HABEAS CORPUS N.º 91.716 PR
Rel.: Min. Joaquim Barbosa
EMENTA
Penal e processo penal. Recurso especial. Decisão monocrática, proferida pelo Ministro do STJ, que julga parcialmente procedente o recurso. Alegação de ofensa ao princípio da colegialidade. Liberalidade prevista no art. 557, § 1.º-A, do CPC. Ausência de nulidade a ser reparada por habeas corpus. Crime de estelionato previdenciário. Prescrição. Marco inicial. Alteração de jurisprudência do STF. Precedentes. Ordem concedida de ofício.
Decisão singular em Recurso Especial que, examinando o mérito da causa, deu parcial provimento para diminuir a pena imposta ao réu excluindo o aumento de pena decorrente das certidões consideradas para fins de maus antecedentes.
Insurgência do impetrante quanto à parte da decisão que negou provimento ao recurso com base no art. 556, § 1.º-A, do CPC, e em conformidade com a jurisprudência consolidada no Superior Tribunal de Justiça.
Ausência de ofensa ao princípio da colegialidade. Faculdade outorgada pela norma que possibilita ao relator dar provimento ao recurso quando a decisão recorrida estiver em manifesto confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do Tribunal Superior. Ausência de ilegalidade a ser reparada por habeas corpus.
Crime de estelionato previdenciário. Mudança de orientação da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que passou a considerar o marco inicial da prescrição a data em que ocorreu o pagamento indevido da primeira parcela. Precedentes.
Habeas corpus concedido, de ofício, para o fim de reconhecer, no caso concreto, a aplicação do novo atendimento jurisprudencial em matéria de prescrição.”
(STF/DJe de 01/10/2010)
Decidiu a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, Relator o Ministro Joaquim Barbosa, pela mudança de orientação da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que passou a considerar o marco inicial da prescrição a data em que ocorreu o pagamento indevido da primeira parcela.
Decisão unânime, votando com o Relator Ministro Joaquim Barbosa, os Ministros Ellen Gracie e Ayres Brito.
Consta do voto do Relator:
O Senhor Ministro Joaquim Barbosa (Relator): O impetrante pede a anulação da decisão impugnada, sob fundamento de que a autoridade apontada como coatora não possuía competência para denegar monocraticamente a ordem.
Assim, a controvérsia jurídica a ser enfrentada no presente writ consiste em sabe se a decisão do ministro relator do Resp n.º 910.158 ofendeu, ou não, o princípio da colegialidade.
Embora não tenha indicado na decisão os precedentes do Superior Tribunal de Justiça na matéria relativa à prescrição, a autoridade apontada como coatora salientou, nas informações prestadas no presente writ, que a jurisprudência daquela Corte de Justiça “é firme no sentido que, em hipóteses tais como a do processo da condenação – fraude para obtenção, de forma sucessiva, de indevido benefício previdenciário -, tem como termo prescricional inicial, analogamente aos delitos permanentes, pelos efeitos continuados da conduta do agente, a data da efetiva cessação do recebimento das prestações (artigo 111, inciso III, do Código Penal), sendo, pois, desinfluente, limitar-se a conduta do réu à falsificação dos respectivos documentos, exatamente, repita-se, por reproduzir-se, como seus efeitos, a percepção continuada, de prestação continuada, de prestações previdenciárias indevidas (cfr., entre v ários, os Recursos Especiais n.ºs 492.706/RS e 751.520/PB, na minha relatoria)” (fls 70).
Dessa forma, ficando esclarecido que a decisão monocrática proferida no REsp n.º 910.158 foi fundamentada na orientação jurisprudencial dominante na Corte Superior, verifico que o relator do aludido apelo especial agiu em estrita conformidade com o permissivo previsto no art. 557, § 1.º-A do CPC e, por conseguinte, não houve a alegada violação ao princípio da colegialidade.
No entanto, apesar de a decisão impugnada ser válida e estar em harmonia com a jurisprudência do STJ, verifico que a mesma contraria a orientação jurisprudencial prevalecente nesta Corte, fato que possibilita a concessão da ordem de ofício na forma prevista no art. 193, inc. II do RISTF.
Conforme relatei, o min. Hamilton Carvalhido julgou monocraticamente o Resp n.º 910.158, interposto pela defesa do ora paciente, dando-lhe parcial provimento por entender que “o estelionato praticado contra administração pública é crime permanente, começando a correr a prescrição somente na data em que cessar a concessão irregular do benefício“.
