Direito Civil e Processual Civil. Dissolução de sociedade de fato. Homossexuais. Homologação de acordo. Competência. Vara Cível.

EMENTA

1. A primeira condição que se impõe à existência da união estável é a dualidade de sexos. A união entre homossexuais juridicamente não existe nem pelo casamento, nem pela união estável, mas pode configurar sociedade de fato, cuja dissolução assume contornos econômicos, resultantes da divisão do patrimônio comum, com incidência do Direito das Obrigações.

2. A existência de filho de uma das integrantes da sociedade amigavelmente dissolvida, não desloca o eixo do problema para o âmbito do Direito de Família, uma vez que a guarda e responsabilidade pelo menor permanece com a mãe, constante do registro, anotando o termo de acordo apenas que, na sua falta, à outra caberá aquele munus, sem questionamento por parte dos familiares.

3. Neste caso, porque não violados os dispositivos invocados – arts. 1.º e 9.º da Lei 9.278 de 1996, a homologação está afeta à vara cível e não à vara de família.

4. Recurso especial não conhecido.

(STJ/DJU de 16/05/05, pág. 353)

A união entre homossexuais, conquanto não configure casamento e nem união estável, pode configurar sociedade de fato, em razão do que a sua dissolução gera conseqüência econômica, como resultado da divisão do patrimônio comum.

Decisão da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, relator o ministro Fernando Gonçalves, com o seguinte voto:

O Senhor Ministro Fernando Gonçalves (Relator):

Reconhece a Constituição Federal a união estável entre homem e mulher, como entidade familiar, dispondo, por seu turno, o art. 1.º da Lei 9.278, de 1996, em complemento:

"É reconhecida como entidade familiar a convivência duradoura, pública e contínua, de um homem e uma mulher, estabelecida com objetivo de constituição de família."

A análise da doutrina (RAINER CZAJXOWSKI – UNIÃO LIVRE – JURUÁ -1997), comparando os dois dispositivos (art. 226, § 3.º, da Constituição Federal e art. 1.º da Lei 9278/96) resulta na extração de quatro elementos essenciais à caracterização da união estável, a saber: "a dualidade de sexos, o conteúdo mínimo da relação, a estabilidade e a publicidade".

Em decorrência, como ainda leciona o autor citado, a primeira condição que se impõe à existência da união estável é a dualidade de sexos, porque "duas pessoas do mesmo sexo não podem assumir, uma perante a outra, as funções de marido e esposa, ou de pai e de mãe em face de eventuais filhos. Não se trata, em princípio, de perquirir sobre a qualidade física ou psicológica das relações sexuais entre homossexuais, nem emitir sobre tais relações qualquer julgamento moral" (obra citada – pág. 54).

De outro lado, ensina THIAGO HAUPTMANN BORELLI THOMAZ, em artigo na Revista dos Tribunais 807/95, verbis:

"O Direito de Família tutela os direitos, obrigações, relações pessoais, econômicas e patrimoniais, a relação entre pais e filhos, o vínculo do parentesco e a dissolução da família, mas das famílias matrimonial, monoparental e concubinária. A união entre homossexuais, juridicamente, não constitui nem tem o objetivo de constituir família, porque não pode existir pelo casamento, nem pela união estável.

Mas se houver vida em comum, laços afetivos e divisão de despesas, não há como se negar efeitos jurídicos à união homossexual.

Presentes esses elementos, pode-se configurar uma sociedade de fato, independentemente de casamento ou união estável. É reconhecida a sociedade de fato quando pessoas mutuamente se obrigam a combinar seus esforços ou recursos para lograr fim comum (art. 1.363 do CC/1916; art. 981 do novo CC).

Assim, embora as relações homossexuais escapem da tutela do Direito de Família, não escapam do Direito das Obrigações."

