RECURSO ESPECIAL N.º 275.568/RJ

REL.: MIN. HUMBERTO GOMES DE BARROS

EMENTA

– Caracterizado o abandono efetivo, cancela-se o pátrio poder dos pais biológicos. Inteligência do Art. 395, II do Código Bevilacqua, em conjunto com o Art. 22 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Se a mãe abandonou o filho, na própria maternidade, não mais o procurando, ela jamais exerceu o pátrio poder.

(STJ/DJU de 09/08/04, pág. 267)

No julgamento do recurso especial n.º 275.568, de 18/5/2004, o Superior Tribunal de Justiça, através de sua Terceira Turma, relator o ministro Humberto Gomes de Barros, proferiu decisão reconhecendo que o abandono afetivo dos pais em relação ao filho configura causa justa para a destituição do pátrio poder.

No caso, a criança foi abandonada pela mãe na própria maternidade, a partir de quando nunca mais quis ter notícia do filho.

Com a morte do pai da criança, nos seus primeiros anos de vida, os avós paternos reivindicaram, através de ação ordinária, a destituição da mãe do pátrio poder do menor.

Não logrando êxito nas instâncias ordinárias recorreram ao STJ onde obtiveram êxito pelos seguintes fundamentos constantes do voto do relator:

Ministro Humberto Gomes de Barros (Relator): Destaco os seguintes excertos do bem lançado parecer do eminente subprocurador-geral da República, Dr. Henrique Fagundes Filho, dizendo:

“…

3. O recurso haverá de ser conhecido e provido, dada a entrevista violação ao artigo 395, do Código burguês.

Assim dispõe o mencionado dispositivo legal:

“Perderá por ato judicial o pátrio poder o pai, ou mãe:

II – que o deixar em abandono.”

O fundamento utilizado no v. aresto recorrido foi o de que o abandono praticado pela mãe não corresponde àquele referido na lei civil, uma vez que a genitora deixara o infante com o pai e os avós paternos, que, juntos, dele cuidavam, não tendo colocado em risco a vida do, então, bebê.

É patente haver o entendimento adotado pelo Colendo Tribunal local malferindo o artigo 395.

Tem-se conhecimento que, desde o nascimento até os dias atuais, a mãe nunca procurou o filho, sequer para saber como ele estava e se era uma criança normal. Nascido em 1989, GIULIANO, que conta hoje 13 anos de idade, nunca conheceu sua mãe biológica, cuja função, em sua vida, se limitara a gestá-lo e pari-lo.

Não se pode conceber que a mens legis consista em sancionar somente a mãe ou o pai que deixe o filho em situação de abandono material ou intelectual, passando ao largo do abandono afetivo. Se assim fosse, o legislador teria se utilizado de um adjetivo restritivo, como o fez o legislador penal (Código Penal, art. 244, abandono material, e art. 246, abandono intelectual). Não tendo feito o legislador, não cabe ao intérprete fazê-lo. Assim, há que se interpretar o vocábulo abandono em seu sentido lato, aí sendo compreendidas todas as formas de sua manifestação.

4. Diante do exposto, o Ministério Público Federal manifesta-se pelo conhecimento e provimento do recurso especial, destituindo-se o pátrio poder do menor GIULIANO MANFREDINI de sua mãe e conferindo-a a seus avós paternos, aqui recorrentes, em virtude do abandono da mãe ao menor.” (fls. 261/263)

Lembro, a propósito, acórdão da 4.ª Turma no julgamento do REsp 124.621/SP-Rel. Confira-se:

“…

I – As hipóteses de destituição do pátrio poder estão previstas nos arts. 395, CC, e 22 do Estatuto da Criança e do Adolescente, exaustivas, a não permitirem interpretação extensiva. Em outras palavras, a destituição desse poder-dever é medida excepcional, sendo permitida apenas nos casos expressamente previstos em lei.

II – Nos termos do artigo 23 do referido Estatuto, “a falta ou a carência de recursos materiais não constitui motivo suficiente para a perda ou a suspensão do pátrio-poder”. E a destituição, como efeito da condenação criminal, nos termos do art. 92-II, Código Penal, só é automática quando se tratar de crime doloso, sujeito à pena de reclusão, cometido contra filho.

