RECURSO ESPECIAL N.º 622.303/RJ

Rel.: Min. Nancy Andrighi

EMENTA

– Rejeitam-se os embargos de declaração quando ausente omissão, contradição ou obscuridade a ser sanada.

– O ocupante do imóvel é parte legítima para figurar no pólo passivo da ação de obrigação de fazer, ajuizada pelo proprietário ou pelo inquilino do imóvel vizinho, fundada no mau uso da propriedade.

A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial.

(STJ/DJU de 26/4/04, pág. 173)

Decidiu o Superior Tribunal de Justiça, através de sua Terceira Turma, relatora a ministra Nancy Andrighi, que a obrigação de não causar interferência à segurança, ao sossego e à saúde surge da qualidade de vizinho e não da de proprietário, em razão do que a simples ocupante do imóvel é parte legítima para figurar no polo passivo da ação.

Consta do voto da relatora:

I – Da inexistência de omissão no acórdão recorrido

Alega a recorrente que o TJRJ permaneceu omisso quanto às questões suscitadas a respeito de sua ilegitimidade para figurar no pólo passivo da lide, não tendo se pronunciado, explicitamente, sobre a aplicação dos arts. 300, X, e 267, VI, do CPC à espécie.

Da leitura do teor do acórdão recorrido, percebe-se o firme posicionamento do TJRJ quanto a todas as questões relevantes postas a desate, apreciando, embora para rejeitá-lo, o agravo retido interposto pela recorrente.

De fato, lê-se no acórdão que julgou a apelação que (fls. 293/294):

“Inicialmente deve ser rejeitado o Agravo Retido de fls. 161/166 interposto contra a decisão que considerou a ré parte legítima e não a empresa promissária compradora do imóvel uma vez que a ação se fulcra no direito de vizinhança e não no direito de propriedade.

A própria Apelante admitiu ocupar o imóvel, sendo responsável pelos animais lá mantidos e, portanto, sujeita as demandas a respeito.”

Inexistente, pois, qualquer omissão a sanar, insubsistente a afirmativa de contrariedade ao art. 535, II, do CPC.

II – Da legitimidade da parte

Aduz a recorrente que o acórdão recorrido negou vigência aos arts. 300, X, e 267, VI, do CPC, por não ter reconhecido a sua ilegitimidade para figurar no pólo passivo da lide.

Inicialmente, cumpre destacar flagrante equívoco quanto ao apontado inciso X do art. 300 do Código de Processo Civil. Não existe qualquer inciso no citado artigo, ao que se subentende pretendia a recorrente referir-se ao art. 301 do mesmo diploma.

Discute a recorrente, neste processo, a sua ilegitimidade para figurar no pólo passivo de ação, versando sobre mau uso da propriedade, fundada no art. 554 do CCB/16, que assim dispõe:

“Art. 554. O proprietário, ou inquilino de um prédio tem o direito de impedir que o mau uso da propriedade vizinha possa prejudicar a segurança, o sossego e a saúde dos que o habitam.”

Alega que, por não ser a proprietária, não seria a parte legítima.

É fato incontroverso nos autos a existência de promessa de compra e venda registrada em nome de uma empresa da qual a recorrente se diz apenas “representante legal”. Em nenhum momento, no entanto, nega a recorrente ser a ocupante do imóvel.

O preceito insculpido no art. 554 do Código Civil antigo, assim como no art. 1.277 do CC/2002 que o substituiu, em regra, há de ser oponível ao responsável pela alegada perturbação, que não é necessariamente o proprietário do imóvel.

Em seu Tratado de Direito Privado, 3.ª ed., vol. XIII, p. 299, Pontes de Miranda, ao comentar o referido art. 554 do CC/16 anota que:

“A regra ‘limita’ o conteúdo do direito de propriedade do proprietário vizinho, nascendo no outro proprietário o ‘direito de vizinhança’. A ação, como a pretensão, dirige-se contra ele, ou contra quem exerça a posse direta. Aliás, não só inquilino: o foreiro, o usufrutuário, o que tem direito real de usufruto; o usuário, a quem somente, no caso, se pode imputar o mau uso; o habitador, que também é titular de direito real e, pois, é limitado, por igual, o seu direito real; o credor anticrético.”