E mais à frente, destaca o articulista (RT 807/96):

"A união homossexual, por não ter respaldo no Direito de Família, não gera efeito dele decorrentes, como direito e alimentos, ao patronímico e à sucessão (ressalvada a hipótese de existência de testamento), conquanto surtam efeitos de outra sorte.

Juridicamente a união homossexual pode ser encarada como sociedade de fato, mas no plano fático pode ser tida como entidade familiar.

Vimos em janeiro de 2002 uma situação inusitada. A Justiça do Rio de Janeiro concedeu a guarda provisória do filho da cantora Cássia Eller, Francisco (Chicão), de 8 anos, para a companheira, Maria Eugênia Vieira Martins, com quem viveu catorze anos. O caso gera grandes discussões nos meios jurídicos e social. Todos estavam de acordo com a permanência da criança com a companheira sobreviva: Igreja, opinião pública e conservadores em geral.

O episódio confirma a mudança nos aspectos familiares que vem sofrendo o Brasil. A estrutura familiar brasileira está em constante mutação e ao modelo tradicional de família vem sendo aos poucos agregados outros modelos, como homossexual.

Esse caso demostra, também, a real existência da família homossexual. Imagine-se a situação: duas mulheres vivendo juntas há mais de catorze anos; uma decide ter um filho tenta a adoção, a inseminação artificial ou encontrar um homem disposto a ter relações com ela com esse fim específico. Se ela engravida, a criança, ao nascer, já estará num lar onde existem duas pessoas do mesmo sexo. Esse agrupamento humano nada mais é do que uma espécie de entidade familiar, ou deve-se entender que essa criança não tem família?

Mesmo que não haja a criança, deve-se ter a união homossexual como entidade familiar. Se estiverem presentes todos os elementos anteriormente vislumbrados, há constituição de uma sociedade, não somente a de fato, mas também a sociedade familiar.

No caso dos autos, o ven. acórdão, ao acolher o conflito para declarar a competência da 4.ª Vara Cível de Natal, teve em mira a letra do art. 9.º, da Lei 9.278, de 10 de maio de 1996, por não versar a hipótese sobre entidade familiar decorrente da união estável entre homem e mulher e, neste ponto, não houve maltrato aos dispositivos invocados e nem dissenso pretoriano. A característica legal básica, cifrada na dualidade de sexos, não se perfaz.

Cumpre, por outro lado, destacar que o menor, ao que consta da certidão de fls. 12, está registrado como filho de Selma Ramos de Lima, uma das requerentes da homologação judicial do acordo de dissolução da sociedade, cumulada com partilha de bens e sua guarda, responsabilidade e direito de visita. Dispõe o termo de acordo que a criança ficará sob a guarda, posse e responsabilidade econômica de Selma Ramos de Lima. Ressalva existe apenas para o caso de falecimento desta, quando o munus, sem questionamento, transfere-se para Carla Santos Munay.

Neste contexto, não há plausibilidade na atribuição de competência à vara de família para a homologação pretendida, cujo termos guarda nítido aspecto econômico, traduzido na partilha do patrimônio comum, em conseqüência em não mais dividirem as requerentes o mesmo teto. A divisão patrimonial, não se coloca em dúvida, é um direito reconhecido amplamente, inclusive pela jurisprudência desta Quarta Turma (Resp 148.897/MG – Rel. Min. RUY ROSADO DE AGUIAR).

A questão familiar verdadeiramente não existe. O menor fica, como já declinado, com sua mãe e, como no caso retratado da cantora, na eventualidade de sua falta – sem questionamento dos parentes – a guarda é deferida à outra. Não há, portanto, nada que envolva a adoção ou coloque em debate, pelo menos no momento, a situação do menor. Surgindo algo no futuro, o tema será outro e a solução também. A competência, no momento, é da vara cível.

Não conheço do recurso.

Decisão unânime, votando com o relator os ministros Aldir Passarinho Júnior, Jorge Scartezzini, Barros Monteiro e César Asfor Rocha.

Ronaldo Botelho é advogado e professor da Escola da Magistratura.