III – Por outro lado, na linha de precedente desta Corte, a legislação que dispõe sobre a proteção à criança e ao adolescente proclama enfaticamente a especial atenção que se deve dar aos seus direitos e interesses e à hermenêutica valorativa e teleológica na sua exegese’.”

No voto condutor desse aresto, o Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira disse:

“1. Centra-se a controvérsia em decidir a respeito da violação do artigo 24 do Estatuto da Criança e do Adolescente, assim redigido:

‘Art. 24. A perda e a suspensão do pátrio poder serão decretadas judicialmente, em procedimento contraditório, nos casos previstos na legislação civil, bem na hipótese de descumprimento injustificado dos deveres e obrigações a que alude o art. 22.’

Alega o recorrente que, nos termos desse dispositivo e por ser medida excepcional, a destituição do pátrio poder só pode ocorrer nas hipóteses expressamente previstas em lei, quais sejam: castigo imoderado do filho, abandono do filho, prática de atos contrários à moral e aos bons costumes e descumprimento injustificado dos deveres de sustento, guarda e educação dos filhos menores (arts. 395 do Código Civil c/c 22 do Estatuto), acrescentando que no caso dos autos nenhum desses requisitos estava presente.

2. Em recente julgado (REsp n.º 158.920-SP, j. 23.3.99), tive oportunidade de afirmar, na qualidade de relator, que as hipóteses de destituição de pátrio poder são exaustivas e não permitem interpretação extensiva.

. . .

3. Por outro lado, naquele mesmo julgamento, ficou assentado ser da jurisprudência assente, inclusive desta Corte, que, em se tratando de interesse de menores, é de convir-se pela relativização dos aspectos jurídicos, sobretudo em face da prevalência dos interesses do menor, como determina a legislação vigente (ECA, art. 6.º, LICC, art. 5.º) e já proclamava o art. 5.º do Código de Menores de 1979. Neste sentido, o RMS n.º 1.898-SP (DJ 17/04/95), de minha relatoria, com esta ementa, no que interessa:

‘II – A legislação que dispõe sobre a proteção à criança e ao adolescente proclama enfaticamente a especial atenção que se deve dar aos seus direitos e interesses e à hermenêutica valorativa e teleológica na sua exegese.’

Idêntica preocupação teve esta Turma, ao examinar caso de adoção internacional (REsp n.º 196.406-SP. j. 9.3.99), como se vê do voto do ministro Ruy Rosado de Aguiar:

‘. . .

A função deste Tribunal é a de fazer a interpretação da lei federal, e aqui se põe uma boa oportunidade para definir o entendimento da regra que está no art. 31 do ECA. Contudo, tal decisão – que tenho seja a melhor do ponto de vista do ordenamento jurídico – implicará substancial modificação da vida da criança de cuja adoção se trata, sem que para isso exista outro argumento que não o de ordem meramente legal.’

Na espécie dos autos, a prevalência dos interesses do menor foi determinante para a destituição do pátrio poder dos réus. …”

Observo que o acórdão, quando afirmou que a mãe abandonara a criança na maternidade, assentou-se em provas cujo revolvimento não pode ocorrer em recurso especial.

Louvado nestas provas, observo que a recorrida jamais exerceu o pátrio poder. Assim, o provimento do recurso traduz verdadeira declaração de um abandono, substancialmente, nem faria sentido cassar algo que jamais existiu.

Dou provimento ao recurso especial. Declaro a perda do pátrio poder da recorrida, Raphaella Manoel Bueno, por abandono afetivo em relação ao seu filho menor, Giuliano Manfredini

Finalmente, registro o falecimento de Renato Manfredini, em 9.2.2004, tutor de Giuliano Manfredini, que foi substituído, nesse encargo, por Maria do Carmo Manfredini, avó paterna do menor (fls. 270/274).

Decisão unânime, votando com o relator os ministros Carlos Alberto Menezes Direito, Nancy Andrughi, Castro Filho e Antônio de Pádua Ribeiro.

Ronaldo Botelho é advogado e professor da Escola da Magistratura.

continua após a publicidade

continua após a publicidade