A decisão afastou. Assim, a ocorrência da prescrição pretendida pela defesa, que sustentava ser o delito praticado pelo paciente crime instantâneo.
Com efeito, esse Tribunal, ao julgar o HC 86.467, rel. Min. Marco Aurélio (DJ 22/06/2007), alterou a jurisprudência até então consolidada em matéria de prescrição do crime de estelionato previdenciário, passando a entender que a conduta deve ser classificada como crime instantâneo de efeitos permanentes. A decisão foi assim ementada:
PRESCRIÇÃO APOSENTADORIA FRAUDE PERPETRADA CRIME INSTANTÂNEO DE RESULTADOS PERMANENTES VERSUS CRIME PERMANENTE DADOS FALSOS. O crime consubstanciado na concessão de aposentadoria a partir de dados falsos é instantâneo, não o transmudando em permanente o fato de terceiro haver sido beneficiado com a fraude de forma projetada no tempo. A óptica afasta a contagem do prazo prescricional a partir da cessação dos efeitos artigos 111, inciso III, do Código Penal. Precedentes: Habeas Corpus n.ºs 75.053-2/SP, 79.744-0/SP e 84.998-9/RS e Recurso Extraordinário em Habeas Corpus n.º 83.446-9/RS, por mim relatados perante a Segunda Turma os dois primeiros e a Primeira Turma os dois últimos -, cujos acórdãos foram publicados no Diário da Justiça de 30 de abril de 1998, 12 de abril de 2002, 16 de setembro de 2005 e 28 de novembro de 2003, respectivamente.
O precedente estabelece como marco inicial da contagem do prazo prescricional a data em que ocorreu o pagamento indevido da primeira parcela, ocasião em que o dano ter-se-ia aperfeiçoado.
Destaco que o entendimento não é válido para o beneficiário da fraude perpetrada, mas tão-somente para aquela pessoa que falsificou os dados que possibilitaram ao beneficiário receber as prestações indevidas (dentre ouros, HC 99.112/AM, rel. min. Marco Aurélio, DJe n.º 120, de 30/06/2010).
Considerando-se que não foi juntada aos autos cópia da denúncia, colho do voto proferido no acórdão de Apelação Criminal n.º 1999.71.09.000569-7/TRF da 4.ª Região a descrição dos fatos pelos quais o paciente foi denunciado (fls. 11):
“O que deve ficar ressaltado é que restou definitivamente comprovada tanto neste como em outros processos análogos, que o modus operandi do denunciado é sempre o mesmo: na qualidade de despachante e de aposentadorias rurais, instruídos com notas fiscais de produtor ideologicamente falsificadas, mantendo, assim, a autarquia previdenciária em erro até a cessação dos benefícios por meio de procedimento administrativo. (…)”.
A conduta do paciente, assim, pode ser analisada à semelhança da autuação do servidor da autarquia previdenciária que falsifica os dados utilizados para a concessão do benefício. Na linha do precedente citado, a conduta delituosa do paciente consumou-se com o pagamento indevido da primeira parcela do benefício previdenciário. A partir de então, consoante a linha jurisprudencial desta Corte, teria início a fluência do prazo prescricional.
Tendo em vista que os autos não estão instruídos com cópia dos atos que demonstrem de forma inequívoca os marcos interruptivos da prescrição, não é possível reconhecer a sua consumação desde já. Frise-se que o voto proferido na Apelação Criminal n.º 1999.71.09.000569-7/TRF da 4.ª Região, registra que a concessão do benefício deu-se em novembro de 1993 (fls. 15), sem informar, contudo, se esta foi a data em que ocorreu o primeiro pagamento do benefício fraudulento.
Nada obstante, diante da dúvida existente quanto à data em que ocorreu o pagamento indevido do primeiro benefício previdenciário, concedo parcialmente a ordem tão-somente para reconhecer a aplicação, ao caso concreto, do novo entendimento jurisprudencial desta Corte, com base nos precedentes citados, ou seja, a fraude perpetrada por terceiro no estelionato consubstancia crime instantâneo de efeito permanente.
Revogo a liminar anteriormente concedida, salientando que caberá ao Juízo da Vara Federal de Bagé/RS, onde tramita a ação penal de origem, analisar a ocorrência de prescrição no caso concreto considerando, para tanto, como marco inicial, a data do pagamento indevido do primeiro benefício previdenciário.
Por fim, ressalto que, caso não se configure a extinção da punibilidade, na forma prevista pelo artigo 107, IV do Código Penal, a execução da pena deverá ter início imediato.
É como voto.
Ronaldo Botelho é advogado e professor da Escola da Magistratura.