aparelho estatal.
Também não vinga o que consignado sob o ângulo da preservação da ordem pública. Parte-se de pressuposto discrepante do que normalmente ocorre - de que, mesmo diante da operação verificada, do processo criminal em curso, os acusados persistirão nas práticas tidas pelo Ministério Público e sob o ângulo do recebimento da denúncia, como configuradoras dos crimes. O que asseverado quanto à difusão no seio da sociedade, ao grau sofisticado de organização, à infiltração nos órgãos públicos e ao uso deturpado de funções atribuídas a servidores públicos, não é requisito para chegar-se ao acionamento do artigo 312 do Código de Processo Penal. Frente a quadra vivida, impõe-se, sim, a adoção do rigor referido no ato da cuidadosa magistrada que decretou a prisão preventiva a Dra. Ana Paula Vieira de Carvalho -, mas tal procedimento há de fazer-se com observação irrestrita à necessidade de apurar-se para, só depois de formada a culpa, punir-se, e não caminhar-se como que para a imposição precoce de pena ainda não formalizada.
O sentimento de impunidade mencionado não é passível de afastamento com a inversão de valores, e isso ocorre quando, não sendo de excepcionalidade maior a situação, a enquadrá-la no regramento próprio artigo 312 do Código de Processo Penal -, mitiga-se o princípio constitucional da não-culpabilidade. O mesmo deve ser dito considerada a referência à “total promiscuidade por que passam as instituições do nosso país, cuj credibilidade já se encontra fortemente abalada” (folha 91 do apenso). Avança-se no aprimoramento da vida em sociedade respeitando-se o arcabouço normativo regedor da espécie.
Compreendam a responsabilidade de todos que atuam em nome do Estado. Mais, tenham presente que o deterioramento da vida pública não serve, em verdadeira profissão de fé, à busca de imediato enquadramento jurídico penal, em antecipação à indispensável formação da culpa.
Não subsiste o que asseverado em termos de inserção dos acusados nos diversos segmentos da Administração Pública, no que teriam praticado atos em verdadeira corrupção de servidores. Eis o trecho da decisão proferida (folha 91 do apenso):
Veja-se que não se está a falar da gravidade dos crimes em tese. Está-se a analisar a gravidade em concreto dos crimes supostamente praticados, que envolvem corrupção nos mais altos escalões do Judiciário e, segundo o que venha a ser apurado em investigações ulteriores, talvez também do legislativo federal e estadual.
Atuem os segmentos da Administração Pública. Acionem os dispositivos legais visando a impedir que crimes sejam cometidos. Mas observem que, ainda em curso ação penal, descabe potencializar as imputações verificadas e, em meio a envolvimento de vulto, de diversos setores, cercear-se a liberdade de ir e vir. O afã de punir sofre os temperamentos próprios ao devido processo legal, sob pena de grassar para todos, e o chicote muda de mãos, a insegurança na vida gregária, abrindo-se margem, ara o desprezo a balizas legais imperativas, ao surgimento de verdadeira época de terror. Em um Estado Democrático, em um Estado de Direito, hão de ser respeitados princípios, hão de ser observadas balizas. Eis o preço que se paga e é módico, estando ao alcance de todos por nele se viver.
Por último, cumpre a apreciação do quadro considerados certos réus. Em relação a Jaime e Licínio, porque nacionais portugueses, aventou-se a possibilidade de deixarem o Brasil. Ora, a persistir tal entendimento, como capaz de levar à prisão preventiva, ter-se-á que esta se tornará automática sempre que se tratar de estrangeiro, o que não se coaduna com os ditames constitucionais.
Relativamente a Paulo Lino e José Renato Granado, ressaltou-se possuírem, segundo relatório policial, contas bancárias e contatos no exterior. A irrelevância do que assentado, em termos de cerceio à liberdade de ir e vir, dispensa maiores comentários.
No tocante a Nagib Suaid e João Oliveira de Farias, considerou-se que tentaram sacar das respectivas contas importâncias vultosas, isso logo após a deflagração da “Operação Furacão”. Tudo teria ocorrido objetivando frustrar eventual medida assecuratória. Os dados são neutros no que se refere à preventiva, colocando-se no campo da autodefesa, não gerando a consequência extrema que é a perda da liberdade.
3. Ante o quadro e presente ainda a idade avançada do acusado, o atual estado de saúde, concedo a medida acauteladora para fazer cessar a prisão existente que, sob títulos diversos, data de 13 de abril de 2007. Apesar de o pleito liminar direcionar-se à transformação da custódia em domiciliar e, sucessivamente, ao deferimento da transferência para hospital particular a ser indicado oportunamente, verifico que o objeto final do habeas corpus é a revogação da prisão preventiva. Quanto à domiciliar, não há meios a viabilizá-la, porquanto exige acompanhamento policial e as deficiências de pessoal são notórias. O mesmo se diga acerca do pedido de transferência para hospital particular. Então, antecipo, embora sob o ângulo precário, o pedido final e assento a insubsistência da prisão.
Considerado o disposto no artigo 580 do Código de Processo Penal e o envolvimento de título único a revelar a prisão, insubsistente sob o ângulo da base legal, estendo esta liminar aos demais acusados, a saber: Aílton Guimarães Jorge, Aniz Abrahão David, José Renato granado Ferreira, Paulo Roberto Ferreira Lino, Júlio César Guimarães Sobreira, Belmiro Martins Ferreira, Licínio Soares Bastos, Laurentino Freire dos Santos, José Luiz da Costa Rebello, Ana Cláudia Rodrigues do Espírito Santo, Jaime Garcia Dias, Evandro da Fonseca, Silvério Nery Cabral júnior, Sérgio Luzio Marques de Araújo, Virgílio de Oliveira Medina, Luiz Paulo Dias de Mattos, Nagib Teixeira Suaid, João Oliveira de Farias e Marcelo Petrus Kalil.
[…]
Concedo a ordem, tornando definitivo o relaxamento da prisão preventiva formalizada contra o paciente e os corréus, já mencionados na transcrição, no Processo n.º 2007.51.01.802985-5, da 6.ª Vara Federal Criminal da Seção Judiciária do Rio de Janeiro. Estendo esta decisão a Susie Pinheiro Dias de Mattos, Carlos Pereira da Silva e Francisco Martins da Silva, beneficiados com a extensão dos efeitos da medida acauteladora (folhas 209 e 212).
Ronaldo Botelho é advogado e professor da Escola da Magistratura.