Assim, a obrigação de não causar interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde surge da qualidade de vizinho e não da de proprietário.

Não dissuadida, no processo, a responsabilidade decorrente da ocupação e conseqüente conservação do imóvel, subsiste a legitimidade passiva da recorrente.

Corroborando tal entendimento, registre-se o REsp 480.621/RJ, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, DJ de 12/08/2003, assim ementado:

“PROPRIEDADE. Uso nocivo. Legitimidade passiva.

A ação do proprietário pelo uso nocivo do prédio vizinho pode ser dirigida contra o dono, ainda que locada a coisa.

Art. 554 do CCivil. Peculiaridades do caso.

Recurso conhecido e provido.”

No precedente citado, a Quarta Turma deste STJ, apreciando hipótese também fundada no art. 554 do CC/16, na qual se pretendia que o proprietário de imóvel locado respondesse por seu mau uso, entendeu que a ação, em regra, deve ser dirigida contra o possuidor, mas, diante das peculiaridades do caso concreto, o proprietário também seria parte legítima para figurar no pólo passivo.

Conclui-se, portanto, que a ora recorrente é parte legítima para compor o pólo passivo da lide, não havendo que se falar em ofensa aos dispositivos legais elencandos.

III – Do art. 554 do Código Civil

O TJRJ concluiu que a conduta da ora recorrente infringiu os direitos de vizinhança, causando incômodos e prejuízos à segurança, saúde e sossego dos demais moradores. Para tanto, partiu de exame do acervo probatório dos autos, especialmente dos laudos pericial e de inspeção e dos depoimentos testemunhais. É o que se depreende dos seguintes trechos do acórdão, in verbis:

“De fato insuportável a presença de um sem número de cachorros num apartamento, sendo correto o decreto limitativo a três.

(…)

A convenção proíbe a manutenção de animais nos apartamentos (cláusula 7.ª, alínea j – fls. 55) e um sem número de notificações foram feitas envolvendo os interessados (fls. 41/47).

A vistoria da FEEMA foi restrita ao problema das moscas e ao uso do desinfetante chiroff, o que é irrelevante para a hipótese presente, muito embora cerca de 10 animais tenham sido localizados quando da diligência.

(…)

A ré às fls. 93 menciona alguns apartamentos que possuem cães ou gatos, mas nenhum que possua a condição de canil como admitido pela própria ré dizendo que os animais quando lá permanecem se destinam a exposições ou exame veterinário.

(…)

A perícia feita pelo “expert” judicial demonstrou que o local não é “recomendável para a criação e permanência de cães em número elevado ou qualquer outro tipo de ser vivo…’, o que é do conhecimento geral (fls. 140/141).

(…)

Note-se que em audiência a autora apresentou documento da Secretaria Municipal de Saúde com exigência para melhorar as condições higiênicas e sanitárias próximas da unidade 1.401 da ré, não tendo esta permitido o ingresso do fiscal no interior da unidade, fato confirmado pela testemunha de fls. 245.

(…)

Nessas condições, a sentença agiu com bom senso, limitando a um número razoável dentro da unidade habitacional que deve ser preferencialmente habitada por pessoas.” (fls. 294/297)

Volver tal matéria implicaria reapreciação de provas, procedimento inviável em sede de recurso especial, consoante o entendimento consolidado na Súmula 07 deste STJ.

Forte em tais razões, NÃO CONHEÇO do recurso especial.

Decisão unânime, votando com o relator os ministros Antônio de Pádua Ribeiro e Carlos Alberto Menezes Direito.

Ronaldo Botelho é advogado e professor da Escola de Magistratura.

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